sexta-feira, 16 de outubro de 2015


 
 
 
 
 
 
É TEMPO DE MUDANÇA 

Por uma questão de fechamento da matéria, estou escrevendo meu artigo antes do jogo em que o Brasil enfrentou a Venezuela em Fortaleza, de modo que as impressões marcadas na minha mente e retina ainda são as da malfadada partida do último dia 8, contra o Chile, em Santiago.
O leitor deve lembrar muito bem que perdermos por 2x0, mas que o placar poderia ter sido muito mais elástico se os chilenos, nossos antigos fregueses, não tivessem desperdiçado tantas chances de gol.
No entanto, é de se esperar que o Brasil mesmo jogando mal mais uma vez tenha passado pelos venezuelanos. É de se esperar também que a comissão técnica continue justificando que não existe adversário fácil, que a Venezuela jogou com dez jogadores atrás da linha da bola, que faltou espaço e que com a volta de Neymar as coisas vão voltar à normalidade.
Voltar à normalidade?
Parece que já estamos vivendo uma infeliz normalidade que só foi interrompida com a enganosa conquista da Copa das Confederações de 2013. De resto, a seleção brasileira vem capengando há mais de dez anos e parece que não há interesse algum da CBF em analisar com seriedade as razões desta mediocridade que de repente assola o futebol pentacampeão do mundo. 
É bem verdade que com o ex-presidente na cadeia e o atual presidente impedido de sair do país, a alta cúpula da CBF tenha lá outras preocupações, mas enquanto dura esta estagnação, o mundo continua girando, os fatos continuam se sucedendo e as outras seleções, nossos potenciais adversários, vão se fortalecendo.
Não foi à toa que o futebol da Espanha, sempre amorfo, cresceu e colocou o país no patamar dos favoritos das competições internacionais, mesmo com uma miríade de jogadores estrangeiros atuando pelos seus clubes. Não é à toa também que a Alemanha reencontrou em 2014 o futebol que já lhe havia dado três títulos mundiais no século passado. O segredo disso pode ser resumido em duas palavras: planejamento e trabalho.
O mesmo planejamento e trabalho que estão sendo desenvolvidos agora pela Holanda, cujos resultados vão frutificar possivelmente na Copa de 2022.
Estes países estão mudando a filosofia de trabalho nas categorias de base, buscando conjugar jogadores talentosos e polivalentes com disciplina tática, rapidez e um sistema de jogo que privilegie tanto as características específicas de cada jogador como o desenho tático projetado pelo treinador.
Os jogadores vão sendo peneirados através dos campeonatos das suas categorias, coordenados por equipes técnicas que adotam o mesmo estilo de jogo e agem de maneira uniforme, até chegar o momento em que a seleção pode contar com trinta ou quarenta jogadores preparados e aptos para entrar em campo e fazer o que a Alemanha fez em 2014.
Mas a produção não para: a cada ano novos jogadores vão sendo testados, treinados e moldados às exigências do futebol do seu país, de modo a perpetuar a qualidade do seu jogo.
Evidentemente o talento individual, a capacidade de improvisar, o arrojo e a malandragem não devem ser deixados de lado, mas há que se considerar que apenas estas qualidades, sem uma disciplina tática e a batuta de um maestro poderão fazer efeito em algumas ocasiões, mas não sempre.
Outro aspecto que deve ser mantido é a continuidade de um trabalho.
Querem um exemplo devastador?
A nossa seleção quase olímpica tem se apresentado relativamente bem e está num processo de ajuste com o técnico Rogério Micale. Os jogadores estão formando conjunto e assimilando as suas funções enquanto realizam treinamentos e amistosos tendo em vista a conquista da primeira medalha de ouro do futebol.
Mas dois meses antes dos Jogos, Micale será substituído por Dunga, que fará a sua convocação baseada na sua escolha pessoal, incluindo três jogadores mais velhos totalmente alheios à esta fase de preparação, escalará o time de acordo com a sua preferência e determinará o posicionamento e o estilo de jogo que melhor lhe aprouver, pondo por terra todo o trabalho de preparação desenvolvido até agora.
O relacionamento da atual comissão técnica com os jogadores será drasticamente alterado, a confiança conquistada ao longo do tempo será interrompida, e assim todo o trabalho de Rogério Micale poderá ser jogado na lata do lixo.

 

 

(artigo publicado no caderno Super Esportes do jornal O Imparcial de 16/10/2015)

 

 

domingo, 11 de outubro de 2015







EU E A MÚSICA
UM PIANO NO FIM DA TARDE
(a trilha sonora de um filme mudo)

José Eduardo Coutinho Maia era meu conhecido de infância. Éramos vizinhos, embora não necessariamente amigos, pois não mantínhamos maiores contatos nessa época. Seus pais lhe impunham uma educação excessivamente vitoriana e proibiam a ele e a seu irmão de saírem à rua para brincar e se enturmar com os garotos vizinhos. A própria família, classe média alta, não se entrosava muito com a vizinhança.
A condição financeira da família de Eduardo parecia muito estável, pois eles se davam ao luxo de ter uma governanta exclusiva para as crianças e um Chevrolet “do ano” que era obrigado a estacionar na rua, pois a casa, embora grande, não tinha garage, fato mais ou menos comum a boa parte das casas do bairro na época.
Na verdade, Eduardo e eu começamos a trocar ideias apenas depois da nossa maioridade, quando ele conseguiu afinal a alforria do velho Nazir – seu pai – muitas vezes ao lado de uma boa caneca de chope numa churrascaria chamada Forte Apache ou num bar chamado A Gloriosa, que era o point da moçada de então.
Eduardo gostava de cinema e fotografia, e eu já naquela época me interessava por escrever. Este foi o principal motivo da nossa aproximação, e as nossas conversas geralmente versavam sobre a tal da “ideia na cabeça e uma câmera na mão” decupada por Glauber Rocha, o realismo italiano, e a invasão da nouvelle vague e do cinema novo. Discutíamos de Eisenstein a Griffith e de Chaplin a Orson Welles, e eu cheguei a comprar livros sobre técnicas de direção e edição para melhor entender o assunto.
Daí nasceu a feliz ideia de fazermos um filme – chegamos de fato a fazer vários filmetes, que se perderam no tempo – onde Eduardo cuidaria da parte cinematográfica e eu ficaria com o roteiro e a parte cênica.
O filme, rodado no velho sistema dezesseis milímetros, foi chamado “A Busca e A Fuga”, baseado num conto-crônica que eu havia escrito alguns anos antes, e versava sobre a situação incômoda de um cidadão que não conseguia se ajustar à sociedade em que vivia.
O tema podia ser pretensioso, mas o filme, mesmo modesto, chegou a participar de alguns festivais de cinema amador, onde foi objeto de elogios precipitados dos amigos, de aplausos benfazejos dos entusiastas e de comentários desairosos dos críticos mais acerbados.
Como cenário para uma determinada parte da filmagem, nós escolhemos o pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera, que havia sido inaugurado em São Paulo em 1954 e estava vazio naquela ocasião, recebendo merecidos reparos naquele ano de 1967.
Suas características arquitetônicas com vãos livres enormes sem paredes internas, nascidos da concepção modernista de Oscar Niemayer, e o descortino de um horizonte arborizado naquele fim de tarde dariam a medida exata do que precisávamos em termos de enquadramento para provocar a sensação de solidão e fuga.
É claro que em preto e branco, por ser mais barato e mais cult.
Para lá nos dirigimos, eu com os meus projetos, Eduardo com seu equipamento, Sergio Martire – encarregado da fotografia – com seus medidores de intensidade de luz e seus conhecimentos técnicos, Élio Lammardo, uma espécie de assistente geral com seu entusiasmo e incentivo, e o nosso ator Luiz Carlos Gertel, um sujeito com cara de galã que era repórter da Radio Bandeirantes.
Subimos para o vão aberto do segundo andar e começamos a caminhar pelo piso deserto procurando o ponto mais conveniente para que Luiz Carlos começasse a atuar. A vastidão e o silêncio do cenário ajudavam a criar o clima Felliniano que desejávamos.

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No meio de tanta brancura avistamos como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, que crescia dentro do cenário emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trazia uma aura de imponderabilidade, como se todo o ambiente tivesse de repente começado a flutuar.
Caminhei em direção ao piano, com o som do jazz agora ocupando todo o espaço, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele nos confidenciou.
Dick recebeu nossa intromissão com um semblante sorridente e a expressão levemente enigmática, uma extensão dos seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira ou em alguma boate da região central da cidade.
A sua presença solitária naquela hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea e conveniente.
Farney não perguntou o que fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo travamos uma rápida conversa com ele.
Afinal, estávamos frente a frente com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos Estados Unidos e que fazia parte de uma revolução de ideias que culminaram com o advento da bossa nova dez anos atrás, usando como recurso apenas a sua voz e seu piano, como se isso fosse pouco.
Além de “How About You” Farney gravara standards famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil Moret), “These Foolish Things” (Jack Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s New?” (Johnny Burke e Bob Haggard) e “You Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) havia sido feita em primeira mão, antes mesmo das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.  
Tudo isto sem prejuízo da discografia nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que serviram de base histórica para o surgimento da bossa nova – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José Vasconcelos), “Você Se Lembra” (Haroldo Eiras e Victor Berbara), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Se O Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois” (Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas), “Ponto Final” (Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu), “Outra Vez” (Antonio Carlos Jobim) e outras tantas maravilhas.
Dick Farney sempre se interessou pelo jazz e pelos clássicos americanos, tanto na voz quanto tocando piano, e seu debut na Radio Cruzeiro do Sul foi cantando a mais improvável das musicas – “Deep Purple” (Peter DeRose e Mitchell Parish), na época em que os cantores amadores se especializavam em Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Assis Valente.
Ele apareceu na música brasileira no local e na hora certa – Rio de Janeiro, num momento em que a juventude carioca frequentava a Lojas Murray em busca do que havia de mais moderno em discos de jazz e standards – e provocou inclusive a criação do primeiro fan-clube de que se tem notícia no Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club), que infelizmente durou apenas um ano.
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A nossa filmagem se deu mais tarde, em um ponto distante de onde estava Dick Farney, pois não pude deixar de ficar estático durante alguns minutos me inebriando com o som daquele piano no fim da tarde.
E aquele som – “I like New York in June, how about you?... – acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.
Afinal, o filme era mudo, mas felizmente não era surdo...