O FANTASMA DA FM
(Conto publicado em 1992 no livro “O
Fantasma da FM”)
(Parte 5 - Final)
Aristides
levantou-se novamente, olhou para o jardim deserto e para o portão de metal
trancado à chave, resolver espantar o sono e dar uma volta pelos corredores
como se fosse um caçador de fantasmas. Dirigiu-se ao lance da escadaria que
ainda guardava em algum degrau o vestígio da vela respingada e sentiu um cheiro
desagradável, de enxofre – “...essas faxineiras estão usando material de
limpeza da pior qualidade...” – pensou. Olhou para o alto, se defrontando com o
vazio e o silêncio. Pé ante pé subiu a escada, o coração por algum motivo
batendo mais forte.
Ronaldo,
semiadormecido com o rádio sintonizado na sua emissora, entre um ressonar e uma
virada na cama olhava para o despertador a fim de não perder a hora de assumir
o seu lugar no estúdio. Ainda falta algum tempo, dá pra dormir mais um
pouquinho mesmo com a mulher, ao lado, irritada com aquele som e não vendo a
hora de ficar sozinha para poder dormir, enfim, até às onze...
No
estúdio, Adalgisa não estava se sentindo bem. Aquela chuva das nove da noite, a
blusa molhada sobre a pele e o sopro frio do ar condicionado que tomava conta
do prédio já estavam fazendo feito.
A
garganta arranhava um pouco, uma febre incipiente começava a ganhar corpo e o
tremor que sentia tinha agora um pouco de gripe e um pouco de medo.
Parece
que ouviu alguém chamar o seu nome, primeiro em tom sussurrante, depois num
gemido de agonia.
Aristides
subiu todos os degraus e caminhou pelo corredor em direção à porta do estúdio.
A plaqueta com os dizeres “no ar” em vermelho estava apagada. O bebedouro no
fim do corredor assistia impassível e mudo a sua aproximação enquanto as
cortinas esvoaçavam sem motivo e sem vento. Aristides seguiu em direção à porta,
de modo assustado e suspeito como se estivesse olhando pelo buraco de uma
fechadura de uma alcova repleta de vestais.
Colocou
a cara no retângulo de vidro, o nariz suado se esborrachando e o bigode se
espalhando como se fosse uma vassoura de piaçava. E os olhos se estreitando em
sua miopia para enxergar melhor. A pressão do corpo sobre a porta produziu um
leve estalido que soou como gigantesco nos ouvidos aguçados e ultrassensíveis
de Adalgisa.
Acabara
de tocar Uriah Heep. Os dedos de Adalgisa tinham apertado o botão para colocar
a voz da locução “no ar”. No corredor, a plaqueta se acende em vermelho, assim
como no painel do estúdio por sobre o quadro de avisos.
Numa
fração de segundos ela vira o pescoço e se depara com uma imagem surreal no
retângulo da porta – um rosto quase humano, deformado, com uma mancha preta no
lugar dos lábios, uma massa escura e difusa como se fossem os cabelos e dois
pontos minúsculos que pareciam olhos de cobra. Ao lado, ela conseguiu divisar
uma sombra indefinida emanando terror e luxúria envolta numa luminescência
amarelada, e bem no meio desta irradiação aqueles olhos vermelhos e oblíquos,
os mesmos olhos do sonho.
Lá
na recepção, o telefone fora do gancho não respondia aso apelos do menino
ouvinte.
Dentro
do estúdio, o ar que descia pela tubulação de repente se fez mais frio.
Ronaldo
acordou do seu sono indeciso com a música do rádio interrompida por um grito de
pavor, a voz de Adalgisa lhe rompendo os tímpanos. Ao seu lado, a mulher saltou
como uma rã impulsionada por uma mola e maldisse a vida mais uma vez.
Adalgisa,
lívida, viu o borrão desaparecer do vidro, permanecendo apenas os dois pontos
vermelhos e o fundo musical parecendo o guinchar de mil morcegos.
-0-
Ronaldo
chegou à rádio vinte minutos depois. Encontrou o portão fechado, saltou o muro,
atravessou o jardim, a recepção e os corredores e se deparou com Aristides
caído na escadaria, trêmulo e ofegante.
O
corredor guardava um cheiro de podre, um cheiro de azedo, mas tudo o mais
permanecia calmo e em silêncio.
Adalgisa
soluçava trancada no estúdio.
No
jardim, as árvores se debatiam com um vento repentino e no lado leste do
horizonte o céu começava a ficar ligeiramente mais claro, num prenúncio de
manhã.
A
rádio voltou a funcionar depois de acordar muitos ouvintes que estranharam
aquela música com tantos efeitos especiais e ficar silenciosa em seguida.
Estivemos
fora do ar por razões técnicas.
Por
razões tétricas.