EU
E A MÚSICA – EPISÓDIOS NOTURNOS
(Um
bate-papo com o MPB3)
A morte do cantor Ruy Faria – o Ruy do MPB4 – em 11 de
janeiro de 2018, me trouxe tristeza, nostalgia e algumas lembranças. Tristeza
porque o desaparecimento de verdadeiros artistas deixa ainda mais incerto o panorama
musical brasileiro deste início de século, que chega a ser preocupante. Nostalgia
porque Ruy me lembra a melhor época da chamada MPB e uma das melhores da minha
vida, e me fez concordar plenamente com um artigo do blogueiro Mauro Ferreira,
onde ele diz ser Ruy a voz do MPB4 (e eu completo “da mesma forma como Severino
Filho foi a voz de Os Cariocas”). Eu diria mais, ambos não foram só a voz, mas
também a cara e a alma dos conjuntos vocais dos quais participavam. As
lembranças ficam por conta de uma noite nos longínquos anos 1960, na qual Ruy participou
da minha existência por algumas horas.
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No final dos anos 1960, a Vila Buarque concentrava boa parte do encanto da
Paulicéia Desvairada, como bem definia a cidade de São Paulo o poeta Mario de
Andrade quarenta anos antes.
Um quadrilátero limitado pela Praça da República por um lado e pela Avenida
Angélica do outro, e pela Faculdade Mackenzie e a Rua da Palmeiras pelos lados
adjacentes, possuía talvez a maior quantidade de noctívagos por metro quadrado
da capital, agrupando desde jovens estudantes ou escriturários que saíam do
serviço e lotavam os barzinhos na hora do “happy hour”, onde sempre existia
alguém cantando e tocando violão – com direito a todo mundo cantar junto – até
figuras engravatadas que procuravam “American bars” mais sofisticados, com um
trio piano-contrabaixo rabecão e bateria, passando por quem procurava aventuras
caras ou baratas, dependendo da boate e da companhia que iria se sentar ao seu
lado, estes, cavalheiros mais velhos, de preferência casados apreciadores de
uma fuga semanal acompanhada por um uísque duvidoso. Isto sem deixar de lado o
chope boêmio do Bar e Restaurante Redondo, ao lado da Praça Roosevelt.
Meu habitat predileto era o bar “Sem Nome”, que realmente não tinha nome e era
simplesmente uma garage com porta de correr onde o dono adaptou um balcão de
mármore e instalou meia dúzia de mesas e cadeiras insuficientes para a
quantidade de fregueses que sempre tinham alguma novidade como entretenimento e
se apinhavam em pé ao lado do balcão tomando a especialidade da casa, que eram
as batidas e caipirinhas.
Por lá eu tive a oportunidade de cantar junto com Chico Buarque (na época
despontando com seu “Pedro Pedreiro”), Zé Keti (que atendia aos pedidos para
cantar “Opinião”, um sucesso do momento no Teatro de Arena, lá na Rua Teodoro
Baima, com a peça do mesmo nome ao lado de João do Vale e Nara Leão, depois
Maria Bethânia) e o maranhense Chico Maranhão (que empolgava com o frevo
“Gabriela” quem eu viria a reencontrar vinte e cinco anos depois em São Luís).
O hino oficial do Bar Sem Nome era a música de Ismael Silva “O que será de mim”
(“Se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será / Pois vivo na
malandragem, e vida melhor não há”) – os jovens paulistanos substituíam a
palavra “malandragem”, muito carioca, por “boemia”, que tinha mais a cara
deles.
(Aqui em São Luís, Chico Maranhão mencionou o episódio no palco do Teatro
Alcione Nazaré – na época Teatro Praia Grande, do Centro de Criatividade Odylo
Costa, Filho – quando fazia o show de lançamento do LP “Quando as palavras
vêm”, produzido por mim no início dos anos 1990. Chico falou brevemente sobre
nossos encontros em São Paulo e dedicou a mim a música título, que começa assim
– “Encontrei por aqui um antigo amigo...”, autoexplicativa).
Certa noite, lá em São Paulo, eu descobri um outro lugar no pedaço, pertinho da
Praça da República, no início da Rua Marquês de Itu. A casa tinha um longo
corredor e abria uma grande clareira no fundo, com mesas colocadas debaixo de
árvores. Logo ao chegar divisei um conhecido numa mesa com outras cinco pessoas
e me juntei ao grupo.
Apresentações feitas, percebi estar ao lado de três dos MPB4 – Ruy, Miltinho e
Magro – que num bate papo descontraído me colocaram por dentro de algumas
coisas de bastidores.
Seguindo a mesma linha do Bar Sem Nome, alguém tocava violão e cantava numa
mesa ao lado, e o violão circulava, passando de uma mesa para outra.
Cerveja rolando, o violão chega na nossa mesa e Ruy começa a cantar uma canção
de Noel Rosa, com Miltinho acompanhando no pinho.
Foi quando dei uma sugestão destrambelhada, pedindo para os três cantarem algum
dos sucessos do grupo, como “Lamento” (de Pixinguinha com letra de Vinicius),
ou “Gabriela” (aquela do Chico Maranhão). Ruy então me explicou didaticamente
que não era possível cantar porque não dava para repetir a harmonia do grupo
faltando uma voz – Aquiles estava ausente.
Aprendi mais uma coisa na vida e me contentei em ouvir solos de “Com que
roupa?” e “Feitiço da Vila”, dentro de uma afinação impar e acordes belíssimos
de violão.
Naquele momento eu me abstive de cantar, e a própria audiência alvoroçada
diminuiu o falatório ao perceber que estávamos diante de uma celebridade.