A JUSTA ENTRE O ZÉ DA
ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO
(Conto premiado em 1º lugar no XXIII
Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À
Noite, Todos os Gatos”, em 1998)
(Parte 2)
É nessas paragens que reina absoluto Zé
da Rosinha, um cantador de sete costados e às vezes de sete cordas, filho de
dona Rosinha engomadeira, o mais talentoso entre os oito paridos, um verdadeiro
Cícero na eloquência e um corisco na velocidade com que faz da viola a cítara,
um engenhoso vate que com sua garganta afinada à base de conhaque com mel-cabaú
improvisava seus versos ferinos e impressionava com suas rimas bem colocadas
qual um Caruso da caatinga com a veia de Emílio de Menezes.
Zé da Rosinha, como todo grande
cantador, podia passar horas enfileirando versos de cordel decorados, de cor e
salteado, de trás pra frente e de um lado pro outro, mas também improvisando
com muita malícia e picardia, fazendo enrubescerem as mocinhas e as mães das
mocinhas e fazendo pigarrearem os pais das mocinhas e os namorados das
mocinhas, todos olhando para o alto disfarçados de nuvem.
Zé da Rosinha se esmerava em rimas,
fazendo céu com bordel, mata com sirigaita e cebola com baitola e lamentava não
existir nas redondezas outro cantador de respeito “pra mode fazê um disafio”.
O nosso poeta-cantador, além de invulgar
habituée da mesa do bar, para amuo do
Celestino, e da porta da igreja ao final da missa, para o desagrado do Rolho,
dava também suas audições perto da janela da delegacia, não sem antes fazer uma
afinada revisão mental a respeito da galhofice dos seus versos matreiros a fim
de não despertar a ira do cabo Lupércio e do delegado Vicente e não ser
obrigado a passar algumas horas emparedado a dois por dois naquele aposento mal
arejado e cheirando a arenque defumado que eles chamavam de xadrez.
Casou a Dalva, filha do Zé Lutero, com
Mano Bento, lá vai Zé da Rosinha pra musicar a festa. Seu Eurico voltou de
viajem mais rico, lá vai Zé da Rosinha entoar odes à burra. Coronel Pelópidas
assou mais um churrasco para os colhedores de cana, lá vai Zé da Rosinha
encomendar a alma do bode. Dona Jovina se recuperou do nó nas tripas, lá vai Zé
da Rosinha desatar seus nós dolentes nas cordas do seu alaúde.
Zé da Rosinha era o tom maior que movia
as engrenagens da vida pacífica de Catolé do Mato, um tangará atrevido, um
Guido D’Arezzo dos trópicos, um menestrel de dedeira.
Até que um certo dia o si-lá-sol calou,
o verso impudico quebrou, Demóstenes mordeu a língua e engoliu a pedra, o
colibri amanheceu de voz pífia.
Roubaram a viola do Zé da Rosinha.
-0-
Agostinho era a vergonha de Catolé do Mato.
Sua fama de safado já ultrapassara as
fronteiras das cidades circunvizinhas, de Cajazinho a Ximangó, mas como os
delitos cometidos eram todos de pequena monta, as suas penitências usuais era
ouvir as perorações do Rolho, de quem fugia lépido como um azougue enquanto o
pároco, redondo como um barril, se esbaforia ao sol com o suor porejando na
calva e o vento abanava seu hábito preto, levantando a poeira calcinada da rua.
Fugia também dos conselhos do bem vivido
Petrônio, oitenta e tantos anos no lombo e muita erudição às custas das colunas
de jornal, e evitava qualquer confronto direto com Lupércio, que acompanhava as
suas proezas à distância com uma boa disse de paciência.
Não obstante todos estes cuidados, era
de fato impossível imaginar que outro, a não ser ele, pudesse roubar no peso da
batata, no recolhimento do óbolo por ocasião da Santa Missa ou no troco mal contado.
Agostinho trabalhava como ajudante do
Próspero, dono de uma próspera oficina do tipo conserta tudo e todo mundo se admirava
da prosperidade crescente do dono mesmo tendo tal figura a lhe ajudar. Alguns
olhavam com desconfiança para patrão e empregado suspeitando que fossem
comparsas de algum crime muito rendoso feito às escondidas, arquitetado na
calada da noite de maneira impecável.
O fato é que Agostinho tinha aquela
qualidade indispensável a qualquer escroque que tenha a intenção de subir na
vida – era melífluo como um duende, insinuante como uma cobra, magnetizante
como um prestidigitador e popular como artista de capa de revistas femininas, e
isto servia como alternativa para eventuais trambiques, trapaças ocasionais ou
esquecimentos lucrativos.
Chegou até a namorar com a Dalva, filha
do Zé Lutero, austero magarefe, que ao ser informado da má noticia esfolou o pobre
do boi morto com tal violência a ponto de o funcionário do matadouro, impressionado,
correr para implorar a Agostinho que rompesse o engajamento sob pena de ter os
bofes rompidos por um terçado bem afiado.
Zé Lutero lançou impropérios regados a
sangue de boi, nem tanto preocupado pela discutida honestidade do ladravaz, mas
pelos parcos recursos que ele poderia oferecer à donzela como dote de casamento
– Agostinho não tinha onde cair morto e seria um peso morto nas suas costas,
pois estava de olho não propriamente nas graças da Dalva mas principalmente em
ter onde se encostar e no futuro – quem sabe? – participar do espólio do bem fornido
sogro.
A visão pouco confortável de Zé Lutero
irado, tendo à mão um formidável facão ou quem sabe de uma cartucheira de dois
canos foi definitiva, e Agostinho escafedeu-se de volta às suas origens, abrindo
vaga para Mano Bento preencher as necessidades da mocinha prendada.
No bar do Celestino, o caderno de fiado
já desfiava páginas de pendura alimentado pela candura dos pedidos – “amanhã eu
pago menos uma parte, pois fiz um negócio da China com o Aguiar”... – e todos,
de Celestino a Aguiar vão entrando na história como Pilatos no Credo enquanto o
caderno se avolumava na coluna do “haver”.
Tudo corria aparentemente sob controle
nesse clima ameno de Catolé do Mato aos quarenta graus à sombra, a cidade se movimentando
lógica como uma máquina, a noite sempre chegando após o dia, a fumaça das
queimadas se elevando aos céus, os esgotos destratados correndo para rio,
Hilário envelhecendo civilizadamente como as suas piadas e o Rolho engordando a
olhos vistos como a filha do Zé Lutero um mês após o casamento, para a
desconfiança de Inácio, o obstetra, e de dona Jovina, a do nó nas tripas.
O bonde andava em cima dos trilhos, ou
andaria, caso houvesse bonde, os intestinos funcionavam regularmente, o relógio
da igreja atrasava o seu minuto diário regulamentar, Covas andava já meio
preguiçoso por falta de alguém para enterrar, e até as peraltices de Agostinho
tinham o gosto folclórico de pura traquina, quando de repente irrompeu o
vendaval.
O ar ficou irrespirável, o relógio desandou
a atrasar um minuto a cada meia hora, Zé Lutero entendeu todo o drama e ficou
matutando se não teria sido obra do Agostinho, o céu se toldou de chumbo e a
cidade se convulsionou, atirando o eventual bonde para fora dos trilhos.
Roubaram a viola do Zé da Rosinha.
SEGUE