sábado, 4 de setembro de 2021

 


     PÁGINAS ESCOLHIDAS

COISAS (1988)
(Augusto Pellegrini)

POUCOS TRECHOS COM CLAUDETE

Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veia e um ardor no rosto crepitante que deve estar vermelho, mas não de vergonha.
Por mais que me olhe eu não consigo me ver, nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse for a de mim não seria a mesma coisa. Ou talvez fosse, pensando melhor, e eu não me visse nem assim, como um fantasma não se vê, e eu sou um fantasma, vagando assim deste jeito.
Em outros termos, digo que me encontro – mesmo não me encontrando – caminhando como um pião, cerca de trinta graus de excentricidade, um pendulante satélite girando ao redor das portas fechadas, riscando o chão com a minha ponteira rodopiando em volta das latas de lixo da madrugada.
Não sou excêntrico, estou excêntrico, isto sim.
E aquela luz amarela projeta a minha sombra de marionete na calçada.

(O autor, devidamente embriagado, depois de sair da boate onde acaba de conhecer Claudete, a mulher misteriosa)


 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

 

 


INGLÊS EM GOTAS

(Direitos reservados a Michael Strumpf & Auriel Douglas) 

 

MENOS OU MENOS 

Pergunta: “Como saber se eu devo usar ‘less’ ou ‘fewer’, se ambas as palavras significam ‘menos’? Eu sempre faço confusão, pois não consigo entender a diferença”, disse um irritado redator. 

Resposta: Tanto “less” como “fewer” são adjetivos. “Less” (“menos”) modifica substantivos que indicam uma unidade ou um coletivo e são usados no singular (em inglês chamados de “nomes incontáveis”). “Fewer” (“menos”) modifica substantivos cujas unidades você pode contar individualmente e são usados no plural (em inglês chamados de “nomes contáveis”). Por exemplo, nós temos “less” conhecimento, porém “fewer” fatos, “less” tempo, mas “fewer” minutos, “less” calor, mas “fewer” fogueiras, “less” congestionamento, mas “fewer” carros, “less” tráfego, mas “fewer” acidentes, “less” tempo inclemente, mas “fewer” tempestades.    

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

 


EU E A MÚSICA

UM PIANO NO FIM DA TARDE
Parte 1

José Eduardo Coutinho Maia era meu conhecido de infância. Éramos vizinhos quando crianças, embora não necessariamente amigos, pois não mantínhamos maiores contatos nessa época. Seus pais lhe impunham uma educação excessivamente vitoriana e proibiam a ele e a seu irmão de saírem à rua para brincar e se enturmar com os garotos vizinhos. A própria família, classe média alta, não se entrosava muito com a vizinhança.
A condição financeira da família de Eduardo parecia muito estável, pois eles se davam ao luxo de ter uma governanta exclusiva para as crianças e um Chevrolet “do ano” que era obrigado a estacionar na rua, pois a casa, embora grande, não tinha garage, fato bastante comum a boa parte das casas do bairro na época.
Na verdade, Eduardo e eu começamos a trocar ideias apenas depois da nossa maioridade, quando ele conseguiu afinal a alforria do velho Nazir – seu pai – muitas vezes ao lado de uma boa caneca de chope numa churrascaria chamada Forte Apache ou num bar chamado A Gloriosa, que era o point da moçada de então.
Eduardo gostava de cinema e fotografia, e eu já naquela época me interessava por escrever. Este foi o principal motivo da nossa aproximação, e as nossas conversas geralmente versavam sobre a tal da “ideia na cabeça e uma câmera na mão” decupada por Glauber Rocha, o realismo italiano, e a invasão da nouvelle vague e do cinema novo. Discutíamos de Eisenstein a Griffith e de Chaplin a Orson Welles, e eu cheguei a comprar livros sobre técnicas de direção e edição para melhor entender o assunto.
Daí nasceu a feliz ideia de fazermos um filme – chegamos de fato a fazer vários filmetes, que se perderam no tempo – onde Eduardo cuidaria da parte cinematográfica e eu ficaria com o roteiro e a parte cênica.
Um dos filmes, rodado no velho sistema dezesseis milímetros, foi chamado “A Busca e A Fuga”, baseado num conto-crônica que eu havia escrito alguns anos antes, e era uma alegoria sobre a situação incômoda de um cidadão que não conseguia se ajustar à sociedade em que vivia.
O tema podia ser pretensioso, mas o filme, mesmo modesto, chegou a participar de alguns festivais de cinema amador, onde foi objeto de elogios precipitados dos amigos, de aplausos benfazejos dos entusiastas e de comentários desairosos dos críticos mais acerbados.
Como cenário para uma determinada parte da filmagem, nós escolhemos o pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera, que havia sido inaugurado em São Paulo em 1954 e estava vazio naquela ocasião, recebendo merecidos reparos naquele ano de 1967.
Suas características arquitetônicas com vãos livres enormes sem paredes internas, nascidos da concepção modernista de Oscar Niemayer, e o descortino de um horizonte arborizado naquele fim de tarde dariam a medida exata do que precisávamos em termos de enquadramento para provocar a sensação de solidão e fuga.
Tudo, é claro, em preto e branco, por ser mais barato e mais cult.
Para lá nos dirigimos, eu com os meus projetos, Eduardo com seu equipamento, Sergio Martire – encarregado da fotografia – com seus medidores de intensidade de luz e seus conhecimentos técnicos, Élio Lammardo, uma espécie de assistente geral com seu entusiasmo e incentivo, e o nosso ator Luiz Carlos Gertel, um sujeito com cara de galã que era repórter da Radio Bandeirantes.
Subimos para o vão aberto do segundo andar e começamos a caminhar pelo piso deserto procurando o ponto mais conveniente para que Luiz Carlos começasse a atuar. A vastidão e o silêncio do cenário ajudavam a criar o clima Felliniano que desejávamos.

SEGUE

 


SAUDADE, SAUDADE

(Augusto Pellegrini)

Às vezes sinto uma saudade enorme
Dos tempos que lá longe já se vão
E eu me dou conta de que o tempo morre
De pouco em pouco, como uma ilusão

Saudade, sim, dos tempos de criança
E dos amigos com quem compartimos
Muitos dos quais são só bela lembrança
Pois já partiram pro plano divino

Ou então lembranças dos dias passados
Na brincadeira irresponsável e pura
Detalhes simples, mas valorizados
Pela amizade que até hoje perdura

Vem a saudade dela, a namorada
Do parque colorido, a matinê
Do algodão doce, do banco da praça
Ou do escondido para ninguém ver

Saudade de beijar ao som de “Only You”
Rádio de pilha, discos elepê
Banho de chuva, sossegado e nu
Saudade agora e sempre de você

E o tempo segue rápido e inclemente
A mocidade já ficou pra trás
Resta a saudade do que foi pra gente
Momentos raros que não voltam mais

 

Setembro, 2019

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

 


EU E A MÚSICA

TRÊS ATOS COM BILLY PAUL

Existem certas coincidências que acontecem na vida da gente que valem a pena ser lembradas, por insólitas que são.
A marchas e contramarchas da vida me levaram a conhecer o pacato e venerando cidadão Paul Williams, morto em 2016 com 81 anos, na época em que ele era cenicamente conhecido como Billy Paul, um divertido e versátil cantor e um artista de grande talento, utilizando com maestria a sua voz e o seu corpo a serviço da black music, com muito soul, funk e swing.
Não fossem, porém, as ditas coincidências puramente circunstanciais, eu talvez nunca tivesse assistido a um show seu nem tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
O fato é que, sem nunca ter procurado pelo seu show e sem jamais ter gasto sequer um tostão com ingressos, acabei, ao longo de vinte anos, assistindo não a um, mas a três shows de Billy Paul. 
A primeira vez em que Billy Paul veio ao Brasil, no início dos anos 1970, eu ainda morava em São Paulo e tinha uma legião de amigos que eram, à sua moda, envolvidos com música – cantores de boates, proprietários e atendentes de lojas de discos, divulgadores de gravadoras, relações públicas e agentes de cantores, colecionadores de discos e agentes de artistas.
Dercy Gonçalves, um rapaz homônimo da comediante e às vezes tão engraçado quanto ela, era divulgador da gravadora Continental e estava preocupado com a entrevista coletiva que Billy Paul daria à tarde num hotel da cidade. Em virtude de eventos paralelos, o intérprete contratado pela gravadora e pela Rádio Bandeirantes, que era parceira do evento, não poderia estar presente, então Dercy lembrou-se de mim, um amigo que “arranhava” o inglês e que poderia ajudar na coletiva com as perguntas de praxe e a posterior tradução.
A irresponsabilidade é muitas vezes companheira da criatividade e do sucesso.
Para o bem geral de todos, a coletiva não apenas transcorreu de uma maneira melhor que o esperado como deixou os promotores muito satisfeitos. Billy Paul também se divertiu bastante com a entrevista improvisada, ou pelo menos assim me pareceu.
É bem verdade que ele estava praticamente iniciando a sua carreira internacional e que tudo lhe parecia novo e interessante, e que naqueles tempos românticos estes assuntos técnicos não eram tratados com o rigor de hoje em dia.
Ao término da entrevista, a produção do show agradeceu a minha participação e me deu, provavelmente à guisa de pagamento, ingressos para “o show de logo mais à noite”.
Assim eu, que até então nunca tinha sequer ouvido falar de Billy Paul, fui pela primeira vez a um espetáculo seu, realizado no Teatro Paramount, sendo apresentado aos seus sucessos “Me And Mrs. Jones” (Kenny Gamble e Leon Huff), “Your Song” (Elton John), e “It’s Too Late” (Carole King), com os quais fiquei imediatamente encantado.
O tempo correu e desembocou na década de 1980.
Certo dia estava eu fazendo nada no estúdio da Rádio Mirante-FM em São Luís-Maranhão,  quando o locutor César Roberto, que também provavelmente fazia nada, posto que o seu programa já havia terminado, perguntou se eu “aguentaria uma dose de música pop num show que aconteceria à noite” (era uma pequena provocação, ou então uma cândida tentativa de fazer piada, porque minha atividade na emissora era produzir e apresentar música de jazz).
Quando retruquei que “dependia do show”, ele foi mais explícito – tratava-se de soul music, com um dos grandes nomes internacionais do estilo, Billy Paul. César Roberto havia recebido alguns ingressos da produção do cantor para distribuir entre o pessoal da radio.
Deliciado com a coincidência, pois o show seria um revival daquela noitada alegre do Paramount, é claro que concordei, e à noite fomos nos acomodar nas cadeiras ordenadamente distribuídas na quadra de tênis descoberta do Hotel Quatro Rodas.
Era noite de lua cheia – ou plenilúnio, como diriam os parnasianos – e o céu dos trópicos cintilava de estrelas. A brisa suave que vinha do mar a poucos metros do local não conseguia refrescar o calor emanado pelo show, e o cheiro da maresia era atenuado pelo sabor da cerveja comprada dos estandes ao redor ao pista e pelo leve odor do perfume usado pelo público que estava mais chique do que o evento exigia.
Billy Paul, que naquela noite estava extraordinariamente animado, desceu do palco para cantar e dançar no meio da plateia, que naquela altura arrastou as cadeiras do lugar e transformou a quadra de tênis numa autêntica pista de “discoteque” ao ar livre.
Aproveitei para conversar com Billy e comentar sobre o evento da Radio Bandeirantes em São Paulo, do que ele evidentemente não se lembrou, mas gentilmente fez de conta que havia me reconhecido.
Mais uma década se passou.
Eu estava novamente em São Paulo, desta vez cuidando da edição do meu livro “Jazz – Das Raízes Ao Pós Bop”, quando meu amigo Eduardo Sérgio Fracalanza convidou-me para jantar, após o que iríamos a um show de jazz na casa mais conceituada da cidade.
Depois de uma excelente anchova na manteiga com amêndoas, regada por uma cerveja geladíssima (e não por um bom vinho, como o maître queria), partimos para o Bourbon Street para afinal descobrir que naquela noite especial não teríamos o tradicional jazz do local, mas uma apresentação de... Billy Paul!
O repertório não havia mudado muito nos últimos vinte anos e não faltaram os seus velhos sucessos – afinal, era o que o público queria ouvir – e Billy continuava bastante jovial.
Com a nossa mesa relativamente longe do palco, poupei a ele a gentileza de mais uma vez “se lembrar” dos nossos encontros anteriores.  
Mas contei a Fracalanza a singularidade da minha relação com o pop-star.