quarta-feira, 19 de março de 2014


 

EU E A MÚSICA - PARADA DE SUCESSOS!

Estranhamente, para um artigo que se propõe comentar aventuras musicais, falar sobre futebol parece francamente uma excrescência, embora vozes saudáveis costumem muitas vezes relacionar as duas coisas e eu próprio ter como atividade cultural tanto uma coisa – música – como a outra – futebol – nas minhas digressões literárias.
Assim, num certo dia de 1953, um rapaz de pernas tortas, a quem chamavam de Garrincha – possivelmente pelo seu hábito de, desde criança, caçar passarinhos do mesmo nome – entrou no gramado de treino do campo do Botafogo, lá na Rua General Severiano.
Garrincha foi escalado para jogar na ponta-direita, num espaço de campo defendido por um lateral de nome Nilton Santos, que desde 1948 reinava absoluto no Botafogo e pintava na seleção brasileira, e que viria a ser chamado enfaticamente de “A Enciclopédia”, pois sabia tudo de futebol.
Garrincha não se importou nem um pouco com a fama do seu adversário e começou nesta mesma tarde a sua campanha mundial de desmoralização dos marcadores que a partir de então, até meados dos anos 1960, teriam a infelicidade de enfrentá-lo.
Dizem aqueles que viram o famoso Nilton Santos tomar um grande baile sem música daquele novato desengonçado, que ao término do treino o lateral foi o primeiro a recomendar a sua contratação ao então presidente Ibsen de Rossi.
Considerando que este duelo aconteceu num treino sem maiores pretensões, num dia de semana sem qualquer significado especial, e cercado de nenhuma expectativa, a quantidade de pessoas que garantem ter estado presentes é assustadora, pois de longe suplantaria a lotação do estádio, que era de vinte mil pessoas.
Este prólogo vem a calhar quando se fala do nascimento da bossa-nova.
Aqui não se trata de vinte mil, mas de vinte milhões que de uma maneira ou de outra contam como vivenciaram o evento e como as suas vidas mudaram a partir de então.
Parece que todos passaram por uma experiência semelhante à que eu passei ao serem apresentados à novidade que estremeceria as bases da cultura musical brasileira e modificaria o seu futuro de forma definitiva.
Meu relato é semelhante a milhares de relatos correlatos e a sensação de que algo de muito importante estava acontecendo com a música brasileira é compartilhada com estes milhares de felizardos.

Era 1958, talvez agosto, talvez setembro. Meio-dia.
O sol brilhava, o céu estava colorido de um azul radiante, o Brasil ainda estava eufórico com a conquista da Copa do Mundo na Suécia em junho e tudo parecia cor-de-rosa.
Eu estava no pequeno jardim da minha aconchegante casa no bairro da Aclimação, em São Paulo, que era cercado por um gradil baixo de madeira no estilo Hollywood, com o portãozinho acolhedor para as visitas bem intencionadas; algumas florezinhas bem distribuídas salpicavam o verde de amarelo, rosa e violeta, enquanto lá na cozinha, nas mãos da cozinheira minha mãe, o feijão exalava seu perfume generoso.
O aparelho de rádio – uma portentosa peça do móvel conjugado rádio-e-vitrola dotada de um moderníssimo olho mágico verde-esmeraldino – estava ligado, como sempre acontecia nessa hora, no programa “Parada de Sucessos”, transmitido pela Rádio Nacional de São Paulo, que apresentava as músicas mais tocadas e os discos mais vendidos da semana, na voz vibrante de Hélio de Alencar.
O bordão, anunciado ao som de “Saint Louis Blues” (William C.Handy) tocado pela orquestra de Glenn Miller era – “Paraaada de Sucessosss! – um desfile das músicas que o povo consagraaa! – patrocínio Lojas Assumpção, uma loja em cada bairro para melhor servir você!” – e servia de cenário para 10 caprichados hits da época, entre eles “Balada Triste” (Dalton Vogeler e Esdras Silva) com Agostinho dos Santos, “Escultura” (Adelino Moreira e Nelson Gonçalves) com Nelson Gonçalves,  Interesseira” (Bidu Reis e Murilo Latini) com Anisio Silva, “Meu Mundo Caiu” (Maysa) com Maysa, as internacionais “Cachito” (Consuelo Velásquez) com Nat ‘King’ Cole, “You Are My Destiny” (Paul Anka) com Paul Anka, e as versões “Love Me Forever” (Beverly Guthrie e Gary Lynes) com Lana Bittencourt, “Patrícia” (Pérez Prado) com Emilinha Borba e “Diana” (Paul Anka) com Carlos Gonzaga.
Uma selva bastante diversificada, como se vê, reunindo no mesmo pacote sambas-canções, baladas, boleros e a pop music da época.
Esta diversificação de certa forma incomodava uma certa parcela de jovens que, como eu, se interessavam pelo jazz ou por um tipo de música que contivesse uma mensagem que fosse poética e harmonicamente diferenciada – Sylvia Telles, Os Cariocas, Dick Farney, Lucio Alves, Johnny Alf, Chet Baker, Barney Kessell, April Stevens, Julie London, The Hi-Lo’s – fugindo das estruturas comuns, das paixões desesperadas, dos dós de peito ou das rimas pouco sutis.
A gente sabia, no entanto, que estas músicas não vendiam o suficiente para estar numa parada de sucessos e cada qual se contentava em curti-las no seu ambiente particular.
Eu e a minha turma, por exemplo, ingeríamos altas doses de boa música – e um outro tanto de gim-tônica – no recôndito de nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de uma música gravada pelo grupo de rock “Gene Vincent & seus Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de outros amigos para ouvir as novidades que faziam bem para os ouvidos e para o espírito.
De volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nos próximos dez anos ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que colaborou com a genialidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP seria lançado em 1959 incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli) e “Brigas, Nunca Mais” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.

segunda-feira, 17 de março de 2014


 
 
 
 
O DOSSIÊ VÔLEI 

Existem mais mutretas entre o céu e a terra do que supõe a nossa ingenuidade. A praga do enriquecimento ilícito toma conta de todos os segmentos da sociedade, como um vírus que se espalha descontroladamente. E, de escândalo em escândalo, assim caminha a humanidade.
O jornalista Lucio de Castro, da ESPN Brasil, que além de comentar as minúcias de uma partida de futebol também faz o tipo de jornalismo investigativo, foi fundo nos bastidores do voleibol brasileiro, esporte considerado o segundo favorito do torcedor, depois do futebol.
O que ele descobriu faz eco ao que, com certeza, acontece com outros esportes e com muitas organizações criadas para promover algum tipo de atividade, esportiva ou não.
Tempos atrás já tivemos uma sequência de denúncias sobre o judô, o taekwondo, o atletismo, o basquetebol e próprio Comitê Olímpico, sem contar o futebol, de múltiplas falcatruas que remontam a época de João Havelange e Ricardo Teixeira, passando pela atual salada de desmandos com o dinheiro público no advento da Copa do Mundo.
No voleibol não poderia ser diferente.
Nas últimas semanas o repórter revelou que em 2013 o superintendente geral da Confederação Brasileira de Voleibol, Marcos Pina, embolsou indevidamente a quantia de 10 milhões de reais em nome da firma SMP – Logística e Serviços Ltda., fundada em sociedade com a mulher, com capital registrado de 10 mil reais.
O pagamento foi feito a título de uma suposta comissão pela SMP pela intermediação do contrato de patrocínio com o Banco do Brasil, coisa que o banco não faz por causa do seu estatuto. Pressionado pelo presidente, Marcos Pina pediu demissão do cargo.
Nesta semana, mais um escândalo: Fábio André Dias Azevedo, dirigente da CBV e braço direito de Ary Graça Filho, presidente da FIVB-Federação Internacional de Voleibol, também faturou 10 milhões em nome da empresa S4G Gestão de Negócios, também a título de comissão.
Ambos os contratos destacavam a “notória especialização” das empresas que intermediaram o negócio, muito embora elas tivessem sido constituídas às vésperas da assinatura do contrato e nunca tivessem participado de qualquer outro negócio.
A história é antiga. Em 1997 a colunista de vôlei Cida Santos, da Folha de São Paulo, já anunciava irregularidades no contrato entre a CBV e o Banco do Brasil pelo mau uso da verba de patrocínio, tendo o deputado federal Augusto Carvalho (PPS-DF) solicitado ao Tribunal de Contas que investigasse o caso.
Na época, o Banco do Brasil passou a exigir da CBV um relatório minucioso sobre o uso da verba de patrocínio, mas a coisa acabou dando em nada.
Há uma intensa indignação por parte de atletas e profissionais do vôlei, que pedem uma investigação rigorosa e uma punição exemplar dos envolvidos.
À parte o clamor popular, de que este tipo de verba poderia ter sido utilizada para fins mais prementes como saúde, saneamento e educação, entendo que o dinheiro deveria ter sido direcionado para o esporte, pois esta era a sua finalidade.
Vinte milhões de reais não é muito para a construção de casas, escolas, hospitais e estradas nem para fortalecer a segurança do cidadão, mas se efetivamente destinados ao esporte teriam proporcionado assistência e treinamento a jovens atletas, melhor organização de torneios, condições mais dignas de trabalho para técnicos, preparadores físicos e auxiliares que vivem de esmola com baixos salários pagos por outros patrocinadores e – por que não? – uma preparação de qualidade para enfrentarmos os Jogos Olímpicos daqui a dois anos.
E o dinheiro? Vai ser devolvido?