AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS
Definitivamente, aquele 15 de
dezembro não parecia ser um dia propício para grandes aventuras.
O frio e a
possibilidade de neve iminente pairavam sobre a região de Bedfordshire, no
leste da Inglaterra, e desencorajavam desde a simples abertura de uma fresta de
janela até uma rápida chegada à tabacaria mais próxima. A temperatura fazia um
apelo convidativo para o aconchego de uma sala com a lareira ativada – posto
que calefação era um artigo de luxo naquele período de guerra – onde podia ser
degustado um chá do tipo Gunpowder com um pouco de brandy, para desespero do caseiro inglês, adepto da mistura com
leite.
Era em Bedford,
próximo à cidadezinha de Clapham, num lugarejo chamado Twinwood Farm, que a RAF
– Royal Air Force – mantinha uma pequena base, de onde partiam aviões pequenos
e monomotores, como aquele que se dispunha a conduzir o major Glenn Miller no
seu voo até Paris.
Os especialistas,
cautelosos, eram favoráveis a que ele adiasse a viagem, pois as previsões
meteorológicas para o dia – e para o dia seguinte – não indicavam um voo tranquilo
na travessia do Canal da Mancha.
O major Glenn
Miller, no entanto, pensava diferente.
Seu comportamento
era movido pela música, e não havia condição atmosférica capaz de interferir
nos seus planos quando esses planos significavam música, alegria e
descontração, mesmo em meio à tormenta social que se abatera sobre a Europa.
Ele havia escolhido
o seu destino.
Dono de uma das
mais aplaudidas orquestras nos Estados Unidos, Miller resolvera abdicar dos
salões glamorosos de Nova York, Chicago e Los Angeles para se alistar no
exército americano e se envolver com a violência e a degradação humana que se
alastravam por todo o território europeu, com a única finalidade de levar
música, alegria e descontração para os soldados do Tio Sam.
Miller deixou de
lado os elegantes tuxedos para vestir
a si e à sua preciosa orquestra com o uniforme de guerra dos Estados Unidos, e
deixou pra trás uma plateia cheia de gente bonita e bem vestida para tocar para
um bando de homens ensandecidos que urravam durante a execução da música.
Para tanto, ele se
valeu de uma amizade antiga com o general-brigadeiro Charles Young, que convenceu
o comando geral sobre a importância da missão do bandleader e enviou o batalhão de Miller para o miolo da guerra
empunhando saxofones e clarinetes ao invés de fuzis e metralhadoras.
“Oh c’mon”, argumentava Glenn Miller
sobre a necessidade de adiar o voo, o que é a ameaça de uma simples tormenta
para quem enfrenta bombardeios aéreos e canhonaços com a maior serenidade?
Ele tinha um
compromisso importante em Paris, e não seria a cara feia do tempo que iria
demovê-lo da ideia de viajar. Miller precisava preparar os detalhes do show de
Natal que a sua orquestra iria fazer em homenagem aos soldados americanos e
franceses na recém-libertada Cidade Luz, finalmente livre das mãos e das botas
dos alemães, depois de quatro anos de tormento.
A França, mais do
que qualquer outro país, significava algo muito especial para os músicos
americanos, principalmente em se falando de jazz.
Desde o início do
século vinte, este país fora um dos preferidos pelos jazzistas dentro do
continente europeu, tanto pelo calor e entusiasmo com que o novo estilo havia
sido recebido, como pelo precoce aprendizado dos músicos gauleses através de
uma surpreendente seleção de nativos bastante competentes que fizeram do jazz a
sua segunda pátria musical.
O show da Glenn
Miller Orchestra seria realizado no tradicional Teatro Olympia e transmitido ao
vivo pelo rádio para todo o país, para a Inglaterra e para outras partes do
continente europeu, e a presença do bandleader
na sua preparação era necessária por conta dos inúmeros detalhes a serem
revistos. Miller gostava de verificar pessoalmente o mapa do palco, a qualidade
dos microfones e do sistema de som, e de analisar o repertório em função da
atmosfera criada com a expectativa do espetáculo, além de outras coisas bem
comezinhas, como acomodação, alimentação e lavanderia para o pessoal da
orquestra.
Outra preocupação,
é claro, era a análise e a assinatura do contrato comercial, pois Miller temia
que os organizadores pudessem exigir a presença de músicos franceses na sua
banda e queria se assegurar que os valores a serem pagos estavam de acordo com
o previamente acertado.
Assim, enquanto se
servia de um chocolate quente, que as suas raízes americanas preferiam ao chá
do tipo Gunpowder tradicional, ele rabiscava a sequência das músicas e o
desenvolvimento do show, considerando tratar-se de um espetáculo comemorativo
que, de alguma forma, começava a antecipar a reviravolta aliada que iria
redundar na vitória final contra o regime de Hitler dali a menos de um ano.
Glenn sempre fora
um incorrigível otimista e um incurável preguiçoso. Ele também apreciava uma
pescaria, de preferência sozinho e em lugares isolados, e gostava de assistir
uma boa partida de beisebol – Jimmie Foxx, do Boston Red Sox, era o seu jogador
favorito. Tinha também uma queda especial para ganhar dinheiro.
A música, no
entanto, era a energia que movia a sua vida. Mesmo gostando de dormir horas a
fio, ele jamais permitia que o descanso pudesse comprometer o seu trabalho
musical.
A apresentação
parisiense iria render à orquestra muitos elogios e uma considerável quantia
para engordar a conta bancária dos músicos, principalmente a sua, e era sobre
isso que Miller estava conversando com o seu arranjador predileto, Jerry Gray.
Gray estava
trabalhando com Miller há quase cinco anos, período suficiente para que o bandleader reconhecesse nele não apenas
o valor de um grande arranjador, como também de uma pessoa confiável o bastante
para ser seu confidente.
Jerry Gray também
desaprovava a viagem dentro das condições existentes, mas Miller era um
cabeça-dura de tal monta que nem o melhor dos amigos seria capaz de demovê-lo
de uma ideia. Iria viajar logo depois do almoço, lá pelas três horas da tarde,
e ponto final.
Apesar de alistado
regularmente no exército americano e de ostentar no momento a patente de major,
Glenn Miller jamais perdera suas características civis, e entre estas características
estava a desobediência às ordens ou instruções que estivessem contra a sua
maneira de pensar.
Miller se alistara
nas forças armadas por puro patriotismo, mas desde o início fora seduzido pela
ideia de transformar o front num
imenso palco. Para tanto, ele fez um acordo com o seu amigo general-brigadeiro:
ele faria uma guerra diferente, na qual estimularia os soldados americanos sem
a necessidade de participar efetivamente das batalhas e tocaria swing ao invés de marchas militares.
Um dos itens do
acordo era recrutar os músicos da sua própria orquestra a fim de manter a sua
conhecida qualidade sem ser preciso contar com outros soldados-músicos
regulares mesmo que eles tivessem alguma familiaridade com o jazz.
Por conta disso,
apesar de tocar sem receber um tostão na maioria das vezes, por se tratar de
uma orquestra oficial do exército americano, por vez ou outra ele promovia
apresentações especiais remuneradas, patrocinadas pelo próprio exército ou por
algum Mecenas apreciador do swing.
No caso do show de
Paris, a sugestão partira do próprio general, que inclusive tivera a
preocupação de estabelecer contatos com seus pares franceses de modo que a
situação financeira fosse devidamente arranjada como se faz em qualquer
produção musical de cunho comercial, isto é, com cachê, divulgação,
alimentação, viagem e hotel pagos.
Glenn Miller abria
a possibilidade de, no dia seguinte ao show do teatro, fazer uma apresentação grátis
ao ar livre num dos melhores pontos de Paris, a fim de permitir que o povo
francês tivesse contato direto com o carisma dos seus músicos.
Mas o dia estava
realmente feio, e nada recomendava uma viagem aérea no turbulento céu do Canal
da Mancha. A imagem vista pela janela era desoladora, mostrando uma manhã cor
de chumbo e a pista deserta, sem uma viva alma a transitar nos arredores,
enquanto a força do vento fazia tremer as vidraças e varria a esmo alguns
pedaços de papel.
Por duas vezes o
piloto do monomotor interrompeu a conversa que Miller mantinha com Jerry Gray
para sugerir que deixassem a viagem para a manhã do dia seguinte, pois as frias
manhãs inglesas de dezembro costumavam ser brindadas por uma réstia de sol.
“No way, Chuck!”, foi a resposta seca do
major.
Assim, às três
horas de uma tarde úmida e opaca, partia de Twinwood Farm o monomotor Noorduyn
Norseman tipo C-64, prefixo 44-70285, com destino a Paris, e o que se tem daí
para frente passou a ser uma especulação histórica.