AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
FINAL DO CAPÍTULO 8 - O LINDY HOP
Norma
Miller tinha
apenas quatorze anos quando foi descoberta por Herbert White. Como outras
adolescentes, ela gostava de dançar, alegre e solta, na calçada em frente ao
Alhambra Ballroom, e também como outras adolescentes ela tinha o sonho velado
de algum dia poder dançar não na rua, mas dentro do teatro, para ser admirada e
aplaudida pelo público.
Certa tarde
Herbert White estava saindo do teatro, onde estivera assistindo os ensaios para
o show da noite e parou para ver alguns jovens se divertindo ao som da
orquestra que continuava tocando e que fluía através da porta entreaberta.
Rapazes e moças se
dedicavam à dança com todo fervor, e uma garota alta e elegante executava os seus
passos com tamanha desenvoltura que ele se fixou nela com determinação.
A garota era
bonita, muito jovem, e possuía um brilho diferente que a destacava dos outros.
Apesar de quase
menina, Norma já possuía um corpo e gestos “de mocinha”, apimentando a música
com a dose exata de sensualidade, exalando inocência e ao mesmo tempo
maturidade nos seus passos milimetricamente corretos.
White se aproximou
da garota e puxou conversa, elogiando o seu desempenho artístico e procurando
saber se Norma teria algum interesse em se exibir profissionalmente.
A princípio, ela
se assustou. Aquele homem que se dizia chamar Mister White tinha o olhar
penetrante e uma expressão estranha no rosto austero. Era um homem maduro e,
fosse ou não verdade o que ele dizia, soava amedrontador. Aos poucos, porém,
ela foi confiando na conversa dele e quando entendeu que ele era o responsável
pela dança do teatro se sentiu aliviada e lisonjeada. Finalmente declarou que
precisava perguntar para a avó, com quem morava, pois ainda não tinha atingido
a maioridade.
Mesmo ficando
ligeiramente desapontado com a pouca idade de Norma, White a convidou para
ensaiar na semana seguinte do lado de dentro do salão – e convidou também alguns
outros participantes do grupo que se esbaldavam na rua, para evitar comentários
e mal-entendidos, apostando que dificilmente teria problemas com a lei, pois a
fiscalização naquelas bandas era para lá de precária, e a garota parecia
definitivamente mais velha do que deveria indicar o seu documento de
identidade.
“Nada que a redação
de um bom contrato não possa resolver”, pensou ele.
A avó de Norma,
uma ex-escrava chamada Dorothy Turner não opôs nenhum obstáculo quanto às
pretensões do empresário.
Em primeiro lugar,
tratava-se de uma oferta de emprego, sonho de consumo de boa parte dos
habitantes do lugar. Depois, ela já tinha ouvido falar de um tal “senhor Whitey” que gerenciava espetáculos de
dança, e seu nome não sugeria nada de errado. O “senhor Whitey” parecia ser uma pessoa decente e honesta, ela ponderou – “um verdadeiro
cavalheiro”.
Assim, com as
bênçãos de Dorothy, Norma ingressou no show business.
Dorothy sempre
houvera estimulado a neta a participar de concursos de dança, pois de vez em
quando surgia de lá algum dinheiro para fazer frente às despesas da casa mal
provida pelo tio Josh, que trabalhava como porteiro de um cabaré de segunda
classe e costumava beber o salário junto com as funcionárias de baixa
reputação.
Norma
começou a se apresentar no grupo de White ao lado de um parceiro que Dorothy não
aprovava muito, um tal de “Twistmouth” George, cuja fama de boêmio e de
namorador extrapolava os quarteirões do bairro e colocava a segurança da
mocinha em risco.
Mas
“Twistmouth” George era um grande dançarino e também possuía um pequeno grupo
de lindy hop, e não foi por outra
razão que ele também chamou a atenção de White, que além de contratar um
dançarino de qualidade também eliminaria parte da concorrência.
Além
de um grande dançarino, George era também um grande fanfarrão. Ele se
considerava o melhor do Harlem e costumava dizer que qualquer garota que
porventura se apresentasse ao seu lado fatalmente faria sucesso na dança e que,
no mínimo, se quedaria apaixonada pelo seu charme.
Norma
Miller já conhecia George. Foi dançando com ele que ela se convencera ter de
fato os atributos necessários para ser uma lindy
hopper, tanto pelos elogios do próprio parceiro como pelos aplausos
recebidos nos diversos concursos dominicais de dança disputados no Apollo
Theater.
Quando
o senhor White os convidou para fazer parte do seu seleto grupo, “Twistmouth”
George exultou, pois achou que não apenas faria com Norma o par perfeito como
finalmente conquistaria o seu coração.
No
entanto, suas previsões não foram confirmadas. Ao invés dele, Herbert White
decretou que Norma fizesse parceria com um sujeito magrinho e irrequieto que
havia sido contratado seis semanas atrás, chamado Frankie Manning. Quanto à
paixão, Norma – apesar da pouca idade – já sabia discernir entre um fogoso
passatempo descartável e um futuro mais apropriado para as suas ambições.
A
segunda grande e agradável surpresa de Norma aconteceu logo em 1934, quando
Herbert White resolveu levar sua trupe – ela incluída – para uma turnê de
algumas semanas pela Europa. O lindy hop
ganhava status e iria mostrar a sua arte no Velho Continente, e a nova estrela
se destacava, ganhava altura da noite para o dia e se transformava na primeira
dama do corpo de baile.
Anos
depois, ao escrever a sua autobiografia denominada “Swingin’ At The Savoy –
A Memoir Of A Jazz Dancer”, Norma admitiu que, à parte o fascínio de
se apresentar em outro continente, as noitadas de dança da turnê européia
acabaram se transformando num autêntico desastre devido à baixa qualidade da
música executada pelas orquestras europeias contratadas para abrilhantar o show.
É claro que dançar no Savoy, no Cotton Club ou mesmo no Teatro Apollo tendo por
background o som da orquestra de Fletcher Henderson ou de Chick Webb era
completamente diferente de ser acompanhada por um combo inglês composto
por quatro ou cinco elementos que possuíam um conceito limitado do verdadeiro swing.
Entre
as curiosidades narradas no livro, existe um comentário bastante singular,
raramente abordado pelos historiadores de jazz, e que aqui entra como um aposto
na narrativa sobre a história do lindy
hop: a briga de Chick Webb com Count Basie.
A
confusão causou um grande mal-estar entre Herbert White e Chick Webb porque o
maestro-baterista acusara todo o grupo de hoppers
de estar tramando contra ele em favor de Count Basie. A desavença piorou quando
Webb bateu boca publicamente com Basie e se recusou tocar se os dançarinos de
White não esvaziassem o salão, o que quase causou uma comoção pública. Em
breve, Webb e Basie selariam a paz através da intermediação de White e
voltariam a se enfrentar – desta vez musicalmente – numa noite que faz parte da
história do Savoy Ballroom, como se verá mais adiante.
O
fato é que White era um comerciante nato e tratava o lindy hop como se trata uma mercadoria qualquer. Seu negócio não
era gostar de swing, era fazer
dinheiro com o swing e, por não ser
músico nem ter afinidades empresariais com músicos, ele achava mais fácil
gerenciar um grupo de dançarinos do que trabalhar com maestros e arranjadores.
Não
foi difícil para ele, portanto, desculpar-se pelo ocorrido, demitir três ou
quatro dançarinos possíveis responsáveis pelo boato, restabelecer a paz com
Webb, manter uma política de boa vizinhança com Basie e fazer o show continuar.
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A
parceria Norma Miller-Frankie Manning deu muito que falar, tanto no aspecto
musical como no que diz respeito às suas relações pessoais, mas eles sempre
juraram ter sido apenas e nada mais do que grandes amigos, e que jamais tiveram
qualquer intimidade maior, a despeito dos inevitáveis comentários e mexericos
típicos do meio artístico.
De
acordo com Norma, eles jamais colocariam em risco uma sociedade tão perfeita em
troca de momentos fugazes que o tempo se encarregaria de apagar. Afinal, eles
não eram enamorados um pelo outro; os dois eram apaixonados pelo swing, em particular pela dança.
Nos anos 1940
Norma se desligou de White e montou seu próprio grupo de dança, o qual
denominou Norma Miller’s Dance Company, mas continuou esporadicamente a se
apresentar com Frankie Manning aqui e acolá, sempre que se apresentasse uma
situação propícia.
A alegre
adolescente das festas de calouros no Teatro Apollo se transformaria sessenta
anos depois em uma professora com mestrado de dança popular nas Universidades
de Stanford e do Havaí.
A Rainha do Swing,
como Norma foi chamada, foi agraciada em 2003 com o prêmio National Endowment
of the Arts pela sua importância na criação acrobática no lindy hop. Ela morreu em 2019 pouco antes de completar 100 anos, deixando
sua marca na coreografia da dança dos shows musicais nos estúdios de Hollywood
e nas emissoras de televisão americanas.