quinta-feira, 29 de maio de 2014






O CAOS É AQUI 

 

(ARTIGO PUBLICADO NO CADERNO “SUPER ESPORTES” DO JORNAL “O IMPARCIAL” DE 28/05/2014) 

 

Faltam duas semanas para a partida inaugural da Copa 2014. Em outros tempos os grandes centros do país estariam respirando um clima total de festa e de euforia, mas alguma coisa não está de acordo com o programa, e muitas nuvens cinzentas cismam em embaçar a paisagem.
Pode-se culpar de tudo um pouco, mas o que parece é que a Copa chegou por aqui num momento de conjunção astral inadequado.
O súbito desassossego social é sem dúvida o fator dominante do frisson negativo que paira no ar, pois funciona como um vetor para que as sombras se avolumem e cubram as cidades-sede de temor e incerteza.
Vamos – ou pelo menos deveríamos – receber milhões de turistas que fizeram suas reservas usando a Copa como pretexto para viver as delícias do Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza ou Recife, fazendo de junho-julho um grande carnaval. Mas a Embratur informa com muita apreensão que a lotação dos hotéis ainda está 40% abaixo do esperado.
Muitos empresários do ramo de hotelaria construíram novas unidades ou ampliaram as existentes, contrataram pessoas e modernizaram as estruturas na esperança de um mês de sonho, mas estão esbarrando na situação até pouco impensada de um caos completo que vai aos poucos tomando conta do país, com manifestações, greves e violência.
Existe um verdadeiro levante popular contra tudo o que se conhece, vê e imagina de errado – movimentos que reivindicam melhorias salariais, exigências por uma melhor educação, saúde e segurança, inflação em alta, corrupção nos meios governamentais – e a Copa acabou entrando a reboque, como se a sua realização fosse a única responsável por este estado de coisas.
Ingênuos são aqueles que são contra a Copa apenas porque “o futebol é o ópio do povo” e outras patacoadas do gênero. A Copa do Mundo é, em si, um evento esportivo admirável e reconhecido através dos tempos, e é sempre motivo de orgulho para o país que a patrocina. A gritaria não deveria ser contra a Copa, mas sim contra os oportunistas espúrios que estão se aproveitando da ocasião para transformar o evento em uma feira de negócios – e aqui eu me reservo o direito de não declinar nomes, até porque todos sabem quais são esses nomes.
Os políticos fazem do ufanismo, por um lado, e do desgoverno, por outro, as suas plataformas de campanha, e o povo, entre manifestantes pacíficos, vândalos a serviço de quem quer ver o circo pegar fogo e a população prejudicada na sua mobilidade e segurança, aguarda o desfecho desta maratona que deveria se ater apenas ao futebol, mas que movimenta todo o país de forma negativa como se estivéssemos à beira de uma guerra civil.
Com certeza a falta de conforto nos aeroportos, a mobilidade prejudicada ao redor dos estádios, a ausência de uma rede de comunicação confiável e a exploração turística em todos os níveis são os menores dos problemas.
Os maiores problemas são a atuação de um Estado inerte que não sabe tirar vantagem de um evento que tinha tudo para ser favorável, a falta de rigor no controle dos gastos e a aquiescência tímida a todos os mandos e desmandos da Fifa, que literalmente governará o país por um mês, pelo menos nas cidades que abrigarão os jogos.
Restarão como herança alguns estádios de primeiro mundo erguidos em terras de ninguém, sem perspectivas de manutenção e com uma deterioração prevista em curto prazo (igual ao que acontece com o Engenhão, construído para os Jogos Pan-Americanos de 2007 e hoje entregue ao Deus dará).
A situação chegou a tal ponto que até antigos parceiros e entusiastas, como é o caso de Pelé e de Ronaldo Nazário já estão abandonando o barco e revendo os seus discursos, enquanto a Fifa não para de alfinetar e tratar o Brasil como um país menor.
A propaganda do Brasil no exterior, nesta era de internet e de redes sociais está sendo a pior possível, misturando a triste realidade de um país de extremos a uma ficção assustadora que toma feições de verdade.

 

 

segunda-feira, 26 de maio de 2014






CAMISA AMARELA

 

O compositor e pianista Ary Barroso compôs o samba “Camisa Amarela” em 1939, um ano depois de o Brasil chegar em terceiro lugar na Copa do Mundo da França.
Para quem não lembra ou não conhece, a música começa com “encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela cantando a Florisbela, oi, a Florisbela...” e pode ser ouvida no youtube nas vozes de Nara Leão, Gal Costa ou Aracy de Almeida. Posso adiantar que vale a pena.
Naquele tempo, as cores do escrete eram branco e azul, e o nosso compositor não fazia a menor ideia de como tudo estaria mudado setenta e cinco anos depois e qual seria a importância de uma camisa amarela no Brasil do futuro.
O escrete adotaria a cor amarelo-canário na camisa quinze anos mais tarde e quatro anos depois dessa adoção deixaria de ser um perdedor. A citada avenida também não mais abrigaria o também decantado carnaval – então quase um bloco de sujos – que seria transportado para um engalanado sambódromo, com direito a arquibancadas, camarotes e cobertura da televisão (também naquela época apenas um sonho em formatação).
Quando morreu, em 1964, Ary já havia percebido o significado de uma camisa amarela, depois de um bicampeonato tupiniquim, bem apropriado para ele que adorava futebol (era também locutor esportivo e um flamenguista alucinado) e amava as coisas do Brasil, que estampou nas suas músicas como poucos o fizeram.
A camisa amarela virou vestimenta obrigatória do cidadão brasileiro de quatro em quatro anos, crescendo de importância ao mesmo tempo em que o samba de Ary caía no esquecimento e dava lugar a outras novidades.
Se a camisa amarela já era uma febre quando a Copa do Mundo era disputada em longínquos rincões, imaginem agora, que a febre vai se espalhar dentro do próprio Brasil e unir os torcedores que roem as unhas durante os jogos da seleção, a despeito de outros tantos que aproveitarão o espaço democrático para fazer manifestações, reivindicatórias ou não.
O clima de futebol está pouco a pouco aquecendo nestas semanas que antecedem o pontapé inicial, e os grandes clubes brasileiros vão se engajando na proposta de colaborar com o evento, cedendo de boa vontade – embora compulsoriamente – seus centros de treinamento para abrigar as seleções estrangeiras, e adotando a camisa amarela como uniforme oficial nos jogos do Campeonato Brasileiro, deixando de lado as suas cores tradicionais.
É claro que por trás desse patriotismo clubístico existe dinheiro – muito dinheiro. Os homens do marketing estão aproveitando a deixa e explorando a tática manjada de criar um novo modelo de camisa oficial – que eles chamam de uniforme número três – para consumo dos colecionadores, dando a eles novas opções de escolha dentro da lojinha dos clubes.
A Nike, parceira da CBF, promoveu o lançamento simultâneo das camisas amarelas dos clubes para os quais fornece o uniforme – Corinthians, Santos, Internacional, Coritiba e Bahia – enfatizando a importância da sua valorização para que os torcedores estabeleçam uma identificação entre os seus clubes e a seleção canarinho.
O Cruzeiro e o Palmeiras também embarcaram na onda, apesar de, respectivamente, terem a Olympikus e a Adidas como patrocinadoras, mas tiveram que pedir o aval da CBF. E a Penalty, em cima da hora, também lançou camisas amarelas para o São Paulo, o Figueirense, o Vasco, o Santa Cruz e o Ceará, que talvez não cheguem a envergá-las no campeonato, mas as colocarão à disposição dos torcedores colecionadores.
Mas existe um detalhe: tem muito torcedor que, mesmo torcendo pela camisa amarela da seleção, não aprova a ideia de ver seu clube mudar de cores e está torcendo o nariz com a descaracterização dos uniformes, por achá-la esdrúxula e descabida.
Porque, no futebol, a tradição ainda conta muito.