sábado, 24 de novembro de 2018





A AVAREZA
(Excerto)

A coisa mais bela que já se escreveu sobre a avareza, se é que pode ser considerada bela uma narrativa sobre tão grave defeito, foi feita por Charles Dickens, no seu Conto de Natal.
A sovinice do velho Scrooge, o fantasma do seu sócio Morley, as visagens dos Natais passados, a premonição do próximo e o espectro do futuro dão uma dimensão de ternura e horror poucas vezes vista na literatura universal como se, num relance, casássemos Poe com Grimm.
Assim, qualquer tentativa de discorrer sobre este pecado capital será uma mera aproximação do impacto já conseguido por Dickens, além do fato incontestável de que a avareza hoje em dia já não representa tantas maledicências divinas como nos ensinou a Santa Madre Igreja.
O próprio Estado cultua e aconselha a avareza na sua forma mais pura – a poupança. Administradores e economistas são unânimes em afirmar que uma usurazinha bem planejada não faz mal a ninguém e talvez possa servir de antídoto a um eventual e inesperado dissabor financeiro.
O vício capital seria não a usura em si, mas os juros que temos que pagar aos bancos, às casas de crédito, aos agiotas e a outros credores e entidades, que por isso deveriam ser castigados com pesadas correntes amarradas ao pulso ou condenados ao fogo do inferno.
De certa forma, a avareza em si fica isenta de culpa, porque se depender dele, o avarento não gasta, não empresta e não dá, e é um ser absolutamente inofensivo se você passar ao largo dele sem pedir nada. Basta deixá-lo sossegado dentro do seu cofre contando a sua fortuna que ele não o ameaçará de inadimplência nem buscará executar a sua dívida.
O avarento cuida do que é dele, não reparte com ninguém nem o seu sorriso e a sua alegria, e anda escondido como um doente contagioso. Já o usurário oferece ajuda para depois poder arrancar até o couro do infeliz que caiu nas suas malhas e chama o incauto como o faz uma sereia com o seu canto, o hipnotizando como faz a aranha à mosca.
Avarentos, usurários, sovinas e mãos-de-vaca, apressai-vos em mudar o seu modo de vida!
Estejam atentos para o Dia do Juízo, já que o dia da falta de juízo são todos os dias!

terça-feira, 20 de novembro de 2018







ENTRE O CINZA E O COR-DE-ROSA
(Augusto Pellegrini)

Olho o mundo cor-de-cinza
Com minhas lentes cor-de-rosa
E tento, com este artifício
Transformar todo esse vício
Em uma coisa vistosa

Mas quando ele é cor-de-rosa
E eu o vejo com lentes cinza
Ele vira coisa à toa
pois transforma as coisas boas
Num cenário de ranzinzas

Pessoas más e invejosas
Se ponho através das lentes
Deixam de ser perigosas
Ficam dóceis e decentes

E as pessoas de alta estima
Se olhadas na cor cinzenta
Conseguem ser confundidas
Com uma alma peçonhenta

Tudo em volta é desespero
Só meus óculos me acalmam
E convertem desmazelo
Em flores que nunca acabam

Estes óculos influem
Na mudança da consciência
Pois transformam amor em ódio
E impiedade em clemência

Comecei a busca rósea
De um tesouro à deriva
Pra tornar mais atrativa
Esta vida de problemas
Me vi vivendo o dilema
Entre o fato e a expectativa

O que achei, do lado cinza
Foi um destino, embora incerto
Fui em frente, peito aberto
Não passei do desejado
Recuei, amedrontado
Sem ter salvação por perto

Foi terrível a experiência
De ver dois lados diversos
De uma só realidade
A partir da cor da lente
Vi dois mundos diferentes
A mentira e a verdade

Outubro 2018