sexta-feira, 2 de novembro de 2018





A MÁSCARA
(Excerto)

Deu-me um amigo uma máscara de presente.
Contou-me este amigo, um velho holandês muito alto, de cabelos brancos e pacíficos olhos azuis, de nome Willen Van Cljistens, que a teria trazido de uma das viagens que empreendera pela imensidão do Pacífico há mais de trinta anos, e que ela era um talismã da sorte.
Van Cljistens devia estar beirando os oitenta, mas mantinha a aparente virilidade dos cinquenta, tal a facilidade em relatar seus casos amorosos, tal o voraz apetite para consumir queijos e quejandos, tal a disposição para misturar cerveja com bebidas mais espirituosas, e tal a queima exagerada de cigarros dos quais ele extraía o filtro.
Era um misto de homem culto e rústico, pois coçava as partes e soltava imprecações com a mesma facilidade em que discorria sobre uma peça de Weber, um poema de Mellarmé ou um escrito de Eliot e, se inventava ou mentia, o fazia com tamanho poder de persuasão que os eventuais exageros das suas narrativas inebriavam suavemente os ouvintes tal qual um vinho aromático da Alsácia, não lhes dando qualquer chance para duvidar ou zombetear.
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Tive a desagradável impressão de que a máscara estava atenta à nossa conversa.
Após consumir muitas garrafas de cerveja, alguns cálices de grapa e algumas doses de aguardente de cereja o bravo batavo se retirou, ereto embora trôpego, e eu resolvi pendurar a máscara – uma obra de apurado mau gosto – na parede posterior da sala onde ficava o móvel que servia para colocar qualquer coisa em cima, de onde ela poderia vigiar a porta e espantar, quem sabe, aos maus olhados.
A operação pendura-máscara tomou-me quase dez minutos entre o arrasta cadeiras, o trepa e o destrepa e o confere-a-posição mas finalmente a carantonha foi gloriosamente afixada.
Após descer cuidadosamente da cadeira para não arriscar a levar um tombo e começar a descrer das propriedades benfazejas do singular objeto, andei de costas até a parede oposta para melhor observar o efeito do meu mais novo adorno e parei, boquiaberto: a máscara me piscava com o buraco do olho esquerdo!
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Meu amigo holandês, pirata de pacíficos olhos azuis morreu esta manhã, vítima de um acidente.
Chocado pela notícia, deixei o telefone falando sozinho e vou para a sala como se quisesse  me aconselhar com a máscara mágica. Olho para todas as paredes, para a mesa, para o móvel que servia para colocar qualquer coisa em cima e não consigo ver a amaldiçoada carranca.
A mesa ainda guarda os copos vazios de cerveja já com cheiro de azedo e os cálices com o resto da aguardente de cereja e grapa. O cinzeiro fede com diversas bitucas de cigarro com as pontas do filtro arrancadas.
Meu coração bate apressadamente e nos meus tímpanos ressoam batidas de tambores.
Van Cljistens desafiara o imponderável e pagara com a vida, e a máscara aparentemente, já tendo cumprido com os seus designios talvez tivesse partido para onde achava ser o seu lugar de direito.

terça-feira, 30 de outubro de 2018






INCOERÊNCIA

(Augusto Pellegrini)

Quando acordado finjo estar dormindo
Pois me enclausuro e fico desligado
Faço de conta que não vejo as coisas
Me faço de morto pra não ser notado

Evito desta forma desconfortos
Que infelizmente esta vida nos traz
Ficando alheio a tudo o que me cerca
Fechando os olhos pra encontrar a paz

Quando estou sóbrio só cometo asneiras
Tropeço ideias e sou inconveniente
Só quando o vinho esquenta a minha alma
Eu me transformo em cidadão decente

Quando eu me irrito me abro em sorrisos
Mas o desejo cresce lentamente
De por a mão no pescoço do outro
Para apertá-lo como um torniquete

Louco não sou, apenas transpareço
Viés que me foi dado um dia por direito
Para que eu me defendesse de outros loucos
Sobrevivendo do meu próprio jeito

Janeiro 2011