IMPRESSÕES
COLHIDAS NO INFERNO
1988
(Parte
Sete – e final)
Viver até que é bom, mas não desta forma,
não com esta dúvida.
Acho que os intestinos me revoltaram a
cabeça, pois não sou mais o mesmo de antes das ostras, de antes da quaresma.
Será castigo divino? Desse Deus que vive
castigando depois de nos dar o livre arbítrio só para se comprazer, já deve
estar tramando algo para as festas de junho, se não são ostras serão pinhões, o
resultado será o mesmo.
Relembro coxas novamente, e agora sei
por que. É um reflexo de Dante e dos seus poemas eróticos, onde ele projeta a sua
incompetência nas laudas manuscritas, falando vontades e pensando Beatriz.
Relembro coxas, e parece que o ar da noite está desembotando a minha memória
congelada.
Vejo-me diante de um bar bastante
agitado.
Bebida, música, risos. Gente cantando ao
abrigo e fora do tom, homens e mulheres se acotovelando na melodia. Eu entro na
falta de harmonia e vou para junto do balcão ouvindo frases desconexas
decoradas por garrafas e latas coloridas.
Peço uma porção de tremoços amanhecidos
e uma cerveja preta para espantar a indisposição, de repente me vejo jogado num
poço de olhar mais profundo do que todo o espaço e mais negro do que todo o
espaço, são olhos que me tragam, e me engolfam, e me tolhem, a voz saindo fraca
e pastosa, em direção ao garçom – “traz
outro copo e mais uma, bem gelada!” –
os tremoços no prato e os olhos negros cantados por Dante fulminando a minha
retina.
Beatriz, que para Dante não passa de uma
angústia reprimida, está ao alcance do meu olhar, eu pressinto, eu sei.
O chão está repleto de pés e o ar está saturado
de fumaça, mas mesmo assim sigo avançando milímetro a milímetro em direção aos
olhos que me encantam, coleando como uma agulha magnética. A luz intensa não me
permite avaliar a quantidade de fantasmas e de diabos que também se acotovelam,
mas são eles, sem dúvida, que turvam a minha vista e que murmuram nos meus
ouvidos algo assim como o Rondó das Campainhas.
Seguro suas mãos quentes e macias, de
onde emana um suave perfume floral e ouço uma voz muito diferente daquele mi
sustenido dantesco.
Pergunto seu nome, embora já o adivinhasse
– “Beatriz” – ela confirma com os
olhos sorridentes.
Ela também bebe, come e fala, humana
como os humanos, e o faz de uma forma muito viva e inventiva.
Dante que me perdoe, Deus sabe que eu
não tive culpa, estava apenas caminhando pela cidade de tons avermelhados e
irrompi num bar como tantos outros, com balcão de mármore, cerveja preta e
tremoços. Agora tenho Beatriz me aquecendo a noite pesada, com cerveja,
tremoços e coxas. Uma ode.
Pobre Dante.
Pobre Dante das caminhadas sem vontade,
dos poemas sem rima, do queixo de estátua. Tome esta pedra, Dante, esta bem
pesada, antiga, com visgo e limo, amarre-a no pescoço com uma corda forte e
salte para bem dentro de um inferno de águas.