sábado, 22 de setembro de 2018





POUCOS TEXTOS COM CLAUDETE
(Excerto)

Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veias e um ardor no rosto crepitante que deve estar vermelho, e não de vergonha.
Por mais que eu me olhe não consigo me ver, nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse fora de mim não seria a mesma coisa. Ou, pensando melhor, talvez fosse, e eu não me visse nem assim, como um fantasma não se vê, e eu devo ser um fantasma, vagando assim, desse jeito.
Em outros termos, digo que me encontro, mesmo não me encontrando, girando como um pião – cerca de trinta graus de excentricidade – um pendulante satélite rodando próximo às as portas fechadas, riscando o chão com minha ponteira ao redor das latas de lixo.
Não sou excêntrico, estou excêntrico, isso sim.
E aquela luz amarela projeta minha sombra de marionete na calçada.
-0-0-0-
Esperei por longo tempo e nada.
Arrisquei abrir a porta, empurrei lentamente e ela cedeu aos poucos, rangendo nos seus gonzos.
Nunca havia percebido aquele retrato de Monalisa na parede fronteira. Já havia notado o piano e os móveis escuros, as tapeçarias e o relógio de algarismos romanos na parede, o tabuleiro de xadrez desarrumado também, mas o retrato nunca. Talvez Leonardo tivesse passado a noite naquela sala pincelando até as últimas pinceladas aquele olhar anêmico e bovino, e aquele sorriso, ah! aquele sorriso, enigmático ou simplesmente asmático... 
De repente o quadro abriu um esgar demoníaco e o rosto se moveu, espanto, espanto, não era um quadro, era ela, a mulher, que me esperava com os olhos de visagem.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018





A GULA
(Excerto)

Ah, a gula!
Se gula fosse pecado os padres não se empanturrariam dos mais variados acepipes acompanhados por um saboroso vinho espanhol daqueles recebidos no Brasil contrabandeados e acondicionados em barris de carvalho legítimo, depois transferidos para jarras e garrafões sem medo de azedar, pois conforme dizia Padre Lourenço “...vinho puro, consumo rápido”...”
E o que dizer de um assado de carneiro, ornamentado com batatas sauté e servido com arroz de açafrão, salada de rabanetes adubada com azeite de oliva português primeira prensa e pão de peito daqueles da Basilicata?
É certo que todas as religiões preconizam algum jejum durante o ano – talvez mais pela necessidade de reservar o estoque e preservar o pouco do fígado e da vesícula que nos resta do que para prestar uma homenagem ao Senhor Deus. Afinal, que religião é essa que se preocupa com fartura de comida e de bebida e se esquece da farsa, da mentira, da guerra, da opressão e do opróbio?
Será pecado a ingestão de chá com torradas, ovos e bacon pela manhã, um belo suco de frutas e um iogurte batido, além do sanduiche de queijo Gruyère e de uma fatia de melão? Será pecado o T-bone steak com agrião na hora do almoço ajudado por um chope escuro e broto de alcachofra na entrada? Café com chantili na saída?
Será pecado o carpaccio?
Pecado não é a comida e sim a falta dela.
 

terça-feira, 18 de setembro de 2018




POESIA & JAZZ

Edgar Allan Poe, grande escritor e poeta americano do século 19, é autor de uma citação que diz “a poesia é a criação rítmica da beleza em palavras”.
Existe, na verdade, uma profunda alquimia entre os versos – e a prosa – de Poe com a música impressionista, o que tem possibilitado a muitos músicos a apresentação pública das ideias do escritor sob o ponto de vista rítmico e harmônico.
Alguns poemas de Poe se transformaram em obras musicais ou sugeriram criações musicais através de leituras e adaptações feitas por músicos como Dominick Argento (na ópera “The Voyage of Edgar Allan Poe”); a banda alemã Coppelius (no rock-metal “Murders in the Rue Morgue”); o grupo The Beatles (no pop-sinfônico “I’m The Walrous” – onde eles cantam “Man, you should have seen them kicking Edgar Allan Poe”); a banda Creature Feature (no pulp-terror-rock “Buried Alive” – com palavras como  “As I walk the valley of unrest behind this mask of crimson death”); e o compositor Claude Debussy (no erudito “The House of Usher”), entre dezenas de outros, embora nenhum deles tivesse transformado Poe em jazz.
Talvez Ornette Coleman, Sun Ra e alguns outros  tenham feito isso de forma inconsciente com o seu jazz profundamente inovador, que ia além do chamado free-jazz e continha todos os ingredientes que fugiam da normalidade do cotidiano, abrangendo a paranormalidade, o mistério e o esoterismo.
Analisando a frase inicial de Poe mencionada neste artigo e procurando vê-la sob um ângulo musical, percebe-se muita semelhança de filosofia entre uma obra poética e uma composição jazzística. Para tanto, basta mudar o contexto para “o jazz é a criação rítmica da beleza em sons musicais”.
A utilização das palavras, dando-lhes o ritmo e a cadência necessários para manter o clima crescente de envolvimento do leitor, tem como eco a transposição de notas musicais secas, acordes convencionais e um beat contínuo da poesia-jazz sem brilho – semelhante a uma marcha de soldados bem ensaiada – para alterações sonoras significativas, usando acordes dissonantes e um beat invertido, como a batida de um coração emocionado, tudo sujeito a modificações constantes, como a passagem de um verso ou de um capítulo de Poe (ou uma sequência harmônica de Coltrane) para outro.
Num e noutro caso, o tema é explorado com perfeição, levando o leitor ou o ouvinte a se integrar na atmosfera proposta pelo escritor ou pelo intérprete, seja ela de leveza, de romance, de alegria e também de introspecção (como nos casos de Poe e outros autores que exploram o mistério e o macabro ou de Coleman e outros que seguem o irreal e o desconhecido). 
Na literatura a gente muda de página, seja Poe e seus seguidores ou sejam autores de estilos diversos, mas as emoções da página anterior devem permanecer para que a mente do leitor continue integrada na mensagem ou na intenção do escritor.
O mesmo acontece com o jazz e seus diferentes estilos.





SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 04/08/2017
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

EARL KLUGH

Especializado no violão acústico, Earl Klugh é um instrumentista e compositor que conquistou os amantes do jazz, principalmente aqueles que seguem a linha do fusion e do smooth jazz. Klugh começou a sua carreira de sucesso ao final dos anos 1960, e a partir daí teve a oportunidade de exercitar o seu talento ao lado de músicos consagrados como Yousef Lateef, George Benson e Bob James. Seu estilo moderno e sua execução funkeada caiu no gosto tanto dos jazzófilos como dos apreciadores da música pop, o que causou a produção de cerca de cinquenta álbuns campeões de audiência. Earl Klugh é também conhecido pela criação de um festival de jazz que acontece no verão de todo ano num resort do Colorado, no qual congrega músicos e jazzistas de diversas correntes. O disco apresentado neste programa se chama "The Journey", foi gravado em 1997 e traz a assinatura da produção e composições do próprio Klugh.

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini
                                                                                                                                    



segunda-feira, 17 de setembro de 2018






CARTA PARA O DESTINO

Escrevi uma carta para o meu destino
Mas errei o destinatário
A carta foi, por engano
Entregue ao destino de um outro
Que não a havia enviado

Na carta fui incisivo
“Quero saber da minha morte
Quando será, onde e como
E o que encontrarei mais tarde
Quando estiver do outro lado”

A resposta veio logo
Também no destino errado
Demonstrando um certo espanto
Pois o outro havia partido
No fim do ano passado

Aprendi então que o certo
É não se preocupar com a morte
Deixá-la ao sabor da sorte
Deixá-la ao sabor do vento
Vivendo o melhor da vida e dela tirando proveito

Set 2017