A GULA
(Excerto II)
A mansão está em festa.
À beira da piscina, senhores grisalhos e
bem-humorados conversam ações da bolsa, viagens a negócios, cruzeiros de férias,
projetos políticos, financiamentos e outras questiúnculas do gênero.
Devidamente protegidas do sol, senhoras um
tanto gastas e usadas, apesar dos tratamentos de beleza, clínicas de
rejuvenescimento e salões de estética expõem suas celulites ao doce compasso
das confidências e das inconfidências e planejam o próximo chá de caridade onde
poderão desfilar um novo guarda-roupa e colocar à mostra as joias caras que
moram escondidas no cofre.
Ao sol, rapagões bronzeados, cabelos da
moda e minúsculas sungas, põem em evidência todos os seus volumes, enquanto as
gatésimas gatas desfilam suas protuberâncias superiores e inferiores se dourando
como tenros galetos. A música de elevador se insinua suavemente pelos quatro
cantos da casa através de alto-falantes estrategicamente instalados por entre
arbustos e postes de iluminação e provoca a desconfiança a respeito do bom
gosto musical dos proprietários.
Os doutores arriscam um olhar ousado
para as filhas dos outros doutores, sob a censura constante das esposas de
todos os doutores, à luz do semblante entre o intrigado e o deixa-pra-lá dos
filhos e dos amigos dos doutores, das filhas dos doutores e dos próprios
doutores.
Após a piscina e os aperitivos e com a
chegada do senador, será servido o almoço com os mais finos acepipes e os
melhores vinhos importados, representando o milagre da multiplicação da fartura:
para os vinte e tantos privilegiados que participam do animado ágape há secos e
molhados o suficiente para alimentar pelo menos cem famintos.
Mas os adultos enressacados e a trivial “jeunesse
dorée” colocam apenas míseras porções nos pratos porque à noite teremos uma recepção
oferecida ao ministro senegalês que nos visita.
Lá fora, alguns meninos miseráveis fazem
algazarra e passam de porta em porta pedindo um pouco de comida.
“Hoje não tem! Vão andando e não encham
o saco!” – brada o vigilante cumprindo com o seu dever. E arremata, num tom
mais baixo “... ninguém aguenta tanto mendigo pedindo coisa por aí!...”