IMPRESSÕES
COLHIDAS NO INFERNO
1988
(Parte
Dois)
Se eu comi aquelas ostras assassinas e
entrei neste estado escatológico foi por causa da Sexta-feira Santa, vejam só
se faz sentido, as pessoas na igreja e eu na latrina, fé de um lado e fezes do
outro, podem me chamar de sacrílego ou até mesmo de louco, podem me excomungar
ou me retalhar a pedradas como o fizeram a Santo Estevão, mas infelizmente esta
é a sagrada verdade, este é um fato consumado.
No Seu dia aziago, Ele não comeu nada,
nem peixe, nem pão, nem sementes, nem frutos do mar (conforme atestam as Escrituras),
o que acabou produzindo uma imensa grei de jejuadores. Mas, autorizados por consistórios
e até por concílios, os homens romperam o incômodo jejum e começaram a comer
pra valer, principalmente peixes e frutos do mar, como se não houvesse vida no
mar, como se não houvesse dor e agonia no mar.
Ele morreu pisado, pregado, lanceado,
com as costas ardendo a poder de vinagre e látego, mas pelo menos com as tripas
em ordem.
Por causa das humanas decisões divinas,
seguindo as divinas decisões humanas, eu engoli as ostras criminosas e por isso
fiquei naquele estado inquietante. Morrer vá lá, mas não numa Sexta-feira Santa,
chorando se houver lágrimas, chorado se houver lágrimas, sem ao menos ter
provado o pernil da Páscoa (o que acabou acontecendo de qualquer modo, pois as
vísceras urravam de náuseas só pela fragrância que emergia das panelas,
enquanto toda a família festejava com enorme gáudio).
Tudo isto é incompreensível como um
criptograma, é ilógico como um paradoxo, é anômalo como um eunuco. As tampas
das panelas tremiam devido ao vapor bem cheirante, o domingo estava claro e
cheio de sol, os pássaros voavam alegres fora das gaiolas, um gato dormitava
debaixo de uma cobertura de zinco e a luz do sol filtrava pelos buracos dos
pregos. As plantas balançavam e contrabalançavam ao sabor da brisa e os
vizinhos riam alto com gosto de álcool na sua pascoalina libação, que
transforma este domingo num velório sem respeito, afinal faz apenas dois dias
que Ele morreu.
Na sexta-feira todos entoavam tristezas
atrás do andor e se persignavam diante do altar, mecanicamente como um cuco na
hora certa, e todos beijavam os pés de gesso do Cristo morto, assassinado por
eles próprios. Agora todos O matam novamente com hipocrisia e farisaísmo e são
piedosos dentro das suas conveniências, esmigalhariam homens e crianças como
quem esmaga um inseto, arrebentariam cabeças e cuspiriam em cima dos cadáveres,
mas sempre com os olhos meigos voltados para o sacrário e os lábios balbuciando
orações que eles nunca entenderam, certos de que Ele lhes estende os braços e
lhes chama para o Seu lado.
Tratantes! No domingo há o morticínio
geral, com facas e asfixias numa sucessão contínua – animais são abatidos aos
milhares enquanto prosseguem a libação entornando baldes de bebidas alcoólicas –
e aí então ninguém mais se lembra dos sofrimentos que Ele sofreu nem do sangue
que Ele derramou aos borbotões, embora estejam alegres porque Ele ressuscitou –
sem atinar que ressuscitar significa morrer primeiro, isto é ou não é um contrassenso?
Os piedosos sapateiam na lápide. O ruído
eu escuto daqui.