AS CORES DO SWING
CAPÍTULO 1 - O REI DO SWING
(epílogo)
Com uma crescente
preocupação do conservador Ferde Grofé, que começou a pressentir que os seus
arranjos bem cuidados acabariam por ser preteridos por esta “novidade
passageira”, Whiteman deu início a um trabalho intensivo para transformar a sua
orquestra definitivamente numa big band de swing, principalmente depois que pensou ter conseguido domar Bix
Beiderbecke e após ter obtido formalmente a aprovação dos músicos de Ellington
sobre a nova maneira de interpretar a sua música.
Para tanto, ele decidiu
investir pesado, pagando dois mil dólares pela compra de vinte partituras
escritas por Don Redman, um saxofonista de grandes recursos que era o principal
responsável pelos arranjos jazzísticos da orquestra de Fletcher Henderson. Com
isso, para desgosto de Grofé, Paul incorporou de vez a necessária negritude do
jazz nas interpretações da orquestra, dando assim mais suporte às intervenções
de Bix.
Os problemas do
maestro com o trompetista, entretanto, continuavam.
Bix sempre
carregava no bolso do paletó uma garrafinha de formato anatômico contendo
uísque ou gim, junto com um providencial saquinho de cravo da Índia, com o qual
disfarçava o hálito de álcool, e discretamente, nos intervalos dos ensaios e
das apresentações, dava uma rápida esticada até o banheiro para “matar a sede”
e acalmar os nervos.
Quando voltava à
cena, ele sentia que seu sopro estava mais macio e que sua criatividade
extrapolava os arranjos ainda um pouco rígidos para a sua vivência jazzística,
registrados nas partituras que ele absolutamente não lia.
Como Paul era
exigente no que dizia respeito ao comportamento dos seus músicos, toda esta
maquinação era feita por detrás dos panos, o que aumentava a tensão e o
esgotamento nervoso de Bix.
Ao mesmo tempo em
que a orquestra dava os primeiros passos para desvendar os mistérios dos arranjos
de Redman, Bix obteve licença para tratamento médico, com a recomendação de que
se dedicasse aos estudos da leitura de partituras enquanto descansava dos
palcos, a fim de que pudesse definitivamente fazer parte do naipe de metais nas
passagens mais elaboradas que exigiam afinidade e afinação do conjunto.
Ele voltou a tocar
em 1929, mais corado e bem disposto, aparentemente comprometido com as “malditas”
partituras (na verdade, o que ele colocava na estante, por sobre a capa oficial
do caderno de música, eram livretos contendo histórias policiais, cujas
passagens ele lia nos intervalos para arejar a mente, antes de voltar a tocar
seguindo apenas o seu instinto).
Whiteman era um
homem maduro e vivido, e sabia da artimanha. No entanto, fazia de conta que nada
percebia, para manter o respeito e a unidade do grupo. O que ele não suportava
era o fato de Bix ter voltado a beber e de não cumprir com seus horários como
determinado, dando início a uma série de discussões e reprimendas que
inevitavelmente provocavam uma profunda depressão no trompetista, o que
provavelmente teria ajudado a acelerar o seu fim precoce.
Por outro lado, os
Estados Unidos atravessavam uma crise sem precedentes, com a recessão que se
instalara no mesmo ano causada pela quebra da Bolsa de Nova York, provocando
falências, desemprego e suicídios, tudo aliado a uma total falta de
perspectivas e oportunidades e a uma sensível mudança no comportamento da
população, o que iria perdurar por quase toda a década seguinte.
O burburinho e a
agitação começavam a se transferir de Chicago para Nova York, que aos poucos se
impunha como o novo templo da badalação noturna, mesmo dentro do cenário
pessimista em que o país se encontrava.
Insatisfeito com
os rumos que as coisas estavam tomando, começando e enfrentar dificuldades
financeiras, e sem poder contar com a opinião de Ferde Grofé, com quem havia
rompido, Paul teve a companhia de um outro amigo, o crítico musical Theodore
Gordon, num outro jantar no Joe’s.
Naquela noite, a
lua brilhava branca e redonda, e a temperatura se apresentava agradável. Paul,
no entanto, sentia um estranho e despropositado frio, e pediu conhaque com mel
para bebericar ao invés do tradicional pernot.
Paul
e Gordon discutiram e ponderaram, pensaram e repensaram a situação em que a orquestra
se encontrava, pesaram os prós e os contras e analisaram com detalhes os
caminhos que a música estava tomando, em especial naquelas paragens em que se
encontravam.
Paul se mostrou
seriamente preocupado com os problemas que afetavam todas as atividades do país
e que já se faziam presentes no segmento da música, com orquestras se
desfazendo, gravadoras reduzindo a quantidade de sessões, teatros fechando as
portas e o público se recolhendo às suas casas quando ainda tinham casas para
se recolher.
Por fim,
conversaram sobre a decadência física e moral de Bix Beiderbecke, sobre a queda
de popularidade que o stomp começava a experimentar e sobre o futuro da
orquestra.
Ao
final da noite, com a mente e corpo aquecidos pelo conhaque, pela conversa e
pelo farto cozidão irlandês servido pelo próprio Joe, Paul Whiteman se decidiu
por baixar a temperatura da sua música, repor alguns dos arranjos antigos, usar
o jazz apenas como material de referência e, por fim, demitir Bix e os seus
demônios, porque simplesmente não conseguia aturá-lo mais.
A
expectativa de Paul Whiteman era a de que, para ele, a vida iria continuar como
era antigamente. Apesar da sua força de vontade, no entanto, a orquestra
começava aos poucos a perder popularidade, pois as atenções gerais se voltavam
para outras bandas que realmente tocavam o que era definitivamente chamado de
jazz – ou swing, como queiram.
Depois de ter se
livrado de Bix Beiderbecke, Paul precisava repor a qualidade perdida. Assim,
outros músicos começaram a participar do grupo. Eles não possuíam o mesmo
talento de Bix, mas pelo menos encaravam o trabalho com mais responsabilidade.
Paul contratou os
irmãos Teagarden – o trombonista Jack e o trompetista Charlie – donos de uma
vasta experiência, adquirida em orquestras como a de Ben Pollack e em grupos de
dixieland. Para substituir Bix nos solos de trompete, ele trouxe Bunny
Berigan, egresso de algumas importantes orquestras de dança do leste e do
meio-oeste, como as comandadas por Frank Cornwall e Merle Owens.
Além disso, Paul
sabia que sempre poderia contar com o amigo Trumbauer, que se desdobrava não só
na execução do seu saxofone, mas também na procura de contratos comerciais para
manter a banda em atividade e em alta.
Mesmo
assim, ao contrário do que ele previra, a sua música soava cada vez mais
anacrônica, pois o sofrido povo americano preferia fugir dos problemas ouvindo
e dançando músicas alegres e saltitantes – no caso, o swing – ao invés de se lastimar ao som da sua melodia romântica,
sentimental, mas – por que não dizer? – depressiva.
As
coisas começavam a mudar rapidamente no panorama musical norte-americano, e a
velocidade da mudança não era aquilo que convinha exatamente a uma pessoa como
Paul Whiteman, acostumado com uma vida programada e rotineira.
O
maestro se sentiu um pouco culpado quando soube da morte de Bix em 1931, vítima
de uma pneumonia agravada pelo excesso de álcool. Se tivesse tido um pouco mais
de paciência – pensou Paul – talvez o trompetista tivesse superado a depressão
e a angústia e pudesse ter vivido um pouco mais.
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Na
ocasião da sua morte, Bix estava negociando a sua ida para a Casa Loma
Orchestra, onde iria trabalhar novamente com Jean Goldkette.
A Casa Loma na
verdade ainda não existia com esse nome. Era então uma orquestra chamada Orange
Blossoms, que se exibia em Detroit, mas cujas atividades artísticas haviam
naufragado com a recessão. O ex-bandleader
Jean Goldkette e um empresário de nome Henry Horvath resolveram contratar os
músicos da Orange Blossoms para abrilhantar as noites dançantes do famoso Hotel
Casa Loma (daí o novo nome da orquestra) em Toronto, no Canadá. Ambos estavam
recrutando novos músicos para dar mais qualidade aos Blossoms, e Goldkette
ficou sabendo que Bix estava novamente disponível no mercado. O que ele não
sabia é que Bix já estava em frangalhos, e que a sua saúde estava tão
comprometida.
Quando tomou
conhecimento que o Hotel Casa Loma estava planejando contratar uma orquestra para
se apresentar no seu salão social, Paul Whiteman começou a mexer os pauzinhos
para que a orquestra contratada fosse a sua. No entanto, Jean Goldkette, na
condição de responsável pela contratação, deu preferência à Orange Blossoms por
considerá-la “mais quente”, e mais adequada às exigências do público no
momento. Assim, Goldkette simplesmente disse “não” a Whiteman.
A resposta negativa
mexeu muito com os brios de Paul Whiteman, que ficou extremamente ressentido –
afinal, quem era Goldkette para se colocar no papel de juiz da sua
música?
Como,
porém, “Deus costuma escrever certo por
linhas tortas”, pelo menos essa era a opinião de Whiteman a respeito do
caso, a aventura de Goldkette acabou se transformando num redondo fracasso. A
“sua” Casa Loma não deu certo em Toronto, cidade mais fria e menos propícia a
propostas musicais do que Chicago ou mesmo Detroit, de onde ela saíra. Assim, a
Casa Loma Orchestra manteve o novo nome, mas teve que voltar às suas origens.
Detroit se
transformara, contudo, num deserto para o entretenimento, e a Casa Loma, então
dirigida pelo bandleader Henry
Biagini, e tendo o saxofonista Glen Gray como arranjador, teve que mudar
novamente de rumo, começando a excursionar pelo país para finalmente conseguir alcançar
o sucesso desejado.
Este era o
panorama da música de orquestra no início dos anos 1930, cheio de expectativas
de mudanças, o que representava um novo desafio para “O Rei do Jazz”.
A década começara
ao som colorido do swing, que
substituía definitivamente o stomp
pesado e simples, e eliminava os resquícios da “sweet music”. O dixieland tocado por grupos de sete ou oito
músicos, retrato mais fiel do jazz até então, dava lugar a orquestras com
quatorze a dezesseis integrantes. No entanto, embora apostasse numa proposta de
evolução musical, a maioria das big bands convencionais começou com o
passar do tempo a adquirir uma personalidade sensivelmente comercial, mesmo
contando com todo o apoio da harmonia e das estruturas do jazz.
Mesmo
assim, algumas orquestras continuaram a executar o swing sem perder a qualidade jazzística, independentemente do
aspecto dançante que era passado para o público.
A
sensibilidade dos arranjadores e dos músicos fazia do swing um jazz definitivo, como afirmava Cootie Williams, incluindo
solos de improviso, riffs, síncopes e tudo o mais a que tinha direito.
Paul
Whiteman não havia conseguido situar a sua orquestra entre as definitivamente
jazzísticas, mas soube resistir sem comercializar a sua arte. O mercado da
música, no entanto, estava sendo ocupado por outras orquestras que caíram no
gosto popular e no agrado da crítica.
Don Redman, cujos
arranjos ajudaram Whiteman na sua busca por um lugar no jazz, começou a dirigir
a sua própria orquestra, chamada McKinney’s Cotton Pickers, assumindo no outono
de 1931 o grupo que havia sido formado em 1922 pelo baterista William McKinney.
O grupo contava com Louis Armstrong, recém-chegado da orquestra de Fletcher
Henderson, Coleman Hawkins, um saxofonista de sopro forte e austero, também
vindo do grupo de Henderson, o trombonista Charlie Green, e outros bambas da
época.
Fletcher
Henderson, mesmo perdendo três dos seus principais músicos, não ficou atrás e
manteve o seu carisma, escrevendo ele mesmo os arranjos para a sua orquestra e
chegando inclusive a superar, neste métier, o trabalho anteriormente
desenvolvido por Redman.
Já Duke Ellington
prosseguia impávido com o seu trabalho como se nada – recessão, modernização –
estivesse acontecendo.
Em Kansas City
apareceu um fenômeno chamado Benny Moten, que serviria de paradigma para um
jazz de big band mais voltado para o blues
do que para o swing, uma espécie de
voz discordante que levaria o jazz orquestrado para um outro campo,
posteriormente cultivado por Count Basie. Talvez fosse esse exatamente o
trabalho que Paul Whiteman havia sonhado e não conseguira fazer, por insuficiência
de blues.
Apesar dos anos de
recessão, o ambiente musical não arrefeceu em Nova York, com os negros
comandando os shows no Harlem, “uptown”, e os brancos acontecendo no
Times Square, em especial nos teatros da Broadway.
No meio deste
cenário, Paul Whiteman começava a sair de cena, com eventuais apresentações na
parte branca da cidade e em outras localidades espalhadas pelo país, mas nesta
altura a sua música soava definitivamente “kitsch”.
Ele fez também algumas gravações bissextas, até que tentou uma cartada decisiva
em 1938, rejuvenescendo a orquestra com a participação do grupo vocal The
Modernaires sem, no entanto, obter o desejado sucesso.
Após sucessivas
tentativas entre 1940 e 1944, sempre se apresentando com formações diferentes
em diversas cidades do país, Paul fechou a cortina.
Sua história
musical parece representar o lado B da história do swing, sem nunca ter feito parte do lado A da história contada
pelos historiadores de jazz.