sábado, 19 de setembro de 2020

 



AS CORES DO SWING
           (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS

Definitivamente, aquele 15 de dezembro não parecia ser um dia propício para grandes aventuras.

O frio e a possibilidade de neve iminente pairavam sobre a região de Bedfordshire, no leste da Inglaterra, e desencorajavam desde a simples abertura de uma fresta de janela até uma rápida chegada à tabacaria mais próxima. A temperatura fazia um apelo convidativo para o aconchego de uma sala com a lareira ativada – posto que calefação era um artigo de luxo naquele período de guerra – onde podia ser degustado um chá do tipo Gunpowder com um pouco de brandy, para desespero do caseiro inglês, adepto da mistura com leite.

Era em Bedford, próximo à cidadezinha de Clapham, num lugarejo chamado Twinwood Farm, que a RAF – Royal Air Force – mantinha uma pequena base, de onde partiam aviões pequenos e monomotores, como aquele que se dispunha a conduzir o major Glenn Miller no seu voo até Paris.

Os especialistas, cautelosos, eram favoráveis a que ele adiasse a viagem, pois as previsões meteorológicas para o dia – e para o dia seguinte – não indicavam um voo tranquilo na travessia do Canal da Mancha.

O major Glenn Miller, no entanto, pensava diferente.

Seu comportamento era movido pela música, e não havia condição atmosférica capaz de interferir nos seus planos quando esses planos significavam música, alegria e descontração, mesmo em meio à tormenta social que se abatera sobre a Europa.

Ele havia escolhido o seu destino.

Dono de uma das mais aplaudidas orquestras nos Estados Unidos, Miller resolvera abdicar dos salões glamorosos de Nova York, Chicago e Los Angeles para se alistar no exército americano e se envolver com a violência e a degradação humana que se alastravam por todo o território europeu, com a única finalidade de levar música, alegria e descontração para os soldados do Tio Sam.

Miller deixou de lado os elegantes tuxedos para vestir a si e à sua preciosa orquestra com o uniforme de guerra dos Estados Unidos, e deixou pra trás uma plateia cheia de gente bonita e bem vestida para tocar para um bando de homens ensandecidos que urravam durante a execução da música.

Para tanto, ele se valeu de uma amizade antiga com o general-brigadeiro Charles Young, que convenceu o comando geral sobre a importância da missão do bandleader e enviou o batalhão de Miller para o miolo da guerra empunhando saxofones e clarinetes ao invés de fuzis e metralhadoras.

Oh c’mon”, argumentava Glenn Miller sobre a necessidade de adiar o voo, o que é a ameaça de uma simples tormenta para quem enfrenta bombardeios aéreos e canhonaços com a maior serenidade?

Ele tinha um compromisso importante em Paris, e não seria a cara feia do tempo que iria demovê-lo da ideia de viajar. Miller precisava preparar os detalhes do show de Natal que a sua orquestra iria fazer em homenagem aos soldados americanos e franceses na recém-libertada Cidade Luz, finalmente livre das mãos e das botas dos alemães, depois de quatro anos de tormento.

A França, mais do que qualquer outro país, significava algo muito especial para os músicos americanos, principalmente em se falando de jazz.

Desde o início do século vinte, este país fora um dos preferidos pelos jazzistas dentro do continente europeu, tanto pelo calor e entusiasmo com que o novo estilo havia sido recebido, como pelo precoce aprendizado dos músicos gauleses através de uma surpreendente seleção de nativos bastante competentes que fizeram do jazz a sua segunda pátria musical.

O show da Glenn Miller Orchestra seria realizado no tradicional Teatro Olympia e transmitido ao vivo pelo rádio para todo o país, para a Inglaterra e para outras partes do continente europeu, e a presença do bandleader na sua preparação era necessária por conta dos inúmeros detalhes a serem revistos. Miller gostava de verificar pessoalmente o mapa do palco, a qualidade dos microfones e do sistema de som, e de analisar o repertório em função da atmosfera criada com a expectativa do espetáculo, além de outras coisas bem comezinhas, como acomodação, alimentação e lavanderia para o pessoal da orquestra.

Outra preocupação, é claro, era a análise e a assinatura do contrato comercial, pois Miller temia que os organizadores pudessem exigir a presença de músicos franceses na sua banda e queria se assegurar que os valores a serem pagos estavam de acordo com o previamente acertado.

Assim, enquanto se servia de um chocolate quente, que as suas raízes americanas preferiam ao chá do tipo Gunpowder tradicional, ele rabiscava a sequência das músicas e o desenvolvimento do show, considerando tratar-se de um espetáculo comemorativo que, de alguma forma, começava a antecipar a reviravolta aliada que iria redundar na vitória final contra o regime de Hitler dali a menos de um ano.

Glenn sempre fora um incorrigível otimista e um incurável preguiçoso. Ele também apreciava uma pescaria, de preferência sozinho e em lugares isolados, e gostava de assistir uma boa partida de beisebol – Jimmie Foxx, do Boston Red Sox, era o seu jogador favorito. Tinha também uma queda especial para ganhar dinheiro.

A música, no entanto, era a energia que movia a sua vida. Mesmo gostando de dormir horas a fio, ele jamais permitia que o descanso pudesse comprometer o seu trabalho musical.

A apresentação parisiense iria render à orquestra muitos elogios e uma considerável quantia para engordar a conta bancária dos músicos, principalmente a sua, e era sobre isso que Miller estava conversando com o seu arranjador predileto, Jerry Gray.

Gray estava trabalhando com Miller há quase cinco anos, período suficiente para que o bandleader reconhecesse nele não apenas o valor de um grande arranjador, como também de uma pessoa confiável o bastante para ser seu confidente.

Jerry Gray também desaprovava a viagem dentro das condições existentes, mas Miller era um cabeça-dura de tal monta que nem o melhor dos amigos seria capaz de demovê-lo de uma ideia. Iria viajar logo depois do almoço, lá pelas três horas da tarde, e ponto final.

Apesar de alistado regularmente no exército americano e de ostentar no momento a patente de major, Glenn Miller jamais perdera suas características civis, e entre estas características estava a desobediência às ordens ou instruções que estivessem contra a sua maneira de pensar.

Miller se alistara nas forças armadas por puro patriotismo, mas desde o início fora seduzido pela ideia de transformar o front num imenso palco. Para tanto, ele fez um acordo com o seu amigo general-brigadeiro: ele faria uma guerra diferente, na qual estimularia os soldados americanos sem a necessidade de participar efetivamente das batalhas e tocaria swing ao invés de marchas militares.

Um dos itens do acordo era recrutar os músicos da sua própria orquestra a fim de manter a sua conhecida qualidade sem ser preciso contar com outros soldados-músicos regulares mesmo que eles tivessem alguma familiaridade com o jazz.

Por conta disso, apesar de tocar sem receber um tostão na maioria das vezes, por se tratar de uma orquestra oficial do exército americano, por vez ou outra ele promovia apresentações especiais remuneradas, patrocinadas pelo próprio exército ou por algum Mecenas apreciador do swing.

No caso do show de Paris, a sugestão partira do próprio general, que inclusive tivera a preocupação de estabelecer contatos com seus pares franceses de modo que a situação financeira fosse devidamente arranjada como se faz em qualquer produção musical de cunho comercial, isto é, com cachê, divulgação, alimentação, viagem e hotel pagos.

Glenn Miller abria a possibilidade de, no dia seguinte ao show do teatro, fazer uma apresentação grátis ao ar livre num dos melhores pontos de Paris, a fim de permitir que o povo francês tivesse contato direto com o carisma dos seus músicos.

Mas o dia estava realmente feio, e nada recomendava uma viagem aérea no turbulento céu do Canal da Mancha. A imagem vista pela janela era desoladora, mostrando uma manhã cor de chumbo e a pista deserta, sem uma viva alma a transitar nos arredores, enquanto a força do vento fazia tremer as vidraças e varria a esmo alguns pedaços de papel.

Por duas vezes o piloto do monomotor interrompeu a conversa que Miller mantinha com Jerry Gray para sugerir que deixassem a viagem para a manhã do dia seguinte, pois as frias manhãs inglesas de dezembro costumavam ser brindadas por uma réstia de sol.

No way, Chuck!”, foi a resposta seca do major.

Assim, às três horas de uma tarde úmida e opaca, partia de Twinwood Farm o monomotor Noorduyn Norseman tipo C-64, prefixo 44-70285, com destino a Paris, e o que se tem daí para frente passou a ser uma especulação histórica.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 



...E A BANDA NÃO TOCA

(Augusto Pellegrini)

 

          Zé do Café era o garçom que servia a diretoria de uma importante usina siderúrgica inaugurada havia poucos anos e considerada a cereja do bolo da indústria nacional e o cartão de visita do progresso e da modernização, tendo em vista as questões comerciais e diplomáticas com relação a outros países.

            Recém-saídos de uma revolução militar acontecida dois anos antes, o país vivia reflexos de grandes mudanças na sua política econômica e estrutural e o novo poder constituído exercia uma intensa vigilância sobre as atividades e procedimentos das empresas consideradas estratégicas para os interesses da nação.

            Com isso, reuniões entre os diretores da usina e altas patentes militares eram frequentes, sendo discutidos atrás das portas trancadas assuntos de grande relevância para a segurança nacional. O único momento em que se permitia alguma descontração era a hora do cafezinho, quando entrava em ação o nosso personagem.

Era o instante em que Zé do Café, desconfiado como bode embarcado, chegava para exercer seu ofício, postando no rosto um sorriso falsificado e tentando algumas frases supostamente engraçadas para baixar a tensão, quando na verdade desejaria estar naquela hora a centenas de metros daquela sala.

Naquela sexta-feira fatídica, Zé adentrou o recinto sagrado equilibrando uma bandeja de prata com um bule cheio de café cheiroso, um açucareiro, e as respectivas xícaras e colherinhas, e começou o ritual da trégua pacificadora da reunião, o que sugeria uma leve descontração no clima pesado existente entre três militares graduados e quatro dirigentes do mais alto escalão da empresa.  

Um cigarro aqui, um pigarro acolá, e eis que o inesperado acontece.

Um vacilo momentâneo, um passo dado fora do compasso ou um gesto mal calculado fez com que a xícara do café destinada ao general mais cheio de estrelas sofresse um estremecimento, deslizasse sobre o pires e entornasse o precioso líquido sobre as medalhas e condecorações do militar.

Fez-se o silêncio dentro do silêncio, aquele vazio abafado que antecede a tormenta. Os diretores da usina se entreolharam sem mexer a cabeça, o pânico estampado na face.  

Zé do Café, suando como uma panela destampada cozinhando o seu futuro, colocou a bandeja sobre a mesa, olhou desalentado para os juízes da sua condenação e balbuciou de si para si, mas de forma bem audível:

“É, doutor... é foda. É foda, e a banda não toca...”

Meio segundo depois, os sisudos senhores caíram na gargalhada, como se estivessem todos despertando de um sonho para a realidade.

Um dos dirigentes então falou – “Zé, leve o general para o banheiro onde ele poderá limpar o estrago que você fez. Na volta, traga mais café, mas tome mais cuidado”.

 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

 




AS CORES DO SWING
           (Livro de Augusto Pellegrini)

FINAL DO CAPÍTULO 11 - O REI DO SWING

Estava quase na hora de começar o espetáculo.

Goodman, ainda sentado na poltrona de couro com os olhos semicerrados, avaliava as vantagens e o lado negativo de algumas decisões de John Hammond, que o convencera a agregar na sua orquestra, especificamente para esta noite especial, alguns dos ases que tocavam com Duke Ellington e Count Basie.

Goodman relutara, pois tal expediente poderia deixar os músicos da sua orquestra descontentes, mas Hammond o convenceu alegando boas razões de marketing, muito embora evidentemente o termo não fosse ainda utilizado naquele tempo.

Hammond acrescentava que com a diversificação dos músicos, o show iria adquirir um caráter todo especial, pois o “Rei do Swing” iria comandar astros de constelações diversas, mostrando seu lado de líder e organizador musical, e que a música, como um todo, poderia receber um toque de primor nos solos e nos improvisos. Além do mais, a data histórica estava celebrando vinte anos de jazz, portanto a festa tinha um bom motivo para ser diferente.

Assim, mesmo sem estar plenamente convencido de que estivesse fazendo a coisa certa, Benny Goodman admitiu incluir na sua orquestra o próprio Count Basie, que iria tocar piano em duas músicas. Basie estaria levando com ele o guitarrista Freddie Green, o baixista Walter Page e o saxofonista Lester Young. A produção já havia também garimpado junto a Duke Ellington a participação dos saxofonistas Johnny Hodges e Harry Carney e do trompetista Cootie Williams.

John Hammond deu alguns palpites na montagem do repertório para que a presença dos expoentes das outras orquestras pudesse ser ressaltada, mas isso foi restringido a um mínimo necessário, a fim de satisfazer o público sem influenciar no resultado da orquestra de Goodman.

Depois de terminado o show, Benny Goodman iria finalmente perceber que, apesar das suas restrições, o enorme sucesso da empreitada tinha muito a ver com a visão empresarial e artística de John Hammond.

Mas Goodman não teve mais tempo de processar as suas preocupações naquele momento.

McAbee, o principal da produção do Teatro Carnegie Hall, bateu na porta do camarim com o nó dos dedos, extraindo uma sucessão de pancadas ocas que tiraram o maestro do seu devaneio.

O som da voz estridente – “cinco minutos!” – fez o maestro se aprumar e saltar da poltrona como se tivesse levado um choque. Cinco minutos, tempo suficiente para ale abotoar a camisa, dar o nó na gravata borboleta e colocar o paletó.

Depois de uma última apreciação no espelho e uma ajeitada no cabelo, Goodman empunhou o seu clarinete já previamente afinado e se dirigiu resoluto pelas escadas e corredores que conduziam ao palco, onde os membros da orquestra tomavam seus lugares de uma maneira um tanto quanto desordenada.

No caminho, ele cruzou com o baixinho Johnny Hodges e com o reforçado Count Basie, que lhe deu uma piscadela marota querendo dizer – “vamos lá, garoto, é hora de arrebentar” –, enquanto as cortinas terminavam de abrir, depois que todos os músicos já haviam se ajeitado nas suas cadeiras.

Da posição em que se encontrava, parado, por detrás da coxia, Goodman ouviu um crescente burburinho, ao mesmo tempo em que a iluminação do palco crescia e as luzes da platéia diminuíam.

Finalmente, ele respirou fundo, lembrou-se da noite de estréia no Palomar de Los Angeles e adentrou o suntuoso palco do teatro, sob aplausos ensurdecedores.

Aí então, Goodman começou a cumprir a sua parte: olhou o enorme público que lotava todas as dependências, sorriu e agradeceu com uma vênia, colocou a orquestra de prontidão e – “one... two... one, two, three, go!” – começou o seu grande espetáculo.

A sonoridade do teatro lotado era espetacular, e Goodman sentiu um profundo arrepio como jamais sentira. Era como se a música saísse dos poros dos músicos e enchesse o ar, ocupando cada pequeno espaço do salão e dos ouvidos de todos os presentes.

Se é que ainda pudesse existir alguma dúvida sobre o merecimento do título ofertado pelos críticos de Los Angeles, a noite de swing no Carnegie Hall resolveu qualquer questão. O próprio Goodman, comedido, a princípio, caiu finalmente em si, e depois dessa noite mágica assumiu ser realmente o Rei do Swing.

Sua orquestra possuía uma qualidade de som que não se ouvia nas rivais, nem mesmo nas mais qualificadas.

Muitas delas naquela altura sequer tinham conseguido perder o “ranço” dos anos 1920 e haviam estacionado no tempo. Outras cresceriam em direção ao futuro para se tornarem em cinco ou dez anos orquestras perfeitas. A orquestra de Benny Goodman, no entanto, já era perfeita, exibindo em 1938 um som que seria experimentado por muita gente de valor apenas ao redor de 1950. Era a orquestra do presente e do futuro, e estava vinte anos à frente do seu tempo.

O sopro do seu clarinete se aproximava do divino, e não foi por outra razão que compositores eruditos entre os mais consagrados como Béla Bartók, Paul Hindemith e Aaron Copland escreveriam num futuro próximo peças especialmente compostas para o instrumento a fim de serem executadas por Goodman.

O Teatro Carnegie Hall retratava o presente, mas projetava o futuro de uma forma clarividente, tal qual um oráculo.

 

 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

 


                                            Na foto: Bob Dylan, Benny Goodman e John Hammond 

AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 11 - O REI DO SWING
            (continuação)


John Hammond era um bon-vivant de classe rica que se afeiçoou pelo jazz de tal maneira que direcionou a sua vida a ajudar os artistas que ele considerava terem valor.

Branco, risonho e simpático, quem sabe Hammond pudesse ter feito sucesso na indústria cinematográfica, mas o fato é que ele se sentiu irremediavelmente atraído pela música, principalmente aquela de contornos negros, como o blues, o jazz tradicional e o swing.

A conservadora família de Hammond não aprovava de jeito algum o modo de vida do rapaz, que se transformou numa espécie de “playboy” rebelde, embora o termo ainda não existisse no final dos anos 1920. A família também não aprovava as incursões de Hammond junto à comunidade negra de Nova York, onde ele participava ativamente do movimento Harlem Renaissance, convivendo com músicos, poetas e jornalistas que pregavam um estilo de vida de acordo com as raízes africanas.

Participando intensamente do clima do Harlem, não foi difícil para Hammond conviver com o jazz das casas noturnas, desde as mais modestas biroscas até os melhores clubes, e com músicos talentosos, alguns dos quais não conseguiam encontrar espaço para desenvolver a sua arte e crescer no panorama musical de Nova York.

Seu faro para investir em artistas promissores foi fundamental para a carreira de muitos músicos que perambulavam de casa em casa, e o seu envolvimento com o jazz acabou por transformá-lo em um empresário, crítico musical, conselheiro, produtor e descobridor de talentos. John Hammond foi responsável pela projeção de inúmeros jazzistas e blueseiros, como Benny Goodman, Charlie Christian, Freddie Green, Count Basie, Teddy Wilson, Lionel Hampton, Billie Holiday, Joe Turner, Robert Johnson e Bessie Smith (no futuro, ele também iria promover o crescimento de astros como Bob Dylan, Aretha Franklin, George Benson, Peter Seeger, Bruce Springsteen, Steve Ray Vaughn e também seu filho, John Hammond Jr.).

Talvez com o intuito de tornar mais romântica a presença de John Hammond no campo da música, muitos biógrafos costumam ignorar o fato de que ele possuía uma educação musical formal, tendo aprendido viola e violino na Universidade de Yale antes de se defrontar com Bessie Smith no Teatro Alhambra e se apaixonar pelo jazz e pelo blues.

Mais de uma geração de músicos passou pelas suas mãos, quer dependendo de uma indicação ou de uma ajuda financeira, quer descolando um contrato aqui ou acolá, ou ainda fazendo parte de gravações que o tinham como produtor.

Foi esse John Hammond que, ao saber que Benny Goodman iria participar semanalmente do programa Let’s Dance, transmitido de costa a costa nos Estados Unidos pela Rádio NBC, sugeriu ao maestro que comprasse alguns arranjos de Fletcher Henderson para aumentar o repertório e o brilho das suas apresentações.

Para participar do programa, Goodman e sua recém-criada orquestra haviam passado por uma seleção prévia feita pela emissora e obtido a chance de executar a parte jazzística do programa – a música orquestral mais ortodoxa ficava a cargo da desconhecida orquestra de Kel Murray e a parte mais popular com a orquestra latina de Xavier Cugat, músico titular do famoso Hotel Waldorf-Astoria.

O programa Let’s Dance ajudou a tornar a orquestra de Benny Goodman definitivamente conhecida, pois levou o seu som para todos os recantos dos Estados Unidos. Por conta dessa divulgação quis o destino que ele regressasse a Los Angeles para cumprir um contrato negociado por John Hammond e fazer algumas apresentações na melhor casa noturna da cidade, o Palomar Ballroom.

Sua chegada mexeu com o show business local, pois as concorrentes do Palomar – o Venice, o La Monica, o Mandarim e o Casino Gardens – também fizeram propostas atraentes para contar com o concurso da sua orquestra, coqueluche do momento. Chegou a ser criado um certo clima de tensão, pois as casas noturnas de Los Angeles, como de resto as de Chicago e Nova York, eram controladas por gângsters, que aliavam um formidável tino artístico a um insaciável desejo de faturar cada vez mais alto.

Naquele momento, Benny Goodman, mais do que uma bela orquestra a ser admirada, representava lucro – e quando se falava em lucro tudo era válido na guerra das gangues.

Goodman, no entanto, foi irredutível, pois achava pouco ético e muito perigoso mudar as regras do jogo depois de fazer uma viagem cortando o país de leste a oeste com todas as despesas pagas pelo Palomar, que ele considerava ser seu empregador de direito. Dez minutos de conversa com o experiente Ben Pollack foram mais do que suficientes para mostrar o acerto da sua escolha.

Estávamos em agosto de 1935, e os críticos de swing já colocavam a orquestra de Benny Goodman acima da queridinha do momento, a Casa Loma de Glen Gray, que desde 1933 também tinha o seu programa radiofônico da série Camel Caravan.

Na verdade, o aparecimento de Goodman coincidiu com o declínio da Casa Loma, que se notabilizara por manter desavenças internas – o pedido de dispensa do gerente Henry Biagini e a sua substituição por Mel Jenssen feita pelos próprios músicos, o alcoolismo do arranjador Gene Gifford, que foi substituído por Larry Clinton, e a posterior demissão de Mel Jenssen, que trouxe outras mudanças na direção, foram apenas alguns dos ingredientes negativos que mexeram com a consistência e a autenticidade da banda.

Desde a noite de estréia o Palomar ferveu de público e de entusiasmo. A orquestra de Benny Goodman projetava um som marcante de swing enquanto os presentes deliravam, muitos deles dançando aquilo que se convencionara chamar de jitterbug ou lindy hop, mais conhecido por aquelas bandas como west coast swing.

Os jornais da Califórnia estampavam manchetes sobre o novo fenômeno musical que tomava conta da Costa Oeste, decretando oficialmente o início da Era do Swing e outorgando ao maestro o título de “O Rei do Swing”.

Assim, Benny Goodman era alçado à nobreza do jazz, e os críticos ressaltavam ruidosamente que ele fazia parte de uma corte que já contava com um rei (King Oliver), um duque (Duke Ellington), e dois condes (Count Basie e Earl “Fatha” Hines), além de um presidente (Lester Young, o Pres).

De acordo com Dan Morgenstern e outros analistas de jazz, Goodman conseguia executar o swing com mais negritude do que as outras orquestras brancas que faziam sucesso na época, e surpreendentemente, melhor até do que muitas orquestras negras, talvez pela sua associação com os arranjos obtidos de Fletcher Henderson, que era um gênio da orquestração.

 

domingo, 13 de setembro de 2020




AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 11 - O REI DO SWING
            (continuação)

O senhor David Goodman era um judeu russo que havia imigrado para os Estados Unidos no fim do século dezenove para fugir do anti-semitismo. David trabalhava como alfaiate em Varsóvia, mas na América teve que completar a renda com um emprego menor em um frigorífico de Chicago, participando da matança dos bois e da limpeza do pátio onde o gado era esfolado.

O salário era também pequeno, do tamanho do seu serviço, e mal dava para sustentar a família composta de mulher e doze filhos.

Sua principal atividade era livrar o pátio do frigorífico das vísceras, da gordura e do sebo que se acumulava a cada degola, enfiando as botas de cano longo até a altura do tornozelo naquela massa sangrenta e disforme enquanto utilizava uma pá para jogar os detritos dentro dos recipientes adequados.

Quando David chegava em casa, um quarto e cozinha alugado na Maxwell Street, o pequeno Benjamin – a quem chamavam de Benny – lá estava esperando para abraçá-lo cheio de alegria, embora mal conseguisse suportar o mau cheiro que dele exalava.

Benny tinha muita pena do pai, e mesmo sendo ainda uma criança, imaginava o que poderia ser feito para livrá-lo de tal pesadelo. Sonhava em aprender alguma profissão para ajudar nas despesas da casa, e a sua preocupação o tornava uma criança arredia, pouco sujeita a brincadeiras com outros meninos da sua idade.

Como judeu praticante, Benny ia regularmente à sinagoga de Kehelah Jacob, onde havia uma modesta escola de música. Começou a se interessar pelo clarinete e a ter contato com o instrumento através do professor James Sylvester.

Sylvester entremeava suas aulas práticas com noções de teoria musical, e pelo desenvolvimento surpreendente e prematuro de Benny ele logo pressentiu que o garoto teria futuro. Tendo isso em mente, tão logo sentiu que o momento era apropriado o professor o incluiu numa banda de meninos formada por crianças pobres cuidadas por uma dama de nome Jane Adams, que administrava uma casa de caridade chamada Hull House.

Ele ainda usava calças curtas quando resolveu, junto com um amigo da Hull House – Dave Tough – se juntar a um outro grupo de adolescentes que tocava na Austin High School, uma escola das redondezas. A banda tinha o sugestivo nome de Austin High School Gang.

Benny teve um crescimento rápido como músico, tendo inclusive a oportunidade de participar da orquestra de Benny Meroff, onde imitava o então famoso clarinetista Ted Lewis, um bem sucedido músico branco que tocava na Original Dixieland Jass Band.

Quando menos esperava, Benny começou a se apresentar como profissional e a ganhar algum dinheiro, dando-se conta que a partir de então sua música poderia representar para ele um futuro promissor, e para o pai a redenção e uma velhice melhor.

Benny tinha dezesseis anos quando foi chamado por Ben Pollack para ir a Los Angeles a fim de ingressar na sua orquestra, a Ben Pollack and His Californians, dezessete quando participou das suas primeiras gravações, e dezenove quando viu pela primeira vez o seu nome impresso no selo de um disco.

Tudo parecia estar caminhando dentro do que Benny esperava, mas o velho David Goodman andava muito irritado com a situação, pois não se conformava em ver um filho pagando as suas contas.

É claro que David não chegava ao ponto de sentir saudade dos tempos em que havia trabalhado como carniceiro, emprego que abandonara na tentativa de se dedicar apenas à profissão de alfaiate, mas se sentia bastante incomodado no seu orgulho de pai de família.

O velho David se achava incompetente e ficava envergonhado consigo mesmo por não bancar os recursos da casa como um chefe da família deveria fazer. Com a demanda de clientes em baixa, ele saía de casa pela manhã para perambular pelas ruas até a hora do almoço, chegando em casa não mais cheirando a gado morto, mas a bourbon falsificado.

Numa das suas idas e vindas, o pior aconteceu: o senhor David Goodman foi atropelado por um automóvel quando descia de um bonde. Levado inconsciente para um hospital de Chicago, ainda conseguiu sobreviver por dois dias, mas não resistiu e morreu.

A morte de David deixou um vazio na vida de Benny, que muitos anos depois ainda se confessava ressentido por não ter tido o tempo necessário para dar ao pai uma vida decente, depois de tantos dissabores – a mudança da Polônia para os Estados Unidos na condição de imigrante pobre, o sub-emprego, as humilhações que passara por ser judeu, os dias em que sentia o estômago doer de fome e a morte inglória.

Com o passamento do pai, Benny voltou de Los Angeles para Chicago, mas a cidade perdera o encanto. Nem o fato de gozar de um relativo sucesso junto a Ben Pollack e outros band leaders, com um futuro praticamente garantido no cenário musical do show business local, fez desaparecer o desencanto que estava sentindo.

Então, Benny fez as malas e partiu para Nova York, onde seria um mero desconhecido e lutaria durante algum tempo para se tornar famoso, trabalhando de free-lancer como músico de aluguel.

Ele tinha alguma contribuição para dar, pois já esbanjava uma técnica apreciável executando solos que haviam ficado marcados pelos clarinetistas que ele ouvira na sua infância, notadamente o pessoal de Nova Orleans, como Johnny Dodds, Leon Roppolo e Jimmy Noone, misturado com os trinados mais comerciais de Ted Lewis.

Goodman era uma pessoa arrojada e decidida a subir no mundo artístico que Nova York lhe proporcionava. Descobriu onde o trompetista Red Nichols realizava os seus ensaios, num galpão próximo à Rua 52, e para lá se dirigiu tendo em mãos o estojo contendo o seu clarinete.

Lá chegando, encontrou pela frente um porteiro mal-encarado que lhe disse Red Nichols estar ensaiando e que não havia interesse em fazer experiências com novatos. “Músicos como você aparecem todos os dias para pedir emprego e Red não aguenta mais ouvir mediocridades”, disse ele com a autoridade de um maestro.

Benny Goodman retrucou educadamente que já tocava profissionalmente há algum tempo, e tudo o que queria era mostrar seu estilo para o senhor Nichols, ao que o porteiro replicou que ele teria que marcar dia e hora para ser recebido – “mas não agora!” – concluiu.

Benny Goodman agradeceu e fingiu que ia embora. Tão logo o porteiro fechou a porta, ele tirou calmamente o instrumento do estojo, experimentou o bocal e prestou atenção na música que a banda estava tocando, uma velha conhecida sua de Chicago, chamada “King Porter Stomp”.

Goodman esperou pela hora do solo de piano, quando o volume arrefecia, e atacou um improviso alto e de bom som. As notas musicais extraídas do seu clarinete entraram pelo galpão adentro e despertaram a curiosidade de Nichols que imediatamente parou o ensaio e se dirigiu para o lado de fora a fim de ver o que estava acontecendo. Ato contínuo, Nichols convidou Goodman para entrar no galpão e exercitar um pouco com os seus músicos.

Depois dessa apresentação nada ortodoxa, presenciada pelo porteiro boquiaberto, Benny Goodman começou a participar extemporaneamente da orquestra Red Nichols and His Five Pennies, embora preferisse continuar como free-lancer, o que lhe possibilitava tocar com outras bandas e conhecer outras práticas, além de sempre fazer um dinheiro extra.

Seu nome crescia no mundo musical de Nova York, e ele logo se viu convidado a tocar com Isham Jones, que dirigia uma das mais populares orquestras de dança da cidade, com quem ficou alguns meses antes de se unir ao seu antigo ídolo Ted Lewis, remanescente dos melhores grupos de jazz tradicional dos anos 1910.

Tocar com Lewis trouxe a Goodman uma série de benefícios.

Primeiro, ele deixou definitivamente de imitar Lewis ao perceber que tocava melhor do que ele. Goodman extraía do clarinete seqüências melódicas e paráfrases muito mais bem elaboradas e criativas do que o antigo ídolo. Depois, ganhou uma admirável noção de como tocar em equipe, e pela primeira vez teve a certeza de que poderia apostar numa orquestra própria, com mais brilhantismo do que a de Ted Lewis ou mesmo Isham Jones, desde que trabalhasse com arranjos mais arrojados e produzisse uma maior leveza no beat da música.

Pouco tempo depois, em 1932, Benny Goodman, no vigor dos seus vinte e três anos, montava o seu primeiro grupo orquestral, recrutando músicos aqui e ali, a maioria dos quais participantes de sessões free-lance, como ele.

Em 1934, Goodman já possuía no elenco figuras de proa do jazz novaiorquino, como o trompetista Bunny Berigan (logo depois vieram também Harry James e Ziggy Elman), o pianista Jess Stacy e o baterista Gene Krupa. Mais tarde Goodman aprimoraria os arranjos, trabalhando com alguns cadernos sofisticados adquiridos de Fletcher Henderson.