sábado, 30 de dezembro de 2017





O AVIÃO

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1)


O saguão do aeroporto parece um formigueiro.
Pessoas fervilham empurrando carrinhos com malas e volumes, uns vão e outros vêm, alguns fumam impacientemente e consultam o relógio, outros se detém, nas livrarias e alguns relaxam lendo o jornal do dia acomodados nas poltronas e arriscando uma olhada para o painel eletrônico que informa detalhes dos voos.
“Atenção, senhores passageiros que se destinam a Porto Alegre com escalas em São Paulo e Curitiba, queiram se dirigir para embarque pelo portão quatro e boa viagem”.
Lá vamos nós, como bois para o matadouro, o mesmo olhar distante, a mesma expressão inquieta. Não somos revistados como na entrada de um estádio de futebol, nem nossas bagagens são perscrutadas à procura de uma bazuca ou uma bomba atômica que possa levar o pânico à tripulação e aos passageiros.
Enfileirados, contemplamos a nave, um grande pássaro prateado com seu prefixo e a logomarca da companhia aérea, o comissário de bordo recolhendo os cartões de embarque e a aeromoça nos sorrindo aquele sorriso Kolynos de Miss Brasil.
Procuramos o melhor lugar junto ao corredor para poder esticar a perna mesmo com o risco de sermos atropelados pela carrinho de bebidas, somos amassados pela bagagem de mão do cavalheiro da poltrona do meio e observados pela senhora já meio passada que se ajeita junto à janela, apertamos o cinto e olhamos a expressão de expectativa dos nossos circunstantes – nem o lançamento as Colúmbia gerou tanta comoção -  e num repente o paquiderme de asas começa a se movimentar pela pista, o ruído aumenta, a potência aumenta, e lá vai ele, alçando voo como um condor, o bico altivo e o olhar severo.  
Começa enfim a grande aventura.
Enquanto a nave empina os passageiros parecem estar rezando, olhando para o teto ou para o vazio através das janelas-escotilhas.
Houve um tempo em que o lugar que mais se rezava e alevantava o pensamento ao Todo-Poderoso eram as naves das igrejas, deixando em segundo plano as naves aéreas propriamente ditas. Hoje, com a escassez de fieis, com o cisma entre os religiosos progressistas e os conservadores, com o desencanto dos pragmáticos e com a censura dos intelectuais, o quadro está revertendo e já se reza mais dentro dos aviões do que diante dos altares.
Os aeroportos estão lotados e as igrejas estão ficando vazias.
Espichando o olhar para o jornal do companheiro da poltrona do meio, que teima em enfiar o cotovelo esquerdo no meu espaço vital, leio em letras garrafais que a explosão de um Boeing nas redondezas das Ilhas Figi causou a morte de duzentas e cinquenta pessoas e que um avião cargueiro que saíra de Nova Deli com destino a Frankfurt desapareceu misteriosamente sem deixar qualquer vestígio (suspeita-se que tenha sido obra de um objeto voador não identificado, mas os videntes ocidentais descartam essa possibilidade e acreditam mais em uma ação terrorista de muçulmanos xiitas, estes sim sempre dispostos a promover uma encrenca contra quem professa ideias diferentes das suas). 

Vem o carrinho de bebidas bem a tempo de eu recolher meu pé, e junto com o carrinho o sorriso de outra aeromoça, esta mais aérea e bem mais moça, que nos oferece um sanduiche envelopado com gosto de raticida e dois bolinhos de carne cuja missa de sétimo dia do boi que lhe deu origem foi celebrada três anos atrás. Acompanha um adocicado suco de caju de garrafa economicamente colocado dentro de um copo do tamanho de uma xícara de café.

SEGUE

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



Postagem refeita porque a anterior saiu desconfigurada

SÓ VOCÊ CHEGAR

Só você chegar, meu coração ficou feliz
Só de lhe encontrar eu vi tudo o que sempre quis
Só deixar passar o tempo e ver que dá pra dois
Somente abraçar, pois tudo é bom demais
Demais

Nunca nuvem, nada mau
Nunca nó, notar ninguém
Beijos, risos, nada mais
Nem nunca mais sofrer

Custou tanto pra chegar
Tanto quanto quem não vem
Diz agora, o encanto faz
Especialmente alguém
Ser feliz, ser também

(Letra para melodia de Renato Winkler feita por Augusto Pellegrini em 1970)


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

SÓ VOCÊ CHEGAR Só você chegar, meu coração ficou feliz Só de lhe encontrar eu vi tudo o que sempre quis Só deixar passar o tempo e ver que dá pra dois Somente abraçar, pois tudo é bom demais Demais Nunca nuvem, nada mau Nunca nó, notar ninguém Beijos, risos, nada mais Nem nunca mais sofrer Custou tanto pra chegar Tanto quanto quem não vem Diz agora, o encanto faz Especialmente alguém Ser feliz, ser também (Letra para melodia de Renato Winkler feita por Augusto Pellegrini em 1970)




O CINEMA

(Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco anos atrás.)
(Parte 2)

O quarto problema foi contornado, pois na minha frente se senta um casal de namorados que de tão agarradinhos pareciam uma só pessoa, o que abre um formidável espaço visual que permite que eu me ajeite na poltrona da maneira mais confortável possível. Aí então o quinto, terrível e inevitável problema: o jornal da tela.
“Amplavisão filmando ao Brasil vai informando”, começa o locutor.
“Na progressista cidade de Ortigueira, no norte do Paraná, foram inauguradas as dependências do Grupo Escolar Princesa Isabel, que irá melhorar o padrão de ensino para as crianças da região. Participaram da festividade importantes figuras civis, militares e eclesiásticas, falando na ocasião o senhor Bernardo Ortigão, prefeito de Ortigueira, que enalteceu a importância do ato”.
A música de Billy Vaughan serve de fundo para os créditos, com destaque para o produtor Primo Carbonari.
Depois, uma pausa e “Twentieth Century Fox” na tela.
Enfim começa o filme – aquele antigo sucesso de setenta e dois – e a gente se emociona, e sofre, e torce, e ri, e se agita sob a magia da direção bem-feita, da trama bem urdida, da fotografia perfeita e do desempenho notável da atriz coadjuvante que mais uma vez engoliu a estrela principal (Elisabeth Taylor jamais perdoou Mia Farrow por isso).
Terminado o filme surge o sexto problema – a saída do cinema. Vemos aterrorizados a massa reunida lá no saguão se espremendo e se preparando para invadir a sala de projeção tão logo saia o último assistente, e de pronto nos vem à mente uma cena que somente poderia ser reproduzida por Kubrick ou Spielberg – a invasão acontecer antes que consigamos sair, e então a morte por pisoteamento, embora um pisoteamento com muita arte e com gosto de ketchup.      
Enfim saímos, alcançamos a rua, desviamos de dois carrinhos de cachorro-quente e um de pipoca e também de um inoportuno moleque querendo nos vender à força uma barra de chocolate, uma caixa de chicletes ou um pacotinho de drops Dulcora – a delícia que o paladar adora e vêm embrulhadinhos um a um – e partimos rumo ao perigo.
Vencida mais esta etapa, conseguimos alcançar o carro que, surpreendentemente, ainda está lá, com seus quatro pneus, suas portas, seus vidros, seu espelhos laterais, seu motor e seu tanque cheio. E, surpresa das surpresas, sem o proverbial tomador de conta a nos extorquir. Então vamos de volta pra casa para dar o nosso merecido descanso e o justo descanso ao Fusquinha com uma noite na garagem protegido do sol, do sereno e da chuva.
Enfim chegamos em casa, e com o copo de leite na mão ligamos a televisão naquele canal alternativo para descobrir que hoje, excepcionalmente, será transmitido na íntegra, sem cortes e dublado em português um filme que foi grande sucesso nos anos setenta.
Eu me afundo na poltrona pensando que desta vez eu teria que aturar uma dublagem mal-acabada onde o personagem diz “actually I don’t drink whisky” ou “you should wear a monkey suit” e o tradutor nos arrasa com “atualmente eu não bebo uísque” e “você devia vestir um paletó de macaco”, quando começo a perceber que o filme é o mesmo já visto horas antes com Elisabeth Taylor e seus chiliques, após correr todos os riscos que um cidadão pode correr numa metrópole dita civilizada.

Mudo então de canal e começo a assistir a um debate sobre economia e negócios.  

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017






O CINEMA

(Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco anos atrás.)
(Parte 1)


Primeiro a expectativa.
Consultamos o jornal à procura do melhor filme – aqui tem um candidato a sete Oscares, ali um premiado em Cannes, alhures um grande sucesso em mil novecentos e setenta e dois, algures uma comédia picante imprópria para menores de dezesseis anos e mais além um “science-fiction” à Spielberg cheio de infantilidades adultas.
Ainda sem decidir qual desses iremos assistir, nos preparamos psicologicamente para rir com Woody Allen, para chorar com Kraker vs Kramer, para liberar nossa adrenalina com Stallone ou para nos apaixonar perdidamente por Isabelle Adjani.
Lavamos a cara depois da barba feita, aplicamos uma demão de lanolina, colocamos uma camisa decente após o banho tomado, apanhamos o carro que descansa sossegadamente na garagem e partimos para a grande aventura. Aquele filme de setenta e dois parece ser uma boa escolha.
Aí começam os problemas. O primeiro deles é o estacionamento. Num raio de trezentos metros do cinema não há espaço nem para uma bicicleta, então o jeito é parar lá embaixo, próximo do outro cinema que exibe um filme que decidimos não ver, e caminhar a pé, preocupado com o segundo problema.
O segundo problema é a segurança – a nossa e a do carro. Erguemos uma prece[A1] [A2]  para o Altíssimo a fim de que consigamos caminhar os seiscentos metros ida-e-volta sem sermos importunados por algum meliante – “isto é um assalto!” – principalmente no término da sessão, quando já será noite alta. Fazemos um cálculo mental do valor do reembolso do seguro após o carro ter sido roubado, depenado e transformado em “buggy”, mas estes pensamentos macabros são interrompidos pelo terceiro problema.
O terceiro problema é a fila para comprar o ingresso, que rodopia lentamente cheia de pernas como uma centopeia, e depois do ingresso comprado a fila para ingressar no saguão e ficar aguardando a sessão terminar para finalmente adentrar a sala de projeção olhando para alguns cartazes dependurados aqui e ali anunciando os futuros sucessos de bilheteria.  
A sessão termina e imediatamente começa o quarto problema, a busca do lugar ideal. De acordo com a Teoria das Probabilidades, na minha frente deverá se sentar um cidadão alto e de topete. Então, mudo para duas poltronas à direita e me vem o temor que na minha frente venha a se sentar um camarada irrequieto que se move o tempo todo, me obrigando a balançar feito pêndulo de relógio de parede.

SEGUE




 [A1]
 [A2]

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017




BODAS DE PRATA

O dia 13 de dezembro vai ficar marcado pelo torcedor do Flamengo como mais uma data a ser esquecida em virtude da perda de outro título continental, mais uma vez em pleno Maracanã. 
O  empate contra o Club Atletico Independiente valeu aos argentinos a Copa Sul-Americana de 2017 e fez com que o rubro-negro, apesar de ter montado um elenco caro e experiente, fechasse o ano festejando apenas a conquista do título carioca. 
Uma a uma, as conquistas previstas foram virando fumaça - Copa Libertadores, Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil - o que fará de 2018 um ano muito importante, de renascimento e colheita.
Para um clube que em 2017 investiu quase 60 milhões em jogadores - Diego, Everton Ribeiro, Conca, Rômulo, Rhodolfo, Rever, Berrío - a apostou caro nas promessas da casa - Vinicius Junior, Lucas Paquetá, Lincoln, Felipe Vizeu - o time montado por Reinaldo Rueda (ele também, contratado para dar o perfil de experiência ao grupo) deixou bastante a desejar, alternando o bom e o mau futebol, e provocando altos e baixos no humor do torcedor.  
O Flamengo deve se mirar no próprio Independiente para planejar o futuro. O Independiente, conhecido como "Rojos de Avelleneda"  já teve seus momentos de glória no século passado, e a conquista da Copa Sul-Americana (prima pobre da Libertadores) servirá de estímulo para novos desafios.
O clube argentino já conquistou 16 títulos nacionais (ficando atrás apenas de Boca Juniors, River Plate e Racing Club), 2 Copas Sul-Americanas, 2 Supercopas Libertadores, uma Recopa Sul-Americana, e é o maior vencedor da Copa Libertadores de todo o continente, com 7 conquistas. Mesmo assim, amarga um jejum de 15 anos em títulos argentinos e sua última conquista importante foi também a Copa Sul-Americana de 2010, quando decidiu contra outro clube brasileiro, o Goiás.  
A data da partida, 13 de dezembro, tem um significado especial, pois nos remete a 1981, quando o Flamengo fechou um ano de ouro ao bater o Liverpool no Estádio Nacional de Tóquio por um sonoro placar de 3x0 e ganhou o seu único título de campeão mundial interclubes até o momento.
Em dezembro de 1981, com a conquista do título mundial, o Flamengo completou uma sequência vitoriosa que coroou aquele ano. Em apenas dez dias o rubro-negro faturou a Taça Guanabara com um 3x0 sobre o Campo Grande, venceu o Cobreloa-Chile por 2x0 pela Libertadores e ganhou o Campeonato Carioca sobre o Vasco por 2x1 depois de ter aplicado um sonoro 6x0 no Botafogo.
Ganhar do Liverpool por uma contagem tão elástica foi o toque especial que faltava para fechar um ano mágico. 
O Liverpool, que havia chegado à condição de disputar o Mundial Interclubes depois de derrotar o sempre poderoso Real Madrid por 1x0 , era considerado franco favorito nas casas de aposta, mas não foi páreo para os brasileiros que possuíam um dos melhores esquadrões da história, com Raul Plassmann, Leandro,  Marinho, Mozer e Júnior,  Andrade, Adilio e Zico, Tita, Lico e Nunes, comandados por Paulo César Carpegiani.
A festa de bodas de prata da conquista maior do clube poderia ter sido realizada num clima de consagração caso o time tivesse passado na prova final deste ano, mas quis o destino que num jogo brigado palmo a palmo a vitória ficasse com o lado contrário.
O Flamengo saiu na frente nos dois jogos disputados contra o Independiente, mas permitiu a virada em Buenos Aires e o empate no Rio de Janeiro diante de um time que mostrou que tem intimidade com a bola e que ganhando ou perdendo mantém a mesma postura tática em obediência ao sistema traçado pelo seu técnico.
O Maracanã viu muita disposição dos dois lados, poucos chutes a gol, e dois gols nascidos de falhas que poderiam ter sido evitadas. No gol do Flamengo, a defesa "roja" bateu cabeça e Paquetá teve o vislumbre de apenas roçar na bola para que ele fosse parar no fundo do gol. O empate argentino, menos de dez minutos depois, surgiu de um pênalti evitável de Cuellar e da malandragem do argentino Meza que se deixou tocar dentro da área. O empate saiu com requintes de crueldade, através do árbitro de vídeo, sistema colocado em prática no estádio especialmente para a decisão.
No final as esperadas bodas de prata ficaram sem a esperada comemoração.