sábado, 15 de setembro de 2018





O JANTAR
(excerto)

Duas lágrimas, uma de cada olho.
Só aquilo me deu vontade de mandar o diabo para o diabo.
Duas lágrimas são duas lágrimas, ainda mais com a mão servindo de anteparo para que eu não veja os olhos vermelhos e o rosto convulso com vontade de morder.
E as nossas mãos se apertando, em mudo desespero.
Ao fundo, Nat “King” Cole está cantando aquelas melodias de alguns anos atrás, de alguns séculos atrás, o que me faz sentir neste momento um pré-histórico da pré-história, a mente funcionando sem funcionar, um remoinho de ideias – “Por que? Por que?” – duas lágrimas, dois rios, um desabafo e as nossas mãos se apertando em mudo desespero. 
Além do vidro da janela imensa, os edifícios frios, a paisagem fria e a noite fria. Sobre a mesa, uma cerveja fria com copos mortos e a espuma seca, a música fria e duas lágrimas quentes.
Até as paredes sabem. As paredes sabem das lágrimas e das mãos, e agora o beijo, furtivo e único.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018





IN VINO VERITAS

Em cada taça uma frase se esconde
Em cada copo um pensamento se cria
Em cada brinde o calor se expande
Em cada gesto a alegria se estende
Em cada gole a alma a Deus se rende
Enquanto a taça lentamente se esvazia

O vinho é vida – vino vita est
E toda existência está contida numa taça
O vinho é a verdade – in vino veritas
E toda sinceridade se despeja da garrafa

O vinho, seja rubro como a paixão
Rosado como a beleza
Branco como a pureza
Encorpado como o sangue
Delicado como um perfume
Divertido como uma pândega
Ou rascante como a força da vida
É sinônimo de prazer, elegância e companheirismo

Por isso ergamos nossas traças e nossos vivas
Num brinde à vida, à emoção e à alegria
E bebamos à nossa saúde


segunda-feira, 10 de setembro de 2018






PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS
(excerto)

A plataforma se estende por metros e então finaliza em uma rampa que termina abruptamente num punhado de pedregulhos cobertos por óleo e por ruídos. Chaves se movimentam, preguiçosas. Há ainda algum vestígio de vapor embora os trens do império tenham sido trocados por locomotivas há um certo tempo.   
O portão de ferro está aberto com as pontas da grade para cima e todos passam silenciosos como nas fronteiras, as crianças por baixo da catraca e as de colo por cima, os adultos empurrando a portinhola com a barriga ou com o sexo, a virgindade outra vez partida junto com aquele ruído parecido com o do portão do cemitério à noite quando se fecha, o mesmo guincho estridente do século passado, os ratos deslizando e os quadros de aviso sem leitores e sem avisos.
Assim também fazia Hitler, tocava o seu rebanho ao som de marchas e contramarchas, a mão estendida para ver se chovia até que choveram as bombas britânicas estreladas, e aí mesmo aquela cruz quebrada impressa sobre sangue perdeu a sua austeridade, mesmo os centuriões perderam os seus escudos e as suas máscaras – as contra gases e as da arrogância – e mesmo o som da marcha perdeu o seu repique.
Assim sempre foi e assim sempre será – a ascensão e a queda do terceiro reino.