sábado, 30 de setembro de 2017





CRIME E CASTIGO
A sociedade brasileira está enfrentando no momento uma grande crise de comportamento, possivelmente a maior da sua história.
Leis existem, até em abundância, mas as "contra-leis" (recursos, manobras, justificativas, imunidades) são ainda mais abundantes e acabam por tornar inócuas as tentativas de que as leis sejam cumpridas na sua essência.
É o providencial "jeitinho brasileiro" mostrando toda a sua força. 
Estamos falando da sociedade como um todo, incluindo problemas que rolam e se desenrolam nas áreas da política, da administração, das finanças e do (des)governo. 
Em todas as situações existem dois motivos básicos para que muitos crimes estejam ocorrendo e se multiplicando, lesando os cofres públicos em bilhões de reais e a sociedade: a impunidade e o protelamento da condenação e do cumprimento da pena.
Li hoje no jornal que em São Luís um réu foi sentenciado a 29 anos de prisão por um assassinato cometido em 1990, ou seja 27 anos depois, o que foge das peripécias do "Crime e Castigo" de Dostoiévski e vai para o patamar do absurdo do teatro de Ionesco.
A corrupção e o descaso grassam por todos os campos, logo não podiam deixar de fora os campos esportivos propriamente ditos.
Às vezes a interferência é direta e comprovada , como no caso dos arranjos feitos para superfaturar obras da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos e de falcatruas apuradas em diferentes Federações, outras são meras ilações que são feitas sobre erros e favorecimentos diversos, que podem ou não ser intencionais e criminosos, embora sejam suspeitos. 
Assim como os suspeitos ou criminosos diversos ficam anos ao sabor do vento aguardando sentenças que não vêm ou gozando de liberdade através de "habeas-corpus" convenientes - muitos deles gastando a fortuna amealhada fora da lei, gozando de uma liberdade indevida, se beneficiando de prisão domiciliar e tendo milhões para contratar uma verdadeira legião de advogados - as pequenas ilegalidades do esporte são tratadas com leniência e descaso.
Há que existir uma lei mais severa para crimes comprovadamente cometidos a fim de prevenir, impedir e frustrar que eles sejam perpetrados com a maior tranquilidade, sob os olhos vendados da Justiça.
No esporte, a arbitragem brasileira se mostra uma das mais falhas do mundo - com certeza a mais falha entre os países que praticam um futebol de primeiro mundo - e os responsáveis continuam passando a mão na cabeça de Suas Senhorias como um pai que repreende um filho por um deslize de menor gravidade.
Já que não podemos atacar com nossa lança quixotesca todo um "establishment" legal organizado, vamos pelo menos ser menos tolerantes com as constantes falhas de arbitragem que deslustram um torneio, comprometem a sua credibilidade e jogam na vala comum todo um trabalho executado pelos clubes e seus profissionais.
A CBF tem que convocar urgentemente a sua assembléia constituinte e endurecer as regras que medem a conduta da arbitragem. Temos visto ultimamente erros grosseiros que são ignorados por toda uma equipe de cinco responsáveis - o árbitro geral, dois árbitros assistentes, conhecidos como "bandeirinhas", dois árbitros de linha de fundo que ninguém sabe para que servem e um chamado "quarto arbitro" que se posta do lado de fora, no centro do gramado. 
É incrível como nenhum deles vê irregularidades que acontecem a poucos metros de distância dos seus narizes e não se intercomunicam apesar de estar de posse de aparelhos intercomunicadores.
A saída para este descaso com os clubes, com os jogadores e com o público é simplesmente aplicar suspensões automáticas sempre que ficar provado que o erro foi grotesco e inexplicável pelo posicionamento e pela visão dos árbitros em questão. Esta suspensões poderiam variar de um mês até um ano, com a perda do escudo Fifa e a obrigatoriedade de o árbitro se reciclar numa das divisões inferiores ou dentro de uma sala de aula em uma escola de arbitragem. Sem prejuízo de eventual multa.
Acredito que com esse castigo, o crime seria minimizado e a gente teria arbitragens de melhor nível.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017



O VASO ROXO

(Parte quatro)

O vaso roxo virou um grande sucesso de público.
Os amigos que nos visitavam sentiam-se atraídos pelo seu brilho extraordinário, e eu mesmo tinha a impressão que à noite, mesmo quando a sala estava às escuras, ele ainda brilhava como se armazenasse luz no seu interior ou como se o cristal tivesse minúsculas partículas fosforescentes na sua estrutura.
Eu achava estranho e espantoso, mas gostava do interessante fenômeno. Minha mulher, no entanto, começou a sentir-se incomodada e, muito embora nada de anormal estivesse acontecendo com as nossas vidas, ela cismou que o bendito vaso tinha alguma coisa de sobrenatural e quis se livrar dele.
Eu não sabia como proceder, pois não gostaria de jogar fora o presente de um amigo, mas a solução subitamente bateu à nossa porta.
Um velho amigo nos visitou certa noite para um bate-papo regado a cerveja e salgadinhos e tanto elogiou o brilhoso objeto que acabamos por oferecê-lo como presente.
A princípio ele não quis aceitar, mas minha mulher justificou que o vaso não estava combinando com a decoração da sala nem com as cores dos outros objetos dispostos aqui e acolá e que de qualquer forma iria tirá-lo da sala e trancá-lo dentro de um armário.
Depois de mais algumas cervejas para celebrar a doação, lá se foi o amigo carregando com o vaso, desta vez dentro de uma sacola de uma loja de grife.
Fiquei dois ou três anos sem ver o amigo, até nos encontrarmos casualmente num supermercado.
Conversamos rapidamente as casualidades de sempre, e antes de se despedir ele finalmente fez menção ao bendito vaso.
O objeto caíra no agrado de uma namoradinha que estava frequentando o apartamento e, entre um agrado daqui e um beicinho dali, ele acabou cedendo – até porque ela também cedeu – e o vaso roxo mudou mais uma vez de residência.
Meu amigo continuou se encontrando com a namoradinha até que um dia ela comentou entristecida que a sua diarista “de confiança” havia feito um raspa no seu quarto, levando uma corrente de ouro branco que ela guardava numa gaveta destrancada, algumas bijuterias sem muito valor, dois CDs de música sertaneja, um par de sandálias de marca e o malfadado vaso roxo.
Depois disso, nunca mais voltei a ouvir qualquer comentário sobre o tão luminoso objeto do desejo de tanta gente.
Até que um dia, precisei ir a um velório que estava sendo realizado na capela de um cemitério, cujo ponto culminante seria o enterro, é claro, com direito a orações, lágrimas e fisionomias de praxe.
Não sou muito amante destas reuniões fúnebres, talvez porque deteste pensar que algum dia, num futuro que eu espero ainda esteja distante, serei objeto das mesmas reverências e das mesmas obrigatoriedades, talvez por saber que este entreato representa um encontro com a crua realidade da qual não se consegue escapar, ou talvez por vislumbrar no semblante de muitos presentes um sinal de impostura e hipocrisia.
Mas o morto, no caso, era um parente distante cujo relacionamento se resumia a encontros fortuitos numa festa de aniversário, casamento ou enterro – obviamente de outrem – e a minha presença no enterro era mais uma obrigação social do que sentidas e sinceras condolências.
Terminada a cerimônia, o caixão já devidamente depositado no que eufemisticamente é chamado de “a última morada”, vou caminhando por entre as alamedas ao lado da minha esposa, ambos abatidos, não pela devoção de pudéssemos nutrir pelo defunto, mas pelo clima psicologicamente negativo que todo enterro traz.
Sigo cabisbaixo serpenteando pelos canteiros, e entre o curioso e o distraído, vou lendo os nomes dos inquilinos dos jazigos, gravados em baixo relevo ou pintados de dourado junto com as datas de nascimento e morte, ao lado de flores murchas, velas apagadas e retratos de outros tempos.
Aremildo Boaventura Gatto, Concita da Purificação Valadares, Zaqueu Tremolim – parece que os mortos sempre têm nomes estranhos e fora de moda – neste aqui um jarro de porcelana, naquele outro a estátua de um anjo, tudo como convém a um bom cemitério.   
Eis que me deparo com uma surpresa de tirar o fôlego, pois logo depois de um Antenor Belderagas Cruz, surge um túmulo cujo titular tinha muito a ver com o meu passado: lá estava, gravado em granito escuro, mas perfeitamente legível mesmo à luz do fim da tarde que tornava o crepúsculo acinzentado, o nome Giovanni Amedeo Minotti.
Na foto amarronzada sobre porcelana, estava impressa a sua careca luzidia e a sua expressão de pândego.
Ao seu lado havia uma outra foto, de aparência mais antiga, mas que eu obviamente sabia ser bem mais recente, retratando uma mulher de rosto lívido, portando na face uma expressão vampiresca.
E um nome, escrito com letras menores: Leocádia Efigênia Bustamante Minotti.
Sobre o túmulo, iridescente sob o fulgor da última claridade do dia, estava o meu antigo vaso roxo.

2013









SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 28/10/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

 LESTER YOUNG IN WASHINGTON D.C.

Uma das referências do sax-tenor nos anos 1930, Lester Young se antecipou ao cool jazz e ao bebop muito antes destes estilos se tornarem fundamentais na estante de qualquer jazzófilo. Lester, apelidado de "Pres" ou "Prez" ("president") por Billie Holiday devido à liderança que exercia sobre o grupo criou uma forma de tocar saxofone muito peculiar, contrastando sua tranquilidade no sopro do instrumento com - por exemplo - a abordagem agressiva de Coleman Hawkins, provavelmente seu maior "rival" na época. Os críticos costumavam dizer que Lester Young tocava o saxofone de forma tão relaxada que dava a impressão de estar tocando deitado numa rede. A audição desta noite foi gravada ao vivo em 1956 no Olivia Davis' Patio Lounge, tradicional casa de jazz de Washington D.C. que ainda existe em outro endereço, e inclui entre outras as saltitantes "Tea for Two" e "When You're Smiling" e a romântica "I Can't Get Started", com a presença do trio do pianista Bill Potts, que era também proprietário do Lounge e foi o responsável pela gravação, com Norman "Willie" Williams no contrabaixo e Jim Lucht na bateria.
  

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

quarta-feira, 27 de setembro de 2017





O VASO ROXO

(Parte três)


Certa tarde eu recebi um telefonema no local onde estava trabalhando. A secretária que atendeu disse que uma pessoa que se identificava como Leocádia queria falar comigo. Ora, como Leocádia aparentemente só havia uma no mundo, pelo menos no meu mundo, eu atendi entre curioso e levemente desagradado.
Leocádia se desculpou e disse que havia conseguido meu telefone através do antigo escritório de Giovanni, agora tocado por um engenheiro amigo da família.
Ela parecia incomodada com alguma coisa, e pedia para eu ir ao seu apartamento com alguma urgência. Fiquei intrigado, pois não havia construído laços de amizade que me permitisse ser chamado para fazer visitas ou mesmo opinar sobre algum problema, e não conseguia ver outro motivo para ser chamado com aquela urgência.
Garanti que iria vê-la à noite, quando saísse do escritório, e assim o fiz.
O apartamento em que Leocádia morava era localizado em um prédio antigo numa área decadente no centro velho da cidade e parecia ser mais antigo que o próprio prédio. Era repleto de um mobiliário que deve ter sido adquirido em lojas de antiguidades, e quase não havia espaço livre para circulação.
O lugar cheirava a gato, mas eu não vi nenhum gato por lá. Cheirava também a feijão, mas eu não fui convidado para jantar. Sobretudo, cheirava a mofo.
Sentei-me em uma poltrona enorme e exageradamente confortável, dessas que a gente tem dificuldades para depois se levantar.
A aparência de Leocádia piorara sensivelmente desde quando eu a tinha visto na última vez.
Estava lívida e envelhecida, com a expressão sombria, e o seu semblante mostrava algo além da sua proverbial antipatia, revelando um profundo pesar e cansaço e talvez uma dispepsia crônica.
Parecia uma mulher atormentada.
Provavelmente a chama que iluminava aquele ambiente se fora embora com o velho Giovanni e talvez, desde a sua morte, as cortinas não mais se abriram mesmo que fosse para deixar entrar o ar poluído da cidade.
Logo que cheguei, Leocádia me ofereceu um cálice de licor de ameixa, mas ela própria se absteve da bebida. O licor me pareceu um pouco amargo, talvez porque tenha sido feito sem retirar o caroço ou porque estivesse envelhecido demais.
Enquanto eu sorvia o licor a pequenos tragos, ela falou com a voz destituída de emoção que Giovanni se recriminava pelo fato de não ter ido ao meu casamento e muito mais por não ter entregado o presente que havia comprado com tanto carinho.
A caminho do hospital para onde foi levado às pressas com o coração arrebentado, ele se mostrou mais preocupado com o meu presente do que com o seu futuro, e ela sentia agora que o tal presente tinha que ser entregue como uma obrigação póstuma.
Isto posto, Leocádia levantou-se e caminhou em direção ao quarto, tendo que driblar uma banqueta, um jarro enorme cheio de flores artificiais e uma vassoura de pelo, descuidadamente abandonada na soleira da porta que abria o caminho para o corredor.
Passados alguns minutos de silêncio, quando apenas era possível ouvir o ruído do tráfego oito andares abaixo e um ou outro arrastar de caixas, ela reapareceu com um pacote embalado em um papel de presente bastante amarelado pelo tempo.
Recebi o pacote, dei o gole final no licor, agradeci pela atenção e me despedi, tendo o cuidado de desviar de alguns entraves que atrapalhavam o caminho para não esfolar a canela.
A noite já caíra e o movimento dos transeuntes diminuíra consideravelmente, tornando fácil a minha caminhada em direção ao carro.
O que quer que estivesse dentro da caixa era razoavelmente pesado, muito embora o pacote não fosse muito grande.
Fui para casa com a impressão de estar transportando uma urna funerária ou um daqueles objetos cabalísticos que parentes e seguidores depositam nos recônditos dos jazigos como homenagem aos seus eternos ocupantes.
Ao chegar em casa, depois do beijo tradicional de boa noite, comentei com a minha mulher a minha aventura do fim do dia, e resolvemos abrir o pacote mesmo antes de jantar.
Tratava-se de um imponente vaso de cristal lapidado, de um roxo imponente que chegava a brilhar quando refletia a luz. O vaso foi colocado na mesinha de centro da sala, ao lado de um cinzeiro de cristal de Murano e de um pequeno enfeite de mesa em forma de elefante, também de cristal, que teve a tromba quebrada e agora se assemelhava a um porco. 

terça-feira, 26 de setembro de 2017




O VASO ROXO

(Parte Dois)


Giovanni e Leocádia contraíram núpcias dali a um ano, com as devidas bênçãos do padre e a competente autorização do juiz de paz.
Não fui convidado para as bodas e nem soube de alguém que o tenha sido, mas mesmo se convidado possivelmente não tivesse ido, pois me faltava simpatia pela cara da noiva. A mim, custava crer que o ponderado Giovanni pudesse estar enredado nesse estranho love affair.
O fascínio era tão grande que ela era a única pessoa a quem ele permitia chamá-lo pelo seu segundo nome – Amedeo – que ele simplesmente odiava.
De qualquer forma eu já não compartilhava da sua companhia, pois alguns meses antes do casamento eu havia resolvido trabalhar em outra empresa, apostando num futuro mais promissor e num salário mais compatível com as minhas necessidades. Com isso, me desliguei de Giovanni, do escritório e dos antigos colegas. Desliguei-me também da prancheta e do normógrafo, pois fui ocupar um outro cargo.
O tempo passou e eu também me casei.
Ao contrário de Leocádia, minha mulher parecia um anjo caído do céu, o que causou elogios dos amigos e convidados. O nosso casamento foi bastante concorrido, com muitos amigos presentes, o direito de a noiva jogar o buquê e de dançar a valsa com a companhia dos padrinhos.
Apesar de estar distante de Giovanni havia algum tempo, tive o cuidado de lhe mandar um convite que foi enviado para o escritório de engenharia, mas ele não apareceu. Considerei então que Giovanni Minotti e o nosso relacionamento amistoso eram coisas que o passado havia levado consigo, lamentei que ele não tivesse tido a mesma sorte que eu tive e não me preocupei mais com o assunto.
Passaram-se alguns anos quando eu soube da morte do meu antigo chefe e amigo através de outro ex-colaborador que encontrei na rua. Ambos lamentamos a sua partida, relembrando alguns bons momentos de descontração, mesmo ao mourejar por vezes quinze horas num só dia.
Compartilhamos da mesma opinião: o coração bonachão de Giovanni Minotti não resistira ao Chianti nem provavelmente à megera.
A partir daí, o capítulo que eu havia encerrado deu ensejo a uma outra história.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017



O VASO ROXO

(Parte Um)


Giovanni Minotti era um tipo muito engraçado.
Sorridente e gentil, raras eram as vezes que seu sangue italiano falava mais alto a ponto de fazê-lo pronunciar blasfêmias e impropérios próprios dos seus compatriotas de alma quente e eloquente.
Não fosse o engenheiro que era, por vocação, ele teria sido um excelente comediante, da linha de Totó ou Alberto Sordi, pois era espirituoso e transmitia graça e leveza nas suas tiradas inteligentes. Giovanni tinha uma veia crítica de fazer inveja.
Além do mais, Giovanni Minotti tinha o que se chama “physique du rôle”, pois era a caricatura perfeita do palhaço bonachão, com a careca brilhante e o nariz vermelho – coloração adquirida pelo Chianti generoso das horas de lazer.
Além do vinho, ele tinha uma verdadeira adoração pelo seu trabalho e pelo escritório que mantinha no vigésimo-segundo andar em um prédio no centro da cidade, e quando colocava os óculos de aro grosso e se punha a fazer cálculos com o lápis rabiscando e interpretando as informações da velha régua de cálculo, adquiria a aparência de um matemático francês num filme de “nouvelle vague”.
Eu era um dos seus colaboradores – naquele tempo ele já usava este eufemismo para designar os empregados – e trabalhava como desenhista técnico, um serviço bucólico que aliava paciência com falta de ambição.
A sua vida se dividia entre a galhofa, os projetos e as concorrências públicas, além dos conselhos sábios para os mais jovens e a preocupação em manter uma silhueta que não o fizesse se envergonhar quando se mirasse no espelho.
Sua cruzada contra a margarina e o refrigerante era quase uma guerra santa, mas conquanto vociferasse contra as batatas de saquinho – como ele as chamava – era sabido que as consumia às escondidas.
E a vida transcorria assim tranquilamente entre uma edificação e outra, a pausa para o cafezinho, um Alka-Seltzer para rebater aquela coxinha requentada e alguns telefonemas nervosos para saber o resultado da concorrência, até que num certo fim de tarde, bem na hora em que desabava uma intensa borrasca que fazia com que as frondosas copas das árvores da praça lá embaixo desaparecessem no aguaceiro, apareceu Leocádia.
Leocádia veio do nada, como uma lufada de ar que entra por uma fresta de janela sem se fazer notar. Surgiu como um fantasma inoportuno e fechou ruidosamente o guarda-chuva gotejante.
Embora tivesse a aparência descorada e asséptica de uma pregadora religiosa, a mulher se apresentou como sendo representante de uma empresa especializada na manutenção de mimeógrafos – máquinas copiadoras iguais àqueles utilizadas na segunda guerra mundial, que tingiam de azul até a alma do operador – e também de outras mais modernas para a época, chamadas copiadoras heliográficas.
Quando Leocádia chegou, os sinos tilintaram na cabeça de Giovanni como num passe de mágica, como se ele estivesse sob efeito de uma poção de feitiçaria. E tilintaram tão alto, que quase dava para a gente ouvir do lado de fora.
Ela era na verdade o antípoda do italiano, mas o corolário da vida reza que os opostos realmente se atraem.
Se, por um lado Giovanni era simpático, ligeiramente rechonchudo e irradiava um constante bom humor, Leocádia era angular, desagradável e antipática logo à primeira vista, fosse pelo nariz adunco ou pelo cabelo puxado para trás e amarrado em um coque antiquado, inspirado no século XIX. Ela deixava no ar a promessa de se tornar mais desinteressante a cada momento.
Todavia, quer seja por falarem o mesmo idioma tecnográfico, quer seja por prometerem comungar esquisitices em comum ou ainda por compartilharem o mesmo padrão de pouca beleza – se é que assim pode ser dito – acabou pairando no ar um clima romântico que prometia grandes jornadas amorosas, ornamentada por senos, cossenos e hipotenusas.
E fotocópias em profusão.




SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 28/08/2015
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA 

DELFEAYO MARSALIS 
  
A história reza que o jazz nasceu em Nova Orleans, uma cidade mágica encravada no litoral da Louisiana. Causa ou consequência, a cidade é o berço de algumas dezenas de músicos inspirados, entre os quais se situa o clã dos Marsalis. Capitaneados pelo pai, o pianista Ellis Marsalis, os filhos Wynton, Jason, Branford e Delfeayo, cada qual tocando um instrumento - trompete, bateria/vibrafone, saxofone e trombone - poderiam formar um grupo de jazz beirando à excelência. O Sexta Jazz desta semana vai mostrar dois deles, o trombonista Delfeayo e o saxofonista Brandford secundados por outros talentosos jazzistas, entre eles o pianista Mulgrew Miller e o baterista Elvin Jones, para apresentar o álbum Minions Dominium, gravado em 2002, trazendo o mais puro hard-bop, que mistura composições do próprio Delfeayo, com standards como "Weaver of Dreams" e a tradicional "Just Squeeze Me", de Duke Ellington. Vale a pena conferir.    

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

domingo, 24 de setembro de 2017





ESQUADRÕES DERROTADOS

A realidade no futebol suplanta qualquer livro de ficção, e é neste inesperado que possivelmente resida toda a magia que acompanha este esporte. A história está repleta de situações surpreendentes que levam qualquer analista à loucura quando se confia apenas em projeções matemáticas e estatísticas.
Depois que a bola começa a rolar, previstos e imprevistos estão fadados a acontecer até que o árbitro trile o apito pondo fim à contenda - como se diz no jargão futebolístico. 
Na maioria dos outros esportes os favoritos geralmente vencem. No vôlei, basquete, tênis, atletismo ou natação as surpresas podem até acontecer mas de uma forma geral aquele que é considerado o favorito justifica este favoritismo.   
Mas o futebol é diferente. Basta um cochilo ou um desdém para que o time sinta um impacto negativo e o desequilíbrio psicológico torne sem efeito qualquer perspectiva de reação. Nem o visionário mais maluco poderia por exemplo prever os 7x1 que a Alemanha pespegou no Brasil na Copa em 2014.
Com relação a Copas do Mundo, podemos relacionar três grandes esquadrões que foram derrotados na partida final contrariando todas as expectativas do momento.
Começando por 1950. 
Apesar do domínio da Itália nas Copas anteriores, o futebol daquela época tão tinha nenhum bicho-papão, talvez por causa da sua ainda incipiência. A década de 1940 apontava a Argentina como a dona de um futebol mais brilhante, mas a Argentina desistiu de participar tanto nas eliminatórias como depois, quando foi convidada. Durante a competição chamou a atenção o timaço do Brasil - Barbosa; Augusto, Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico.
Os destaques da seleção eram Bauer e Danilo, um meio-campo elegante e organizador, Zizinho, uma espécie de maestro que ditava o ritmo do jogo e o finalizador Ademir de Menezes, artilheiro do torneio.
O Brasil passeou tranquilo pela competição, mesmo com um empate no Pacaembu contra a Suíça (2x2), quando atuou sem a maioria dos titulares, pois passou sem susto pelo México (4x0) e pela perigosa Iugoslávia (2x0) para depois golear a Suécia (7x1) e a Espanha (6x1) no quadrangular final. Perdeu exatamente o jogo que não podia, quando dependia apenas de um empate para ser campeão. Na última partida o Brasil foi derrotado pelo Uruguai que era liderado pelo "caudilho" Obdulio Varela por 2x1.
Quatro anos mais tarde, na Suíça, o mundo se encantava com a seleção da Hungria, uma verdadeira máquina de jogar futebol. Formada para as Olimpíadas de Helsinki em 1952, o esquadrão formado por Grosics; Buzanski, Lantos, Zakarias, Lorant e Bozsic; Budai, Kocsis, Hidegkuti, Puskas e Czibor se manteve invicto por 29 partidas e se notabilizou por aplicar sonoras goleadas - entre elas Albânia (12x0), Turquia (7x1), Suécia (6x0) e Inglaterra (6x3 e 7x1) - chegando à Copa de 1954 com status de favorito. 
O craque do time e do mundo era Ferenc Puskas - o "Major Galopante" - meia-atacante que dominava a faixa intermediária do adversário, fintava, se infiltrava, fazia lançamentos  e finalizava com precisão.
Durante a Copa a Hungria fez valer sua classe, vencendo a  Coréia do Sul (9x0), a Alemanha Ocidental (8x3), o Brasil (4x2) e o Uruguai (4x2) até perder para a dona da casa Alemanha Ocidental sob a batuta de Fritz Walter, que jogando um futebol pragmático virou o jogo em que perdia por 2x0 para 3x2 e levantou a taça.  
Levou quase vinte anos para que surgisse um outro esquadrão fantástico, a Holanda, que combinava  a qualidade técnica dos jogadores a uma obediência tática rigorosa e a um padrão de jogo absolutamente revolucionário, comandada por um jogador extraordinário de nome Johann Cruijff. 
O time atuava num sistema chamado carrossel - ou futebol total - onde todos defendiam e atacavam em bloco e não mantinham posições fixas. A base era formada por Jongbloed; Suurbier, Haan, Rijsbergen e Krol;  Jansen, Neeskens e Van Hanegem; Rep, Cruijff e Resenbrink.  
O mundo ficou mais uma vez surpreso quando pela segunda vez o pragmatismo alemão venceu o talento do adversário, pois igual ao que acontecera em 1954, a Alemanha Ocidental começou perdendo, virou o jogo e venceu por 2x1 sob o comando de Paul Breitner e Franz Beckenbauer.