PÁGINAS ESCOLHIDAS
Do
livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)
A MACHADINHA
O homem tira o boné, atira a valise para o canto da
cama, desveste o casaco, tira do bolso um crucifixo e o coloca num porta-lápis.
Depois tira a camisa xadrês e a joga sobre uma cadeira.
A camiseta encardida traz manchas vermelhas e respingos de sangue, e as mãos
também estão meladas com o sangue entranhado sob as unhas mal-aparadas.
Há um rastro escarlate também no rosto, tingindo a barba de uma semana, e
aquele cheiro peculiar e nauseabundo se espalha pelo seu corpo e pela sua alma,
pela sua boca e pela sua mente.
Ele se senta pesadamente ao pé da cama e olha para o chão em direção às botinas
enlameadas e à barra da calça molhada e puída, depois ergue os olhos miúdos e
se depara com a bacia de ágata cheia de água onde ele vai lavar os seus
pecados.
Olha para o teto escuro e para a luz fraca que mal ilumina o ambiente e pensa na
vida que há anos vem levando.
Está farto das madrugadas tormentosas e do cheiro da morte. Está farto de sangue,
de vítimas, da dor, do gemido surdo, da faca afiada que rasga ventres, da machadinha
a dilacerar ossos, e da mão rubra que ceifa vidas.
Está farto da sua sina. Está farto de sangue… sangue… sangue…
Logo que amanhecer ele irá de uma vez por todas ao escritório do Frigorífico Machado
& Cruz pedir as contas do serviço sujo que faz há anos como magarefe no
matadouro da cidade, todas as noites decepando membros, sangrando e esfolando
bois.
(Vicissitudes de um “serial killer”
atormentado)