sábado, 29 de março de 2014




EU E A MÚSICA – TRÊS ATOS COM BILLY PAUL

Existem certas coincidências que acontecem na vida da gente que valem a pena ser lembradas, por insólitas que são.
A marchas e contramarchas da vida me levaram a conhecer o pacato e venerando cidadão Paul Williams, hoje com respeitáveis setenta e nove anos, quando ele havia se transformado cenicamente no divertido e versátil Billy Paul, belo cantor e artista de grande talento que utiliza com maestria a sua voz no black music style, com muito soul, funk e swing.
Mesmo assim, não fossem as ditas coincidências puramente circunstanciais, eu talvez nunca tivesse assistido a um show seu nem tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
Ao longo de vinte anos, acabei assistindo não a um, mas a três shows de Billy Paul, sem nunca ter procurado por eles nem gasto um tostão sequer com os ingressos. 
A primeira vez em que Billy Paul veio ao Brasil, no início dos anos 1970, eu ainda morava em São Paulo e tinha uma legião de amigos que eram, à sua moda, envolvidos com música – proprietários e atendentes de lojas de discos, divulgadores de gravadoras, cantores de boates, e relações públicas de artistas.
Dercy Gonçalves, homônimo da comediante e às vezes tão engraçado quanto ela, era divulgador da gravadora Continental e estava preocupado com a entrevista coletiva que Billy Paul daria à tarde num hotel da cidade. Em virtude de eventos paralelos, o intérprete contratado pela gravadora e pela Rádio Bandeirantes, parceira no evento, não poderia estar presente, então Dercy lembrou-se de mim, um amigo que “arranhava” o inglês e que poderia ajudar na coletiva com as perguntas de praxe e a posterior tradução.
A irresponsabilidade é muitas vezes companheira da criatividade e do sucesso.
Para o bem geral de todos, a coletiva não apenas transcorreu de uma maneira melhor que a esperada, como também os promotores ficaram muito satisfeitos e Billy Paul também se divertiu bastante, ou pelo menos assim me pareceu, com a entrevista improvisada.
É bem verdade que ele estava praticamente iniciando a sua carreira internacional e que tudo lhe parecia novo e interessante, e que naqueles tempos românticos estes assuntos não eram tratados com o rigor de hoje em dia.
Ao término da entrevista, a produção do show agradeceu a minha participação e me deu, provavelmente à guisa de pagamento, ingressos para “o show de logo mais à noite”.
Assim eu, que até então nunca tinha ouvido falar de Billy Paul, fui pela primeira vez a um espetáculo seu, realizado no Teatro Paramount, onde fui apresentado aos seus sucessos “Me And Mrs. Jones” (Kenny Gamble e Leon Huff), “Your Song” (Elton John), e “It’s Too Late” (Carole King), com os quais fiquei encantado.
O tempo correu e desembocou na década de 1980.
Certo dia estava eu fazendo nada no estúdio da Rádio Mirante-FM em São Luís-Maranhão,  quando o locutor César Roberto, que também provavelmente fazia nada, perguntou se eu “aguentaria uma dose de música pop num show que aconteceria à noite” (era uma cândida tentativa de fazer piada, porque minha atividade na emissora era produzir e apresentar música de jazz).
Quando retruquei que “dependia do show”, ele foi mais explícito – tratava-se de soul music, com um dos grandes nomes internacionais, Billy Paul. César Roberto havia recebido alguns ingressos da produção para distribuir entre o pessoal da rádio.
Deliciado com a coincidência, e claro que concordei, e à noite fomos nos acomodar nas cadeiras ordenadamente distribuídas na quadra de tênis descoberta do Hotel Quatro Rodas.
Era noite de lua cheia e o céu dos trópicos cintilava de estrelas. A brisa suave que vinha do mar a poucos metros do local não conseguia refrescar o calor emanado pelo show. Billy Paul, que naquela noite estava extraordinariamente animado, desceu do palco para cantar e dançar no meio da plateia, que a aquela altura arrastou as cadeiras do lugar e transformou a quadra de tênis numa autêntica discoteca.
Aproveitei para conversar com Billy e comentar sobre o evento da Radio Bandeirantes em São Paulo, do que ele evidentemente não se lembrou, mas gentilmente fez de conta que havia me reconhecido.
Mais uma década se passou.
Eu estava novamente em São Paulo, desta vez cuidando da edição do meu livro “Jazz – Das Raízes Ao Pós Bop”, quando meu amigo Eduardo Sérgio Fracalanza convidou-me para jantar, após o que iríamos a um show de jazz na casa mais conceituada da cidade.
Depois de uma excelente anchova na manteiga com amêndoas, regado por uma cerveja geladíssima (e não por um bom vinho, como o maître queria), partimos para o Bourbon Street para afinal descobrir que naquela noite especial não teríamos o tradicional jazz do local, mas uma apresentação de... Billy Paul!
O repertório não havia mudado muito nos últimos vinte anos, mas Billy continuava bastante jovial.
Como nossa mesa estava relativamente longe do palco, poupei a ele a gentileza de mais uma vez “se lembrar” dos nossos encontros anteriores.  

 




COPA 2014 – O ASSUNTO DO ANO

 

Toda quinta-feira, a partir desta semana, Gol de Placa vai apresentar uma série de artigos sobre a Copa que se aproxima, buscando manter o leitor informado e procurando responder às suas expectativas e dúvidas.
A cada Copa que acontece o número de pessoas interessadas aumenta, quer seja pelo avanço da tecnologia, quer seja pela mídia engajada pelos bilhões que ela movimenta, quer seja pela chamada “curtição”, que alia a alegria vivida num estádio à diversão de um festival de música. Pura diversão.
Uma prova irrefutável do interesse que a Copa gera no cidadão é a venda de ingressos, que mesmo sendo muito caros vão se esgotando para as partidas mais importantes, as quais vão se tornando ainda mais importantes à medida que o torneio avança e vai confirmando os favoritos.
As pessoas que não têm condição de estar nos estádios vão torcer juntos em casa, em bares ou restaurantes, onde tudo passa a ser pretexto para churrasco, cerveja e samba.
Muitos não se interessam pelo futebol, outros jamais foram a um estádio. Mas todos farão a festa na hora de torcer pela seleção.
Tradicionalmente, mesmo quando a Copa é disputada em rincões distantes, seja Japão, Espanha ou África do Sul, a massa torcedora que sai do Brasil para apoiar a seleção está sempre presente, formando uma alegre brigada verde-amarela, e fazendo a famosa corrente pra frente.
Esta Copa é especial, pois volta a ser disputada no Brasil depois de 64 anos, obviamente sob circunstâncias completamente diferentes.  Mudou a atmosfera, mudaram algumas regras, mudou até o próprio Estádio do Maracanã. O mundo tem um comportamento social, sociológico e tecnológico de um novo século.
Em 1950 o Brasil era mostrado em preto e branco e agora apresenta suas virtudes e defeitos em cores vivas.
Tanto o Brasil quanto o mundo passaram por severas modificações trazidas pelo progresso e pela globalização, como a velocidade da comunicação, a informação instantânea e minuciosa, e a proliferação das redes sociais, tudo isso promovendo um inevitável encontro de culturas e contrastes, de futuro e consequências imprevisíveis.
A Fifa de 1950 era comandada por um idealista inocente que queria promover a união entre os países através do esporte (seu nome, Jules Rimet) e a de 2014 é presidida por um visionário de poucos escrúpulos – Joseph Blatter – que para atingir os seus fins faz uso de chantagem e da conivência dos governos estabelecidos, não raro impondo a sua própria lei.
Para isso, conta com patrocinadores e parceiros poderosos, que investem muito dinheiro para conseguir um retorno que agrade a suíços, gregos, troianos e, no nosso caso, alguns brasileiros espertos e inescrupulosos.
É a partir desta situação que a Copa acabou tomando um caminho errado.
Ao invés de começarmos o ano pintando muros e calçadas com as cores da bandeira, de decorar as ruas com alegres bandeirolas verdes e amarelas que servirão para colorir os arraiais e de vestir fantasias alusivas ao evento, o que se vê são manifestações ardidas contra a realização da Copa no Brasil.
A mídia bem que está se esforçando para fazer o brasileiro entrar no clima, produzindo anúncios e slogans onde a promessa de uma vida cor de rosa passa a ter os tons de verde e amarelo, mas por enquanto muitos brasileiros estão se fazendo surdo a estes apelos.
Existe uma declarada campanha contra a realização da Copa no Brasil, mas esta campanha começou com sete anos de atraso. Agora é tarde.
Chegamos ao ponto em que a Copa é um evento irreversível, e qualquer manifestação que se faça daqui para frente não vai trazer de volta a fortuna do contribuinte que foi gasta com a orgia de obras mal feitas e inacabadas, correndo o risco de precipitar uma tragédia envolvendo turistas e pessoas que não têm culpa da improbidade dos organizadores.

                                                                                                

     

 

segunda-feira, 24 de março de 2014




CRAQUES E COADJUVANTES
 

A seleção brasileira de 1958 é considerada uma das melhores da história. No entanto, o time não era formado apenas por craques, pois mesmo os grandes vencedores têm um jogador aqui ou ali que, de uma forma geral, completam o elenco com dignidade, mas preferem deixar o brilho para outros.
É claro que ninguém está sugerindo que grandes formações estejam repletas de “cabeças de bagre”, mas é natural que exista um certo desnível técnico entre jogadores do mesmo time, e que este desnível seja compensado por aquilo que chamamos de conjunto  e eficiência.
A seleção de 1958 saiu do Brasil um tanto desacreditada, mas foi se ajustando, foi engrenando, mesclou um futebol de competição com um futebol de espetáculo e acabou trazendo a Copa Jules Rimet (a primeira de uma série de cinco Copas do Mundo) para a estante de troféus da CBF, na época CBD.
Os jogadores mais elogiados pela imprensa mundial durante e depois do torneio foram Nilton Santos, Didi, Garrincha e Pelé. A seleção praticava um futebol ofensivo, fazia muitos gols (foram 16 em 6 partidas, com uma média de quase 3 gols por jogo) e o ataque fazia jogadas de enlouquecer, carimbadas pelas fintas de Garrincha, pela elegância e acertos de passe de Didi e pelas coisas inesperadas que o garoto Pelé fazia.
E a defesa tomou apenas 4 gols, todos eles nas duas partidas finais (média de 0,6 gols por jogo), com uma firmeza que simplesmente não deixava os adversários chegar às redes.
Ela era formada por Gilmar, De Sordi (Djalma Santos na final), Bellini, Orlando e Nilton Santos. Este quinteto defensivo se desfez recentemente. Orlando morreu em 2010. Gilmar, De Sordi, Djalma Santos e Nilton Santos se foram em 2013.
E o último destes baluartes, Bellini, encerrou a sua carreira na vida na última quinta-feira.
Não, ele não era nenhum craque, e em toda a história da seleção com certeza existiram jogadores mais refinados na sua posição. Ele não foi um Domingos da Guia, mas também não cometeu nenhuma “domingada” (lance em que o zagueiro tentou enfeitar, se complicou e acabou cometendo o pênalti contra a Itália que eliminou o Brasil da Copa de 1938).
Bellini era firme, sério, comprometido, garantia a defesa e dava conta do recado.
Foi ele o capitão que inaugurou o gesto de erguer a taça com as duas mãos, pois ninguém o havia feito nas quatro Copas anteriores, talvez por não possuírem a sua imponência.
Nesta seleção, nem todos eram craques, mas com certeza todos os que jogaram mostraram um time de personalidade, que teve que enfrentar o “complexo de vira-lata”, história inventada pelo jornalista e dramaturgo Nélson Rodrigues após as desclassificações nas Copas de 1934 e 1938, e as acusações de “covardes”, injustamente atribuídas à seleção de 1950, e de “amarelão”, não pela cor da camisa, mas por ter presumivelmente “amarelado” nas duas derrotas seguidas na primeira fase da Copa de 1966, contra a Hungria e Portugal, ambas por 3x1.
Dos 22 da Copa de 1958 ainda estão vivos Pelé (73), Mazzola (75), Moacir (77), Pepe (79), Zito (81), Dino Sani (81) e Zagallo (82).
Apesar de cinco vezes campeã, a seleção brasileira nem sempre teve exibições de gala – exceto em 1958, 1970 e 1982, esta última incrivelmente perdida na semifinal.
Em termos de clubes, o Brasil mostrou ao mundo outros esquadrões quase perfeitos que também tinham ali e acolá um ou outro jogador que sem ser genial fazia parte de um grupo de gênios.
O Santos de 1960 a 1969 teve Carlos Alberto, Zito, Pelé, Coutinho, Clodoaldo e outros bambas, mas também teve Feijó, Dalmo e alguns menos cotados.
O mesmo se diz do Flamengo de Zico, Adílio, Andrade e Junior, que tinha no grupo os menos talentosos, mas não menos importantes Lico e Nunes.