O SONHO
(Augusto Pellegrini)
O sol declinava no
fim da tarde, e fazia entrar uma réstia de luz oblíqua pela janela ornada por
cortinas semicerradas dentro do estúdio sóbrio, mas elegante.
A parede era
revestida por uma espessa tapeçaria semelhante às usadas nos castelos
medievais, cuja tonalidade variava do dourado para o castanho, contendo
desenhos filigranados em azul, e a decoração era completada por um cortinado de
um rubro sanguíneo.
No chão, sobre o
assoalho encerado, havia uma esteira de linóleo brilhante que conduzia até a
porta de entrada, com as cores em mosaico combinando com o ambiente.
O estúdio era
chique, porém discreto. O espaço não era muito arejado, dentro dos padrões das
salas de visita dos anos 1940, um ambiente escuro sem ser fúnebre, e se impunha
pela presença de um majestoso piano negro de cauda, que tomava inteiramente
conta da paisagem. Ao lado do piano, bem à mão do pianista, havia uma mesa de
centro de madeira trabalhada, com algumas xícaras contendo um frio resto de
café, além de uma taça com um pouco de água, um cinzeiro repleto de tocos de
cigarro e alguns cigarros virgens espalhados ao lado de três ou quatro folhas
de partituras.
Na parede nua, ao lado
da porta, um majestoso quadro se impunha, mostrando o retrato de uma dama imponente,
embora sorridente.
Dwight Spencer,
jornalista de algum renome na cidade, estava sentado numa cadeira de espaldar
alto diante da mesa de centro, tendo à mão um bloco de anotações, e praticava o
seu ofício conversando com o pianista, cuja figura se agigantava na sala, não
só pelo seu tamanho avantajado, mas principalmente pelo seu porte nobre e
altivo.
O som grave e
pausado da sua voz era por vezes acompanhado por acordes ou trinados
aleatórios, que pareciam estar compondo mais uma das suas mil melodias.
O repórter falou:
”O que é preciso para se compor uma música?”
– de repente a pergunta lhe pareceu um pouco idiota, mas já havia sido
proferida. O que Dwight queria saber, na verdade, era se seria necessário que o
compositor se munisse de algum espírito ou de alguma emoção especial antes de
começar a desenhar as notas e as figuras musicais sobre a partitura, tendo como
referência apenas a sua criatividade.
A resposta óbvia
seria “inspiração, uma ideia na cabeça, disposição momentânea” ou até mesmo “obrigação
contratual”, mas ela veio diferente e desconcertante.
“Sonhar...” – respondeu o maestro.
“Sonhar?!” – e o jornalista levou alguns
segundos para assimilar a resposta do maestro, assim como a maioria das pessoas
levavam algum tempo para entender a sua harmonia, oblíqua como o sol da tarde.
“Eu sabia que não
seria fácil entrevistar Duke Ellington!...” – pensou o repórter.
Ellington parecia
totalmente envolvido no som do seu piano, e talvez nem estivesse prestando
atenção nas perguntas.
De fato, ele não
encarava o repórter; ao invés disso, fitava o teclado e ia além, com o olhar às
vezes penetrando a caixa de madeira e se perdendo por entre os marteletes de
feltro e se fixando no semblante emoldurado na parede. Obedecendo ao seu olhar,
os dedos tocam as teclas, num acorde que faz os martelos vibrarem contra as
cordas e criarem um som etéreo, o que provocou um estranho arrepio no
jornalista.
Mas Ellington
estava atento à conversa de Dwight.
“Yes, sir!, sonhar me traz idéias!” – confirmou Ellington, e enquanto falava,
seus dedos corriam céleres sobre o teclado, num arpejo poderoso.
“Nada disto existe, tudo isto é sonho... Vê?”
– e ele lança um olhar inquisitivo para Dwight Spencer – “Isto não é música, isto não é um piano, isto é... sonho!...”
Spencer sorriu,
mas não fez nenhuma anotação.
“Eu sonho o tempo todo, quando toco e quando
componho. É a única maneira possível
de se fazer música” – encerrou Ellington, enigmaticamente.
Este era Duke
Ellington, mais do que simplesmente um músico, um intelectual da música. Dwight
entendeu o recado, percebeu qual seria o rumo da entrevista e decidiu apostar
num trabalho inusitado, preocupado não em conhecer a história, mas em desvendar
a alma do maestro.