sexta-feira, 26 de junho de 2020





DANTE E BEATRIZ
(Republicado, extraído de IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO)
Augusto Pellegrini

Dante se aproximou da minha porta. Veio devagar, arrastado, sem vontade.
Veio como se estivesse partindo.
A rigor, Dante estava sempre partindo, e “ritornare” não era verbo do seu uso diário, exceto quando se tratava da minha casa.
Dante dava a impressão quitinosa de um besouro, feio, frio e indeciso.
Tinha ele algum dia chegado a chegar? Tinha ele visto uma aurora sem chuva? Tinha ele algum dia visto o sol, tinha ele algum dia saído do fundo do seu bolso junto com o resto de fumo moído e o feltro esparso?
Tinha ele algum dia visto a própria imagem refletida em um espelho ou era simplesmente um espectro como muitos, um objeto sem consistência, um fluido?
Mais uma vez Dante se aproximou da minha porta.
Mesmo que eu não o visse, sentiria o odor forte de maresia e ouviria o ranger de suas dobradiças mal lubrificadas.
Veio devagar, arrastado, sem vontade. Veio como se estivesse partindo.
Dante – a quem o cão fiel decepou uma das mãos numa mordida de satisfação e a quem eu volto minha atenção mesmo com seu hálito fortemente digestivo, tinha saído pela cidade cavoucando bueiros entupidos por detritos negros onde Beatriz poderia estar escondida, esticando o pescoço para dentro de bares suspeitos onde Beatriz poderia estar escondida, visitando alcovas e lupanares onde Beatriz poderia estar escondida, mas jamais olhou para um espelho e nele viu seus próprios olhos emaciados onde Beatriz estava realmente escondida, diafanamente nua, mergulhada na esclerótica, fantasiando a sua visão de fauno traído.


quarta-feira, 24 de junho de 2020





AS CORES DO SWING
(LIVRO)
Augusto Pellegrini

Tenho este livro pronto para publicação há alguns anos, e devido ao “nem ata nem desata” eu resolvi publicá-lo “à prestação”. Toda segunda feira vou postar um capítulo pelo blog “augustopellegrini.blogspot.com” e pelo Facebook. Como são capítulos às vezes longos, o leitor que estiver interessado poderá ler aos poucos, como se faz com um livro impresso em papel, e a sua publicação no blog ajuda a localizar o capítulo com mais facilidade, pois o Facebook pode apresentar acúmulo de postagens. Eu não vou publicar alguns adendos do livro como índice, prefácio, agradecimentos, apresentação da obra ou notas complementares. Vou direto ao assunto e iniciarei a publicação a partir do Capítulo 1. 
  
Para que o leitor tenha uma ideia do que lhe espera, faço aqui uma nota explicativa sobre o conteúdo da obra:
O livro “As Cores do Swing” enfoca a história do swing como estilo de jazz de uma forma simples e didática, utilizando três elementos centrais: a ficção, a realidade e a história.
A ficção mostra aspectos e personagens pitorescos em situações que provavelmente não aconteceram, mas que poderiam ter perfeitamente acontecido, pois se situam dentro da trama. A ficção busca situar o leitor na época, com diálogos que poderiam ter sido travados em algum lugar e pessoas que participaram anonimamente da trama sem alterar o rumo da verdade, tudo fazendo parte do imaginário do autor.
A realidade mostra o que há de verdadeiro na história do swing entre os anos 1920 e 1950, resgatando fatos e acontecimentos verídicos, bem como nomes de pessoas, cidades, locais, etc.
A história age como um todo, buscando situar os acontecimentos do mundo num tempo-espaço paralelo ao evento, e mostrando fatos de natureza política, social, econômica, cultural, intelectual e científica que fizeram parte da história da primeira metade do século XX, especialmente nos Estados Unidos.

Aguardo vocês na segunda-feira, dia 29 de junho, quando terá início a nossa epopeia. Peço aos amigos do jazz que informem outros amigos do jazz para uma visita semanal no blog “augustopellegrini.blogspot.com”, consolidando o nosso encontro musical baseado em palavras e muita história.




segunda-feira, 22 de junho de 2020




SINFONIA NOTURNA
(Augusto Pellegrini)

Ao acender o abajur na mesa de cabeceira
Sentiu na alma uma imensa alegria
A luz com seu fulgor se espalhou pelas beiras
E pôs fim às sombras, como se fosse dia

Observou na mesa os livros que ama ler
Que falam para a sua alma e que lhe dão prazer
Os personagens, todos juntos, lhe fazem companhia
Na solidão da madrugada que ora se inicia

Sentiu o ar da noite entrar pela janela aberta
E ouviu o canto musical e único do vento
Com mil imagens feitas no seu pensamento
Até cerrar os olhos na noturna sesta

À noite, a natureza impera nua, pura e solta
Insetos de asas vão em vêm, fazem a festa
E o gato, enrodilhado no lençol da cama
Faz companhia ao dono, como um cão de escolta

Então, luz apagada, começam a surgir os sonhos
E aí o inverossímil cresce por inteiro
O gato já mudou de lado, e o travesseiro
Guarda o calor do rosto suado e dos seus poros

Amanhece, a luminosidade atravessa a janela
A sinfonia noturna toda se modificou
O gato não mais dorme, tristonho olha a tigela
E aguarda que o dono ponha leite dentro dela


Dezembro 2018











NOVOCABULÁRIO INGLÊS
(Copyright Oxford)

(ver tradução após o texto)

AWESOMESAUCE

Sauces are the new thumbs. When something is extremely good, feel free to call it AWESOMESAUCE. The opposite, something extremely bad or disappointing, would be “week sauce”. Don’t ask me why “strong sauce” hasn’t made the cut.

            “My new bike is AWESOMESAUCE!”
            “The video has gone viral! AWESOMESAUCE!”
            “It’s amazing! AWESOMESAUCE!”
            “The 20 entries all received an overall score of “AWESOMESAUCE” from our panel of  
              estimated judges”

            Opposite to it,

            “His latest movie was totally WEAK SAUCE!

  

TRADUÇÃO

MOLHO FANTÁSTICO
A nova moda de aprovação faz referência a molhos. Quando alguma coisa é extremamente boa, sinta-se à vontade para chamá-la AWESOMESAUCE (molho fantástico). Ao contrário, alguma coisa extremamente ruim ou decepcionante seria “week sauce” (molho fraco). Não me pergunte porque não é usada a expressão “strong sauce” (molho forte) para o primeiro caso.  

 “Minha nova bicicleta é fantástica!”
 “O vídeo viralizou! Fantástico!”
 “É sensacional! Fantástico!”
 “Todas as 20 inscrições receberam uma pontuação geral de ‘Fantástico’ dos nossos juízes
    especializados”.

 Ao contrário,

 “O seu último filme foi uma droga completa”.



domingo, 21 de junho de 2020






SIC TRANSIT GLORIA MUNDI
(Republicado, extraído de A VIDA INGLÓRIA DE TALARICO)
Augusto Pellegrini

Saí do prédio e recebi no rosto um chuvisco fino de garoa fria.
A noite piorara consideravelmente, e esse mau tempo combinado com a sauna tomada à tarde não me iria fazer bem algum.
Entrei de corpo e alma na garoa que neblinava as luzes amarelas dos postes e neblinava a minha já neblinada visão.
Empurrado pelo vento e pela chuva, caminhei dois ou três passos e me deparei com uma pequena multidão como as que rodeiam os mágicos ambulantes, expectadores concentrados e curiosos comentando e observando um fato, alguns chegando outros indo embora, enquanto um guarda apitava e mais longe o que apitava era um trem.
Uma viatura estacionada ao lado da multidão fazia piscar e girar uma lâmpada vermelha afixada no teto, lembrando alguma cena de algum filme de Hollywood.
Aproximei-me para participar do aglomerado no momento em que algumas pessoas saíam deixando um lugar vago na primeira fila, como nos grandes teatros, para que eu pudesse assistir à cena final de mais uma tragédia urbana.
Talarico estava estendido na calçada com um braço ao longo do corpo e o outro acima da cabeça, tendo na mão uma taça de vinho quebrada, os cacos se misturando com o molhado da rua, um filete de sangue escorrendo do nariz e avermelhando o bigode.
A água borrifava sobre o seu rosto como se nevasse nos cabelos arrepiados.
No bolso superior do paletó a nota fiscal da última comemoração, um jantar terminado há meia hora no restaurante do topo do prédio, de onde ele mergulhara para a eternidade.
Não havia nenhum padre a lhe aspergir a água do perdão.
Pelo menos por enquanto.