I REMEMBER KAFKA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
(Parte 2)
Ainda outro dia, se bem me lembro, eu
estava placidamente dividindo com três ou quatro formigas e uma mosca doméstica
um resto de bolo de festa, desses com recheio de leite condensado e ameixa
preta e a cobertura com aquela pasta branca e açucarada e bolinhas de confeite
cor de prata, quando me apercebi do desencanto desta vida, tudo é tão bonito e
coberto de açúcar até que vem a vassoura, o veneno ou o chinelo, e aí então tudo
se torna amargo como fel, e então comecei a me sentir “down” e “down”, como um
inseto deserdado, como uma barata sobre a neve, como um biscoito amolecido
debaixo do armário.
E, por pura necessidade de desafiar o
perigo, em vez de me enrustir pelo mato adentro e lá ficar vegetando à cata de
restos de comida e lixo, subindo pelas folhas do capim, decido por esta casa
antiga com diversos moradores e alguns convidados de fins de semana e, o que é
pior, em vez de me esconder no sótão no meio de ratos e objetos quebrados, me
aventuro pelo jardim, pela dispensa e pelos armários, numa verdadeira afronta
aos circunstantes – um grito de alerta aqui, um grito de nojo ali, um grito de
espanto mais além – e eu me divirto vendo as pessoas correndo como baratas
tontas atrás de instrumentos e apetrechos de defesa, tão grandes e tão poderosas,
tão cultas e tão soberbas, tão importantes e tão valentes, tão idiotas.
No verão, então, é um pandemônio –
baratas voando e correndo em ziguezague pelos cantos, besouros barulhentos
chocando suas carapaças de encontro às paredes e depois – pobres imbecis –
revirando as pernas de barriga para cima como uma tartaruga, incapazes de
voltar à sua posição normal graças ao seu formato antiestético e antianatômico,
com o centro de gravidade colocado numa posição nada estratégica denunciando um
projeto mal feito para um inseto mal-acabado, a vergonha dos coleópteros.
E aquelas formigas-de-asa voando
semiloucas em torno da lâmpada de cem velas e caindo exaustas dentro do prato
de sopa, se enroscando nos cabelos da mocinha ou fazendo cócegas nas suas
costas alvas e decotadas devido ao calor reinante nesta época do ano!
E os mosquitos e pernilongos explodidos
na parede e marcando coágulos de sangue de humanos recém sugados, face à hélice
do ventilador que chupa e expulsa como um vórtice?
As noites de luar são as minhas
preferidas. É gostoso passear no cimento frio e fazer companhia aos grilos, mas
é perigoso e assustador estar a cada canto topando com homens mal-intencionados
e armados até os dentes não necessariamente à nossa captura, mas aproveitando a
cada instante para extravasar o seu ódio irracional e para nos matar pelo
simples prazer de matar – afinal os racionais, se é que assim podem ser
chamados, matam para se alimentar, mas nós não somos alimento para essa gente
dita civilizada.
Por precaução me dirijo até o fundo da
casa, para o quarto de despejo onde se acumulam garrafas cheias e garrafas
vazias, algumas ainda com vestígio de bebida dentro, e também jornais velhos e
uma coleção de trapos. E fico lá, espreitando no escuro, vivendo a vida,
planejando meus próximos movimentos.
De repente, a luz se acende.
Minhas antenas se movem tentando captar
de onde vem o perigo. Uma bota enlameada se arremete rapidamente em minha
direção. Meus sentidos se inflamam, minha asa se dilata, minhas farpas se
arrepiam.
Meu odor característico toma conta do ar
numa autodefesa e na tentativa desesperada de pedir ajuda procuro me enveredar
pelas garrafas enfileiradas, mas o meu perseguidor não para a sua perseguição.
Com um pontapé afasta as garrafas do seu
caminho e do meu caminho. Sinto-me relativamente aliviada, pois não vejo lá no
alto a chuva aletrina e não vou ser combatida por criminosos utilizando a
abominável guerra química, desta vez a batalha será de igual para igual, eu com
a minha rapidez e os meus truques buscando rachaduras e interstícios para me
esconder e me camuflar, ele com o seu tacão e bota agindo como um demente,
espatifando garrafas e procurando me esmigalhar com os pés.
Consigo me esconder por detrás de uma
caixa de papelão cheia de sabão em barra, com aquele cheiro enjoativo de sebo
com composto de sódio, e me julgo a salvo por um instante.
Vislumbro uma companheira distraída e
corro em sua direção para avisá-la do perigo que nos cerca, ambas nos
camuflando com o desenho avermelhado da caixa de sabão próxima à nossa estampa
reproduzida por algum artista numa embalagem vazia de inseticida.
Procuro manter a calma e arquitetar
algum plano de salvamento; será que ajuda ficar como o besouro, barriga pro
alto, e me fingir de morta? Ou será mais prudente bater as asas e sair voando
em direção ao rosto do meu oponente para fazê-lo ficar pasmo com a surpresa e o
susto? Ou ainda atravessar a abertura da caixa e me misturar com as barras de
sabão mesmo correndo o risco de uma intoxicação mortal ou de uma contaminação
lenta e progressiva por quaternário de amônia?
Enquanto eu penso e considero, as antenas
ouriçadas e os sentidos em estado de alerta, minha companheira resolve sair do
nosso refúgio e se aventurar entre algumas garrafas e um maço de jornal
amarrado com um barbante desfiado.
Quer seja por descuido, quer seja por
desfaçatez ou destemor, incúria, desafio, precipitação ou esquecimento, ela se
move lenta e compassadamente, chamando a atenção do agressor.
Então, tudo se transforma em um segundo
– a bota, o bote, o grito, o ruído e o
esmagamento, e minha companheira se esborracha entre o solado e o chão,
espremida como um furúnculo maduro, visguenta como creme de baunilha misturado
em molho chinês, patas e asas arrancadas e uma antena partida.
Fico imóvel como uma estátua de pedra,
tensa e alerta, enquanto o par de botas se afasta, a luz se apaga e se ouve uma
gargalhada de regozijo.
Só restamos eu e a caricatura
esmigalhada da minha audaciosa companheira.
E sabões, poeira e teias de aranha.