EU
E A MÚSICA - RIO
ANTIGO
(Augusto Pellegrini)
A
visita do estranho poeta
Parte
2
Veio a noite, eu estou com a televisão ligada falando para as paredes enquanto
leio um delicioso livro – “A Lua Vem Da Ásia” de Campos de Carvalho – quando ouço
um bater de palmas no portão.
Da porta da sala vislumbro a silhueta do meu novo amigo-poeta, faço-lhe a
devida vênia e carrego com ele para a sala de jantar, onde meu filho e seu amigo
confabulam sobre uma nova composição para a banda de pop-rock em que tocam.
Nonato Buzar é um universalista.
Para ele não existem jovens nem velhos, e as suas músicas mesclam irreverência,
força e ternura, podendo ser apreciadas e tocadas tanto por um grupo de menestréis
setecentistas como por uma banda de rock inconformista.
Ele pede uma dose de uísque e um violão.
Tudo à mão, é atendido com reverência e tem a seu dispor uma plateia atenta
composta por três pessoas. Bebe a primeira dose como um retirante sedento e a
segunda com um pouco menos de sofreguidão. Só então se lembra do gelo.
O uísque é de boa procedência – Chivas Regal 12 anos – ainda não havia sido
inaugurado, e Nonato prova e aprova.
Entre um gole e outro, com pouca conversa, sucedem-se as canções, debaixo de um
silêncio respeitoso e sob o olhar de quem flerta com o inesperado.
“Eu estou no céu ou
estou no carrossel
De pé pro ar, sou barquinho de papel
À beira-mar, sou criança outra vez
Vi você corar, no espelho sua saia levantar
Na montanha russa vi você gritar
E eu no banco de trás”
(“Dez Pras Seis” – Nonato Buzar e Paulo Sérgio Valle)
“...Dizendo que eu
devia vestir azul
Que azul é cor do céu e seu olhar também
Então o seu pedido me incentivou
Vesti azul, minha sorte então mudou
Vesti azul, minha sorte então mudou”
(“Vesti Azul” – Nonato Buzar)
“Nada pra fazer,
apenas ver
Que a paixão chegou por causa de você
Quando se descobre ser capaz de amar assim
É alma , é paz, é fim”
(“Coração Na Voz” – Nonato Buzar, Nosly e Gerude)
“Num dia igual a
qualquer um
Eu despertei dentro de mim
Se fez manhã no meu viver
Se fez igual a terra e o céu
Amanheceu onde eu segui
Me despedi dos rumos onde andei”
(“Assim Na Terra Como No Céu” – Nonato Buzar, Paulinho Tapajós e
Roberto Menescal)
“Manhã despontando lá
fora
Manhã, já é sol, já é hora
E os campos se abrindo em flor
Que é preciso coragem
Que a vida é viagem
Destino do amor”
(“Irmãos Coragem” – Nonato Buzar e Paulinho Tapajós)
“...Camisa verde-claro, calça Saint Tropez
Combinando com o carango, todo mundo vê
Ninguém sabe o duro que dei
Pra ter fon-fon trabalhei, trabalhei”
(“O Carango” – Nonato Buzar e Carlos Imperial)
“Menininha
sai do portão
Vem também brincar
Vem pra roda, me dê a mão
Traz o seu olhar
Vou girando na roda
Vou cantando à sua espera
Quem me dera um dia ter seus olhos
Cor da primavera”
(“Menininha Do Portão” – Nonato Buzar e Paulinho Tapajós)
“Agora que você
conhece Charlie Brown
Foi convidado a conhecer nossa nação
Achei legal e resolvi também tornar universal
E exportar mon ami João”
(“Mon Ami João” – Nonato Buzar e
Durval Ferreira)
“...Um pregão de
garrafeiro
Zizinho no gramado, eu quero um samba sincopado
Taioba, bagageiro, e o desafinado
Que o Jobim sacou
Quero o programa de calouros com Ary Barroso
Lamartine me ensinando um lá-lá-lá-lá-lá gostoso
Quero o Café Nice
De onde o samba vem”
(“Rio Antigo” – Nonato Buzar e Chico Anysio)
No silêncio da noite, entre goles e canções, apenas meia
dúzia de palavras foram pronunciadas, embora o mestre falasse para si mesmo, os
ouvintes não ousando quebrar o encanto da audição.
As palavras vinham com a música.
Fim de uísque, início de madrugada, o poeta se levanta, o semblante aliviado,
mas cansado, e me agradece com um abraço e um cálido “boa noite”.
E vai de encontro ao alvorecer, seu parceiro de vida.
O violão, saudoso, repousa sobre a cadeira.
-0-
Nonato Buzar morreu no Rio de Janeiro, cidade que ele
escolheu para viver, em fevereiro de 2014 com 81 anos. Deixou muitas saudades e um livro de crônicas
que eu não li – “Planeta Neus”.
E deixou também um vazio na cadeira bem ao lado do meu computador, junto à mesa
que ainda recende ao uísque generosamente derrubado naquela noite de festa.
In memoriam.