sexta-feira, 2 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 14 - A MÚSICA CHINESA

O maestro parecia um touro ensandecido, e quase pôs a porta abaixo com um safanão de balançar as estruturas ao adentrar o largo camarim com a força de um furacão.

Absolutamente transtornado, ele partiu na direção do jovem trompetista que fazia no momento algum comentário alegre com um companheiro da orquestra enquanto guardava o seu instrumento no estojo.

O clima era festivo, como sempre ocorria depois das apresentações bem sucedidas. Os músicos tiravam o paletó e afrouxavam o colarinho em meio a alguns goles de água e uma bicada na garrafinha de uísque comunitária – “para relaxar”, diziam eles.

A orquestra dera mais uma demonstração do seu poderio, e o público mais uma vez concedera nota dez para o trabalho executado pelo grupo, que misturava o seu repertório de swing com muita dança, um canto alegre e uma boa dose de diversão.

Mas o maestro estava profundamente indignado.

Alguém tentara fazê-lo de palhaço atirando bolas de papel molhado nas suas costas enquanto ele agradecia os fartos aplausos. E ele sabia que o engraçadinho fora aquele trompetista jovem e insolente que queria aparecer mais do que ele.

Dirigiu-se ao subalterno e, dedo em riste, desandou a chamá-lo de moleque e a exigir respeito, pois que “ele não era da sua laia”.

O trompetista teve uma reação no mínimo inusitada. Apesar da ameaça iminente, encarou o líder com uma expressão de desdém, olhando fixamente nos seus olhos, inclinou a cabeça para o lado e perguntou candidamente:

Whassamatter, boss?  Ya’nervous?

O assim chamado chefe não titubeou e desceu o braço sobre o músico, enquanto os demais circunstantes, surpresos por tão insólita situação, ficaram momentaneamente paralisados.

O rapaz levantou os braços na tentativa de se proteger contra a saraivada de socos que desabavam sobre a sua cabeça como se uma parede de tijolos estivesse ruindo e se afastou celeremente em direção ao balcão em frente ao espelho, adornado por cremes para o cabelo, pentes, copos de café, lenços de papel e algumas partituras espalhadas ao léu.

Quer por falta de condições físicas, quer por respeito ao maestro, quer por medo de receber algum sopapo de graça, os músicos não estavam fazendo muita questão de encarar a confusão, e a coisa se estendeu por alguns segundos, que pareceram horas.

Cansado de apanhar, o trompetista decidiu reagir, transformando o camarim num palco de briga de rua, com socos e pontapés disparados a esmo, ao mesmo tempo em que alguns dos músicos presentes decidiram finalmente se amontoar para tentar conter a fúria de um e o desespero do outro.

De repente, o trompetista vislumbrou um pequeno objeto brilhando no meio da confusão de cremes, pentes e copos de café que estavam espalhados sobre o balcão. Era o canivete que Leroy Maxey usava para apertar parafusos dos elementos da bateria, e que agora serviria bem a propósito. Rápido como um azougue, apanhou a arma e, às cegas, começou a golpear o que parecia ser o seu agressor.

Ferido na coxa, o chefe soltou um berro e deu um pulo pra trás. O sangue começou a se espalhar sobre a calça azul claro, provocando um interessante contraste de cores.

A confusão parou por aí e deu origem ao pânico, logo controlado pela perícia de um dos rapazes que possuía uma razoável noção de primeiros socorros.

A paz foi conseguida graças à gravidade do problema e à intervenção de Jonah Jones e Milt Hinton, dois dos mais respeitados músicos da orquestra, que de pronto assumiram a responsabilidade pelo episódio das bolinhas que tanto havia desagradado o maestro.

Tal qual um leão ferido, e humilhado por se ver subitamente sem calças diante dos seus comandados, com uma toalha molhada amarrada próximo ao joelho pelo esperto enfermeiro ocasional para estancar o sangue, o chefe demitiu o trompetista no ato, mesmo sem ele ter tido qualquer culpa no cartório.

 

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Cab Calloway estava estudando um novo tipo de dança que pretendia incluir no seu vasto repertório ainda naquela semana durante um show no Athens Club.

O local do ensaio era o palco do Cotton Club, prestigiado salão onde ele se iniciara com a sua orquestra cerca de oito anos atrás e que na temporada atual era ocupado por Louis Armstrong e seus músicos. Além de Cab e de dois ou três assistentes que eram pau para toda obra, estavam presentes apenas o baterista Leroy Maxey, que fazia a marcação com as mãos, o pianista Benny Payne, que ajudava na harmonia e o trombonista Tyree Green, que apenas observava.

Alguns empregados da casa estavam ocupados na limpeza do salão e no empilhamento de cadeiras, enquanto outros distribuíam taças e copos sobre o balcão e arrumavam as garrafas nas prateleiras.

Calloway era um especialista naquele tipo de dança que ele próprio havia batizado de jitterbug – que nada mais era do que uma versão mais comportada do lindy hop, posto que ele jamais se plantava de pernas para o ar, mas deslizava graciosamente na sola dos pés, antecipando aquilo que vinte anos mais tarde seria apresentado por James Brown e outros vinte anos além pelo pirotécnico Michael “Moon Walk” Jackson.

Um dos empregados do Cotton Club se aproximou de um dos assistentes e falou alguma coisa no seu ouvido. O assistente, com pouco tempo de casa, olhou para o patrão que continuava a exercitar os seus passos e não tentou interromper, buscando apoio no assistente-sênior:

Hey, Jack! Tem um cara lá fora querendo falar com o patrão. Diz que é músico”.

No que Jack, diligentemente, chamou o empregado do clube e deu algumas instruções. Um minuto depois, o rapaz voltou e disse que o intruso se chamava “não-sei-o-quê Gillespie” e que queria falar com Mr. Calloway.

Maxey interrompeu a batida de mão e Cab interrompeu a dança numa posição que seria cômica, não fosse a sua expressão de aborrecimento. Alguns acordes do piano permaneceram no ar.

De uma maneira geral Cab Calloway era uma pessoa afável e cordata, mas naquele dia ele estava particularmente irritado por causa da falta de comprometimento de alguns dos seus músicos, em especial um trompetista chamado Jerry Schwenck, que havia começado há menos de um mês e já faltara a três ensaios e a uma apresentação.

Quebrado o encanto da dança, Calloway fez um gesto para deixar o rapaz entrar.

“Gillespie...”, pensou ele.

Ele já ouvira falar num tal de Gillespie que havia participado da orquestra de Teddy Hill. Tinha boa referência dele como músico, mas havia saído da banda de Hill debaixo de comentários de que não era muito certo da cabeça.

Calloway parecia não ser muito certo da cabeça também, mas sua maluquice era puro jogo de cena. Não é com a cabeça nas nuvens que uma pessoa consegue comandar uma orquestra com tamanha perfeição, principalmente não sendo músico de ofício. Mas ele provinha de uma boa cepa, tivera uma educação esmerada e amadurecera o seu talento natural em escolas de renome, conseguindo perfeitamente gerenciar as atividades dos músicos, pois possuía um grande senso de liderança e um ouvido musical dos mais apurados.

Seu cabelo cuidadosamente desalinhado e fixado com brilhantina e suas roupas extravagantes eram apenas um pretexto para fazer o público ficar ligado na sua performance, que misturava dança, sapateado e um canto alegre e cheio de maneirismos.

Ele agora tinha diante de si um rapaz na casa dos vinte anos (vinte e dois, como seria mostrado mais tarde) que falava com muita desenvoltura.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

 


NOVOCABULÁRIO INGLÊS

(Copyright Merriam-Webster)

 

(ver tradução após o texto)

 

NOMOPHOBIA

 

Have you ever felt very uncomfortable just because you had to go to the supermarket and realized you forgot your cell phone at home? Well, this new disease is called NOMOPHOBIA, a humorous word for the fear or anxiety caused by not having a working mobile phone. Its name comes from “No mobile phobia” and it has been considered a symptom or a syndrome of problematic digital media use in mental health, the definitions of which are not standardized.

 

 

            “Now a new dread has emerged – NOMOPHOBIA – the fear of not having a mobile phone signal.”

 

            “It’s been dubbed NOMOPHOBIA – and sufferers say they get stressed when they are unable to make a call.”

           

            “We’re suffering from a condition that has been called NOMOPHOBIA – a morbid fear of being without a mobile phone.”

 

                         

 

TRADUÇÃO

 

NOMOFOBIA

Você já se sentiu incomodado porque estava no supermercado e percebeu que tinha deixado o celular em casa?  Bem, esta nova doença se chama NOMOFOBIA, uma palavra bem-humorada que indica medo e ansiedade causados pela falta de um telefone celular à mão. O nome vem do inglês “No Mobile Phobia” (Fobia pela falta de um celular) e esta sensação é considerada um sintoma ou síndrome da interferência da mídia digital na saúde mental, cujas definições ainda não foram padronizadas.

 

“Um novo pavor acaba de se instalar – NOMOFOBIA – o medo de o seu telefone celular não estar funcionando”.

“A gente chama isso de NOMOFOBIA – e aqueles que padecem desse mal dizem que eles ficam estressados quando não conseguem completar uma ligação”.

“Estamos sofrendo de uma doença chamada NOMOFOBIA – um medo mórbido de ficar sem o telefone celular”.

 

 

 

   

 

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

 



AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

FINAL DO CAPÍTULO 13 - O SWING E O JAZZ

           É interessante notar que diversas orquestras utilizaram o idioma e o estilo de Duke Ellington – caso de Charlie Barnet, Hal McIntyre e Dave Mathews – mas acabaram sendo rotuladas apenas como “orquestras de dança” porque jamais chegaram perto da sua genialidade.

Louis Armstrong, que a princípio via o crescimento do swing com certo desprezo por considerá-lo uma apropriação indevida dos músicos brancos sobre a música negra, acabou se rendendo às evidências e terminou por declarar que, naquilo que lhe dizia respeito, jazz e swing eram realmente a mesma coisa, e citava como exemplo os seus próprios arranjos para as músicas “Dinah” e “I Cover The Waterfront”, onde a orquestra tinha uma atuação absolutamente “swingada” mesmo dentro de uma interpretação no estilo predominantemente chicago.

Armstrong completava, dizendo que “a nomenclatura nunca tinha sido o ponto forte do jazz”. No início do século vinte, a música de Buddy Bolden era chamada de jazz, de blues e até de ragtime, e o mesmo aconteceu com Jelly Roll Morton antes de 1920. O próprio traditional jazz teve outras denominações e foi também conhecido por stomp, jazz hot, hot music, new orleans, dixieland, primitive jazz e oldtime jazz. Outros estilos pianísticos tocados na época, como o barrelhouse e o honk-tonk, e mais tarde o boogie-woogie, também eram rotulados como jazz, com o qual mantinham certas similaridades.

Nada mais estranho, portanto, em termos de nomenclatura, do que tentar dissociar o swing do jazz, porque eles são, se não exatamente a mesma coisa, pelo menos parentes muito próximos.

O saxofonista Benny Carter tinha a mesma posição a respeito do assunto. Para ele, uma possível diferença entre jazz e swing residisse apenas na forma como a música era “utilizada”.

O jazz da época (leia-se new orleans, dixieland e chicago) era destinado a um público que preferia prestar atenção no trabalho dos músicos, ouvindo cada detalhe e apreciando a música com movimentos corporais que normalmente se resumiam à marcação do ritmo com gestos de cabeça, batidas com as palmas das mãos sobre os joelhos, ou pancadas com os pés no chão, seguindo o compasso da música, uma ou outra gargalhada de satisfação. Era o negro reverenciando a música negra.

O swing, no entanto, era perfeito para aqueles que gostavam de dançar e sentir o som maciço penetrar pelos poros, sem necessidade de se fixar atentamente na orquestra. Como qualquer outro tipo de música dançante, o swing permitia ao público se manifestar ruidosamente e manter conversas paralelas mesmo enquanto os músicos executavam a sua parte. E, apesar do esmero com que os músicos se vestiam, a atenção das pessoas era geralmente destinada para elas mesmas, seus trejeitos e os seus novos passos inventados. Como se faz numa danceteria do século vinte e um.

Assim, de acordo com Benny Carter, “a palavra ‘jazz’ representava o som que saía de cada instrumento individualmente, movido pela emoção do instrumentista, e a palavra ‘swing’ representava o som total resultante de toda a equipe de executantes, orientada pelo arranjador e pelo maestro”.

O vibrafonista Red Norvo, que comandou diversos quintetos e sextetos, executava swing sem preparar os arranjos, e tudo nascia espontaneamente como acontece com boa parte dos músicos que tocam jazz. Norvo achava que não procedia a ideia de que “swing” significasse “música feita exclusivamente sobre partituras” e considerava que a liberdade do músico de jazz poderia ser usada por a ele sem que houvesse qualquer interferência na interpretação e no resultado final.

Ao contrário de Armstrong e de outros músicos da velha guarda de Nova Orleans, Red Norvo sempre falou do swing com admiração, e considerava o seu advento como “um aprimoramento daquela desagradável doutrina do dixieland” (sic), por mais absurda que possa parecer esta afirmação. Mas Norvo era branco e havia nascido em Beardstown, no Illinois, portanto não teve a oportunidade de participar da festa que se desenvolveu na Louisiana no início de tudo e não foi, assim por dizer, contagiado pelo som dominante do stomp.

Outro vibrafonista, Lionel Hampton, que mais tarde se transformaria também em bandleader, garantia que o swing que ele tocava na orquestra de Benny Goodman era jazz autêntico. Esse jazz ficava ainda mais autêntico quando o swing era tocado pelo quarteto de Goodman, com os dois, mais Teddy Wilson no piano e Gene Krupa na bateria, ou com o efêmero quinteto que contava com a qualidade do guitarrista Charlie Christian.

O que fica claro, e parece mesmo definitivo, é que o jazz como gênero é um todo, sendo o swing uma parte desse todo, assim como os outros estilos anteriores ou posteriores a ele.

O jazz veio do canto do negro, do blues e do gospel e recebeu as influências da música de banda militar, das orquestras europeias e do ragtime. A partir daí, ele fez surgir uma diversidade de estilos, e de estilos dentro de estilos, sem que nenhum estilo tenha se sobreposto a outro. Pelo contrário, cada estilo emergente sempre assumia e admitia elementos provenientes dos outros já existentes.

O swing fez o jazz progredir em direção à modernidade exigida pela tecnologia, pelas engrenagens sociais do século vinte e pelas demandas da “flaming youth” (“juventude inflamada”), jovens que chegavam à pós-adolescência com uma visão artística e cultural diferente da geração anterior e que começaram a impor seu estilo musical preferido no transcorrer dos anos 1920.

Assim, o swing foi se impondo e começando a fazer parte de uma família que teve como ancestral o jazz tradicional (new orleans, dixieland, chicago) e que teria como descendentes todos os estilos do jazz moderno (bebop, hard bop, cool jazz, east coast, west coast, progressive, third stream, mainstream, funky) e do jazz contemporâneo (free jazz, jazz fusion, jazz funk, acid jazz e todas as demais tendências).

 

 

 

domingo, 27 de setembro de 2020

 

         Foto: Duke Ellington e Billy Strayhorn trabalhando em composição e arranjo


AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 13 - O SWING E O JAZZ
            (continuação)

Intérpretes e especialistas sempre mantiveram uma saudável discussão sobre este tema – swing ou jazz? - principalmente na época em que a transformação se processava.

O crítico Robert Goffin tinha um duro conceito a respeito da polêmica. Para ele, o swing nada mais era do que “a comercialização e a prostituição do verdadeiro jazz, escrito exclusivamente em partituras para castrar a criatividade dos músicos”.

Este conceito chegou a ser compartilhado por muitos críticos de música e por muitos músicos de jazz, principalmente os egressos do jazz tradicional. Alguns artistas negros, inclusive Louis Armstrong e King Oliver viam a princípio a nova música com certo desdém, por considerarem que a sua excessiva popularização era feita tão somente para fazer a classe média branca se divertir, sem nenhum compromisso com o jazz.

Outros músicos, porém, principalmente aqueles que prontamente se engajaram no novo projeto, como Ellington, Henderson e Lunceford, sustentavam que o swing havia lapidado no jazz um elemento de brilho que o jazz possuía apenas na sua forma bruta e que se traduzia no balanço (“swing”, em inglês) e na orquestração. Ellington fazia uma pequena ressalva em termos de abordagem (“jazz is music, swing is business”), mas não fazia distinção sobre a estética musical em si.

Esta corrente de pensamento afirma que o advento do swing proporcionou ao jazz tocado na época a possibilidade de aparar seus pontos rústicos, de aperfeiçoar e arredondar o seu beat e de ingressar numa era de modernidade, inclusive com o aparecimento de solistas que se sobressairiam como líderes dos seus naipes e que iriam futuramente facilitar o aparecimento de um outro estilo que viria acalmar e intelectualizar o jazz e colocar os ouvintes novamente sentados – o bebop.

O trompetista Roy Eldridge, que foi uma espécie de elo entre o jazz tradicional e o swing, não via diferença alguma entre os dois estilos. De acordo com ele, jazz e swing eram dois nomes diferentes para a mesma coisa, e o surgimento do swing nada mais era do que a consequência natural da evolução a que tudo está sujeito na vida, inclusive a música.

O maestro Fletcher Henderson concordava com Eldridge, mas fazia uma ressalva. Como arranjador, Henderson achava que o swing era uma música premeditada, estudada em detalhes e desenvolvida de uma forma que padronizava a execução, isto é, praticamente não havia diferença entre duas apresentações quando a mesma orquestra tocava a mesma música em diferentes ocasiões. O jazz, no entanto, era mais espontâneo e intuitivo, e cada apresentação resultava num som diferente que dependia do “feeling particular dos intérpretes naquele dia.

De qualquer modo, tanto num aspecto como no outro, o que contava sempre era a concepção rítmica, a sonoridade, o drive, a unidade do grupo e o sentimento do arranjador quando ele propunha ou escrevia as partes de cada solista.

O swing entendeu o momento especial por que passava a música americana: as pessoas queriam dançar, e dançar significava lotar os salões construídos com todo o requinte e conforto para esse fim. Mas a diversão não se limitava à dança, como denunciavam os puristas descontentes; as pessoas não dançavam o tempo todo e, ao pararem para descansar ou molhar a garganta, se deparavam com músicos que faziam o espetáculo, com a leitura fantástica dos solistas e com uma coreografia que fazia ressaltar a qualidade do grupo. Aí, a música e o espetáculo falavam mais alto do que a dança.

Fala-se também que o swing, por ser escrito em partitura, podia ser apresentado de uma maneira mais sofisticada e elaborada do que o jazz da época, que era mais rude e, portanto, menos sujeito a filigranas. Isto também não passa de uma grande bobagem.

Os solos de trombone de Tommy Dorsey, por exemplo, apesar de dotados de grande técnica e estilo não tinham nada de complicado na sua execução (“Song Of India”, “Where Did You Learn To Love?”, “Once In A While”) se comparados a certos solos de trompete de Louis Armstrong (“Stardust”, “I Got Plenty O’ Nuttin’”, “I Cover The Waterfront”) ou do piano de Jelly Roll Morton (“The Pearls”, “I Thought I Heard Buddy Bolden Say”). A música “Woodchopper’s Ball”, swing de Woody Herman e Joe Bishop, por mais explosivo que fosse, ficava quase linear em comparação com as inflexões do tradicionalíssimo “Jazz Me Blues” de Tom Delaney.

Aqui cabe mencionar o exemplo único de Duke Ellington. Apesar de ter formado a sua primeira banda (The Duke’s Serenaders) em 1917 – portanto em plena efervescência do estilo new orleans – e apesar de já se encontrar em Nova York em 1921 – portanto sujeito a toda influência que a música tocada na cidade sofria da que era executada em Chicago, onde pontificavam King Oliver, Kid Ory e Johnny Dodds – ele jamais se deixou influenciar pelo jazz tradicional, exceto no que diz respeito à forte presença do blues.

Quando, em 1923, estimulado pelo pianista Fats Waller, Ellington começou a compor e a tocar profissionalmente, ele adotou um estilo alternativo criado por ele próprio, sem usar ninguém como referência. Com os Washingtonians – sua primeira experiência como líder de uma orquestra de verdade – Ellington usou e abusou de sons exóticos extraídos das surdinas e de um beat original, um embrião do que seria o “jungle sound”, que se distanciava da música dançante típica.

Talvez devido a essa autenticidade, Ellington tivesse sido tão admirado pelos próprios músicos das décadas de 1920 e 1930, pois ele conseguira exercer uma liderança dentro da música norte-americana sem fazer concessões e sem copiar as orquestras existentes.

É possível, no entanto, que o reconhecimento do público tivesse demorado um pouco mais a se concretizar se, por ocasião da gravação de “Lazy Rhapsody” e de “Moon Over Dixie” em fevereiro de 1932, Ellington não tivesse decidido gravar uma terceira música, a já comentada “It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)”, apenas a título de registro.

Nascida de uma maneira discreta, “It Don’t Mean A Thing” caiu no gosto popular e acabou revolucionando a música de orquestra em dois aspectos distintos.

Primeiro, como já mencionado anteriormente, foi no título e na letra dessa música que o termo “swing” ficou definitivamente marcado. Segundo, numa consequência lógica, a música acabou sendo o primeiro swing composto por Ellington, talvez até sem ele disso se aperceber (outros viriam mais tarde, com a mesma qualidade e o mesmo swing, como “Satin Doll”, “Don’t Get Around Much Anymore”, “I’m Beginning To See The Light”, “I Let A Song Go Out Of My Heart”, etc).

           Ellington, que não tocava nem o jazz tradicional nem o swing dançante, conseguiu colocar na sua música o sentimento, a essência, a criação coletiva e o balanço tanto de um quanto de outro. Assim, ele foi a resposta muda (e musical) para aqueles que criavam uma barreira entre a “superficialidade” do swing e a inventividade do jazz, pois não tocava especificamente nem uma coisa nem outra, mas fazia os dois com absoluta perfeição!

 



EU SOU SUA MÃE...

(excerto republicado)

           No relativo silêncio do bar, localizado em uma travessa tranquila a três quarteirões da avenida principal, com o tráfego rigorosamente reservado aos moradores, uma voz estridente falava – um outro só ouvia e assentia – o que facilitou a minha audição. Não me senti indiscreto, afinal eu já estava lá antes de eles chegarem, e na falta do que fazer, prestei atenção no colóquio, na verdade um quase monólogo.
          O sujeito falante fazia comentários sobre alguém que logo percebi tratar-se de sua filha chamada Ana Clara, “que só tem dois anos, mas já é esperta e tagarela como quê!”
          O homem teceu longos elogios à beleza e inteligência da pequena, descendo a detalhes que só interessam aos pais, enquanto o outro apenas ouvia entre o desinteressado e o enfadado, e emitia uma ou outra interlocução.
           “Todos sempre dizem que minha filha é muito parecida com a avó – minha mãe. Eu, especialmente, sempre notei certos trejeitos muito particulares que fazem lembrar minha mãe, como inclinar o pescoço para o lado esquerdo quando se intrigava com alguma coisa, ou apertar a ponta do nariz quando estava contrariada.
          Minha mãe morreu há seis anos, mas eu continuo morando na mesma casa em que vivíamos, por ser um bem de família e eu ser um filho único. Eu ainda sinto a sua presença na sala, como se ela estivesse lá, no mesmo lugar, vendo televisão, ou mesmo à noite, diante da porta fechada do quarto onde ela dormia.
          Minha mulher diz que não acredita nessas coisas e que é para eu deixar de bobagem. Chegou a mudar os móveis de lugar e a transformar o quarto que minha mãe ocupava em dispensa e adega.
          Diz também que há muito exagero quando eu me refiro à sua semelhança com Clarinha. ‘Uma criança se parece com outra criança, não com uma velha de oitenta anos’, disse ela. Eu me senti um pouco indignado com a forma como ela se referia à minha mãe, mas assenti, mudo, para evitar maiores aborrecimentos.
          Outro dia Clarinha estava fazendo uma malcriação qualquer, dessas que os pais toleram com um riso amarelo e que os amigos sentem vontade de pespegar logo umas palmadas. Birra, dizem os psicólogos, manha, dizem os avós.
          Mas a malcriação começou a ficar insistente e eu comecei a perder a paciência. Afinal, eu havia tido uma educação que, se não foi demasiadamente severa, pelo menos foi muito firme, e essa educação não admitia discussões com meus pais sobre quem estava certo e quem estava errado.
          Assim, pela malcriação e pela tentativa de me vencer pelos gestos e pelos resmungos, eu comecei a repreendê-la, primeiro carinhosamente, como convém à repreensão a uma criança de dois anos e meio; depois, como a malcriação aumentava, procurei com mais empenho usar a razão, e finalmente apelei para a autoridade, talvez de uma forma equivocada e precoce, considerando a idade da menina.
          Eu falei para ela, de uma forma bastante incisiva, elevando o tom de voz e brandindo o dedo indicador – ‘minha filha, me respeite, porque eu sou o seu pai!’.
          Fez-se um pesado silêncio, e eu temi pela consequência da minha súbita explosão – um muxoxo magoado ou talvez um choro convulsivo.
          Ela, porém, permaneceu estática por um momento, depois olhou seriamente para mim, apertou a ponta do narizinho, pendeu o pescoço para o lado esquerdo e disse, com uma seriedade e um tom de voz que nada tinha de infantil:
          ‘...E eu sou a sua mãe!’.
          Calei, não ser ter sentido antes uma súbita onda de calor e frio a me subir pela espinha.
          Minha mulher a tudo observava, boquiaberta e com o olhar imóvel, encostada no batente da porta”.