POUCOS TEXTOS COM CLAUDETE
(Excerto)
Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veias e
um ardor no rosto crepitante que deve estar vermelho, e não de vergonha.
Por mais que eu me olhe não consigo me
ver, nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse fora de mim
não seria a mesma coisa. Ou, pensando melhor, talvez fosse, e eu não me visse
nem assim, como um fantasma não se vê, e eu devo ser um fantasma, vagando
assim, desse jeito.
Em outros termos, digo que me encontro, mesmo
não me encontrando, girando como um pião – cerca de trinta graus de
excentricidade – um pendulante satélite rodando próximo às as portas fechadas,
riscando o chão com minha ponteira ao redor das latas de lixo.
Não sou excêntrico, estou excêntrico,
isso sim.
E aquela luz amarela projeta minha
sombra de marionete na calçada.
-0-0-0-
Esperei por longo tempo e nada.
Arrisquei abrir a porta, empurrei
lentamente e ela cedeu aos poucos, rangendo nos seus gonzos.
Nunca havia percebido aquele retrato de
Monalisa na parede fronteira. Já havia notado o piano e os móveis escuros, as
tapeçarias e o relógio de algarismos romanos na parede, o tabuleiro de xadrez
desarrumado também, mas o retrato nunca. Talvez Leonardo tivesse passado a
noite naquela sala pincelando até as últimas pinceladas aquele olhar anêmico e
bovino, e aquele sorriso, ah! aquele sorriso, enigmático ou simplesmente
asmático...
De repente o quadro abriu um esgar
demoníaco e o rosto se moveu, espanto, espanto, não era um quadro, era ela, a
mulher, que me esperava com os olhos de visagem.