FEITIÇO E O FEITICEIRO
O ano era 1927, e o local
era o Estádio de São Januário, o maior e mais moderno da América Latina.
Estava em disputa a final do
Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, e o Rio de Janeiro, que era a sede
do Distrito Federal, jogava contra São Paulo.
As duas seleções alinhavam
jogadores de grande prestígio na época, como Floriano, Fortes, Pascoal, Nilo e
Teófilo pelo lado carioca e Grané, Amilcar, Petronilho, Feitiço e Heitor pelo
lado paulista.
O jogo estava empatado em 1
x 1 quando, aos 29 minutos do segundo tempo o árbitro Ari Amarante marcou um
pênalti a favor dos cariocas, num lance que gerou muita discussão.
A bola teria sido
interceptada com o braço pelo zagueiro Bianco, mas os paulistas reclamaram que
a bola teria batido no peito. Se hoje, em plena era da tecnologia, com o
auxílio do replay, às vezes fica difícil chegar a uma conclusão, imagine então
naquele tempo.
Assim, não temos uma
informação concreta se o árbitro agiu corretamente, se foi mais uma arbitragem
caseira ou se simplesmente houve apenas um erro, mas a confusão cresceu como
sempre cresce em ocasiões como essa.
Os paulistas ficaram
indignados e resolveram complicar as coisas. A bola, colocada e recolocada
sobre a marca penal, era chutada para longe pelos paulistas para impedir a
cobrança, mas o árbitro não expulsou ninguém. Na confusão que se estabeleceu, a
partida ficou paralisada por mais de meia hora, gerando grande desconforto
porque na tribuna de honra estava o Presidente da República, Washington Luís.
Como o árbitro se mostrava
inflexível e a polícia já começava a tomar algumas providências não muito
pacíficas, os paulistas, liderados pelo centroavante Feitiço, se retiraram de
campo.
Da tribuna, o Presidente
reclamou dos incidentes e deu ordens para que os jogadores retornassem e que a
partida fosse reiniciada imediatamente. Ao ser notificado no vestiário, Feitiço
proferiu uma frase que se tornou lapidar: “Diga ao Presidente que ele pode
mandar no país, mas na seleção paulista quem manda somos nós!”. Há quem diga
que o autor da frase teria sido o capitão Amílcar, mas de qualquer forma
Feitiço, uma espécie de Romário da época, ficou com o crédito pela
irreverência.
Com apenas a seleção carioca
em campo e a meta vazia, o pênalti foi cobrado por Fortes, que apesar do nome
deu um chute fraco no meio do gol, fazendo 2x1 e dando o título para a seleção
da casa.
Após o jogo, a CBD informou
a Guilherme Gonçalves, presidente do Santos e da APEA – Associação Paulista de
Esportes Atléticos, que Feitiço, Grané e o goleiro Tuffy estavam eliminados do
futebol. Um ano depois eles foram anistiados, juntos com outros que haviam mais
tarde tido o mesmo destino.
Luís Macedo Matoso era o
nome do jogador Feitiço, apelido dado por uma jovem admiradora devido à magia
com que ele tratava a bola. Ele era forte no cabeceio e no chute “de bico”,
artilheiro nato e recordista mundial pelo Santos como participante de um ataque
que fez cem gols em dezesseis partidas (Osmar, Camarão, Feitiço, Araken e
Evangelista) com a impensável média de 6,25 gols por jogo no mesmo ano de 1927.
Esta epopeia de São Januário
poderia ter ficado restrita em si mesma, mas teve um desdobramento político
inesperado que precipitou uma forte dissidência entre o futebol de São Paulo e
do Rio de Janeiro, culminando com o rompimento que iria deixar os jogadores
paulistas fora da seleção que disputaria a Copa do Mundo de 1930 no Uruguai –
exceção feita a Araken Patusca, que estava em litígio com o Santos e foi
inscrito como jogador do Flamengo.
Aparentemente, Washington
Luís, mais preocupado com as lutas palacianas, não deu importância maior ao
episódio (acabou deposto em 1930 pelas forças político-militares comandadas por
Getúlio Vargas, três meses depois do Brasil ser eliminado da Copa).
(Artigo publicado no caderno
de esportes do jornal O Imparcial de 30/09/2016)