EU
E A MÚSICA
YEAH,
THE BLUES!
(o
Brasil no circuito mundial dos festivais)
Desde o final dos anos 1980, o Brasil tem se tornado um
lugar bastante concorrido para a realização de festivais de rock, jazz e blues.
Mas nem sempre foi assim.
Demorou algum tempo para que o público brasileiro viesse fazer parte do roteiro
dos megafestivais de música.
Naquela época os festivais de rock
faziam comercialmente mais sentido do que os seus congêneres de jazz, pois tinham como suporte de mídia alguns
bem sucedidos encontros internacionais produzidos e trabalhados mundo afora pelo
show business.
É claro que isto não significa que o jazz
não estivesse acontecendo no cenário mundial, mas parecia mais acertado apostar
num movimento mais performático, como as bandas, os astros do rock e os seus grandes espetáculos de
luz e cor, do que numa música que privilegiava mais os ouvidos e a sensibilidade.
O rock possuía um apelo mais popular,
talvez por ter tido um surgimento mais recente. Afinal, o velho jazz foi apresentado ao mundo no início
do século vinte, cinquenta anos antes que Chuck Berry afinasse a sua guitarra e
produzisse o fenômeno que na época foi conhecido como rock-a-billy – uma mistura de country
music com rhythm & blues,
derivando para o rock and roll com a
posterior intromissão do boogie-woogie.
A modernidade do rock era portanto mais
propícia para agregar o público mais jovem, que não se importava em deixar o
conforto de lado para se divertir como bem entendesse.
Desde o seu nascimento, o rock teve
uma boa penetração na mídia e era divulgado, embora ainda timidamente, em programas
radiofônicos e festinhas de família onde no final da década de 1950 Bill Haley
disputava espaço com Cely Campello e Carlos Gonzaga.
E isto não acontecia com o jazz e com
o blues.
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O Brasil da Era do Swing tinha
programas radiofônicos de jazz com as
grandes orquestras tocando ao vivo pela Voz da América, mas isto acabou com o
fim da Segunda Guerra Mundial e com a mudança da mentalidade da juventude
rebelde de então.
Por se constituírem num público menor e mais maduro, e por consumirem uma
música mais sofisticada, jazzófilos e bluesófilos passaram então a viver num
quase esquecimento, vendo-se obrigados a ouvir os seus estilos prediletos em
casa por meio de gravações discográficas e a acompanhar de longe as trajetórias
dos festivais de jazz mais famosos –
Monterey (EUA), New York (EUA), Newport (EUA), Montreux (Suiça), JVC (França),
Blue Note (Bélgica), North Sea (Holanda) e mais uma centena de outros – através
de reportagens de colunas especializadas de jornais ou revistas, ou então por
meio de discos long-play, cujas
contracapas e encartes nos davam a noção do que se passava por lá, tudo
documentado com as devidas fotos. Os discos muitas vezes traziam músicas
gravadas ao vivo, o que adicionava uma emoção a mais ao ouvinte.
E a gente só sonhava, ainda que acordado.
De acordo com pesquisas não muito oficiais, o interesse que o jazz e o blues despertavam nos apreciadores de música era muito pequeno para
se pensar num evento de largo consumo. Essa barreira, no entanto, foi de
repente ultrapassada graças a alguns produtores arrojados que apostaram na
inteligência do público e tiveram o apoio de patrocinadores fortes para tornar
a ideia viável.
Estranhamente, apesar das pesquisas e da diferença na aceitação popular, jazz e rock foram apresentados pela primeira vez para as grandes plateias
do Brasil no mesmo ano.
A primeira edição do Rock in Rio foi realizada entre os dias 11 e 20 de janeiro
de 1985 – evidentemente na cidade do Rio de Janeiro. Ela foi absolutamente
marcante e contou com a presença dos astros internacionais Queen, Iron Maiden,
Whitesnake, James Taylor, George Benson, Rod Stewart, Scorpions, Yes, Ozzy
Osbourne, Nina Hagen e AC/DC, e de Ivan Lins, Paralamas do Sucesso, Barão
Vermelho, Lulu Santos, Pepeu Gomes & Baby Consuelo, Gilberto Gil, Erasmo
Carlos, Ney Matogrosso e Kid Abelha e outros, entre os artistas locais.
Por ter sido o primeiro festival desse porte, o Rock in Rio foi um evento que
precisou de muito fôlego e coragem, mas no final correspondeu plenamente às
expectativas.
O público total chegou a quase um milhão e quatrocentas mil pessoas e respondeu
com entusiasmo à aposta do publicitário e produtor Roberto Medina, embora ele
próprio tenha admitido que realizar o festival “foi uma maluquice”.
O projeto Rock in Rio foi tão bem sucedido que se multiplicou nos anos
seguintes – até 2015 foram seis edições no Brasil, seis em Portugal, três na
Espanha e uma nos Estados Unidos, sempre com o mesmo nome, o que acabou o transformando
em uma lucrativa trademark.
Surpreendentemente, foi também em 1985 que aconteceu ao mesmo tempo no Rio e em
São Paulo o primeiro Free Jazz Festival, patrocinado pela Companhia Souza Cruz,
que aproveitou o nome de um dos estilos de jazz
– o free jazz – para promover em
grande estilo o lançamento da sua marca de cigarros Free, naquele tempo em que não
existiam restrições para a sua propaganda e que o hábito de fumar ainda tinha o
seu lado romântico. A companhia aérea Pan-Am também deu o seu apoio,
notadamente no que disse respeito às viagens internacionais.
Não se sabe ao certo quem foi o idealizador do festival, mas sabe-se que a Rede
Globo de Televisão ficou o tempo todo supervisionando o espetáculo.
A primeira edição trouxe atrações especialíssimas – Bobby McFerrin, Chet Baker,
Ernie Watts, Sonny Rollins, Pat Metheny, McCoy Tyner, Joe Pass, Hubert Laws,
Phil Woods, Davis Sanborn e Toots Thielemans, e os brasileiros Azymuth, Cesar
Camargo, Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Grupo D’Alma, Luiz Eça, Hélio Delmiro,
Heraldo do Monte, Orquestra Tabajara, Paulo Moura, Zimbo Trio e Uatki, entre
outros.
Em 1986 tivemos vinte e dois participantes, sendo quatorze brasileiros e oito
internacionais, média que continuou sendo mantida até o fim do projeto em 2001
(o Free Jazz Festival foi descontinuado devido às leis antitabagistas e em 2003
foi substituído pelo TIM Festival, que perdeu as características originais e passou
a focar um tipo de música alternativa, que incluía indie, eletrônica, rock e
– felizmente – o próprio jazz). A
partir de 2005 o TIM Festival estendeu a sua abrangência para outras capitais
como Curitiba, Belo Horizonte, Vitória e Porto Alegre.
A febre dos festivais se espalhou pelo Brasil, e agora a gente pode curtir a
cada ano encontros menores, mas de alta qualidade, também em Ouro Preto e
Governador Valadares-MG, Paraty, Rio das Ostras e Búzios-RJ, Guaramiranga-CE,
Olinda e Garanhuns-PE, Cascavel-PR, Brasília-DF e São Luís-MA (este através do
Lençóis Jazz & Blues festival, que já completou seis edições).
Apesar de bastante popular, o Free Jazz Festival nunca chegou a causar o mesmo impacto
do Rock in Rio, principalmente porque tradicionalmente o rock sempre costuma reunir multidões em festivais realizados em
grandes áreas ao ar livre em todo o mundo – vide Woodstock (Nova York-EUA),
Altamond (Califórnia-EUA), Central Park (Nova York-EUA), Hyde Park
(Londres-Inglaterra) e Ilha de Wight (Inglaterra) – ao passo que o jazz sempre teve um público menor, mais
comportado e, pode-se dizer, mais exigente em termos de estrutura e conforto.
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Foi nesse clima, em maio de 1990, que aconteceu o Segundo
Festival de Blues no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo (o Primeiro Festival havia
acontecido em Ribeirão Preto-SP, na Cava do Bosque, no ano anterior).
O festival teve a produção da LUKR Eventos, comandada por Roberto Cocenza.
Também fazia parte da equipe meu amigo e parceiro Renato Winkler que,
parodiando Vinicius, viajou muitas canções comigo, e havia interpretado o
mestre violonista na película “A Busca E
A Fuga”, mencionada no capítulo de “Eu e a Música” dedicado a Dick Farney.
Renato e eu tivemos uma curta mas profícua história musical que havia começado
em Serra Negra-SP, onde nos conhecemos em meados dos anos 1960. Começamos a
compor juntos, e na maioria das nossas composições eu fazia a letra e ele
colocava a música, ou eu colocava a letra numa melodia já feita, ou um pouco de
cada coisa...
Se a
sombra agora mora em mim,
o meu porquê há de virar canção...
(estou triste, triste tanto...)
Só o sorriso bom de uma manhã
fará nascer o meu sorriso sol...
(estou triste, triste tanto...)
Só o renascer de todo amor
que imenso foi, vai me fazer feliz
(vem beijar meu desencanto...)
Volta, faz brilhar novamente a lua,
aquela mesma lua
que iluminou nossa grande noite...
Só o teu olhar traz o luar
pra iluminar o meu anoitecer,
só teu olhar me faz amanhecer...
Por que virar canção se é tão real,
venha depressa disfarçar o mal,
motivação da minha vida e paz,
cante comigo o meu sorriso sol
e o amor manhã também renascerá...
(“Amor Manhã” – Augusto Pellegrini e Renato Winkler)
Renato possui uma harmonia diferente do convencional e passa
para o ouvinte uma cadência bucólica. Ele é também um poeta de rara inspiração
nas suas pinceladas cheias de um neologismo sagaz e de rimas no modelo haicai.
É numerólogo nas horas vagas, tendo inclusive publicado um livro a respeito
chamado “Guia Oracular – A Chave Do Poder
Adivinhatório”.
Em termos de música, ao meu lado, foram doze composições ao longo de quatro anos,
de 1970 a 1974, muitas delas regadas a muito vermute tinto com gelo, antes de a
parceria ser interrompida pelo meu ingresso numa escola de samba, como
mencionado no capítulo de “Eu e a Música” dedicado a Adoniran, e pela minha
partida para São Luís-MA.
Em 1990 eu morava em São Luís, mas Renato insistiu para que eu fosse assistir ao
festival em São Paulo e para tanto me enviou uma credencial de imprensa, dessas
que a gente pendura no pescoço vinte e quatro horas por dia – “Pellegrini Augusto – Radio Mirante FM – São
Luís-MA” – posto que eu era – e ainda sou – radialista especializado em jazz (e dizem que em blues, com o que não concordo).
O festival transcorreu de uma forma empolgante e reuniu no mesmo espaço músicos
antológicos como Magic Slim, Bo Diddley, Buddy Guy, Junior Wells, Koko Taylor,
John Hammond, The Blues Machine, Big Daddy Kinsey & The Kinsey Report e os
blueseiros locais André Christóvam, Blues Etílicos e a Brasilian Blues All
Stars, com Ed Motta, Flavio Guimarães e Roberto Frejat.
A grande vantagem de possuir uma credencial é poder ser uma sombra presente nas
entrelinhas do espetáculo, nos bastidores, nos camarins e no hotel onde a troupe se hospedava, onde via de regra acontecia
alguma jam session para
confraternizar o blues, além da
possibilidade de entrevistas nem sempre exclusivas, mas sempre muito especiais,
e a descoberta maravilhosa de que por trás dos artistas consagrados de escondem
seres humanos cheios de história para contar.
Boa parte das histórias acabaram se tornando descartáveis, e serviram apenas para ilustrar alguns dos meus
programas radiofônicos, mas uma conversa, em especial, ficou registrada, posto
que histórica.
Bo Diddley, nascido Ellas Otha Bates, tinha sessenta e dois anos na ocasião do
festival, embora aparentasse mais.
Ao contrário da maioria dos artistas presentes, que esbanjavam vitalidade,
Diddley mantinha uma atitude melancólica, cansada e pouco sorridente, embora aparentemente
tudo corresse às mil maravilhas na turnê blueseira.
Bo Diddley era o “low profile” que
não combinava com a vibração do evento.
Cantor, guitarrista e compositor (suas músicas eram assinadas como Ellas
McDaniels), Bo Diddley com sua guitarra quadrada foi talvez a figura mais emblemática
do festival. Ele se constitui num dos elos mais importantes de um tipo de
música que uniu o blues ao rock and roll e influenciou, entre outros,
os astros Buddy Holly, Jimi Hendrix, Eric Clapton e Elvis Presley, além de
Beatles e Rolling Stones. O que não é pouco.
Foi exatamente a menção a Elvis Presley que esquentou o assunto e soltou a
língua do velho bluesman.
Apesar de ser mundialmente reconhecido como um dos maiores artistas do blues e do rhythm & blues, Bo Diddley reclamava que a sua carreira poderia
ter sido muito mais bem sucedida se alguns produtores de discos e de shows não
tivessem interferido de forma tão negativa e decisiva no seu desenvolvimento.
Ele, Diddley, teria sido o pioneiro a mostrar nos palcos a famosa performance
do “rebolado do rock and roll” que se
imortalizou com Elvis “The Pelvis” e que
os pudicos dos anos 1950 consideravam obscena e atentatória aos bons costumes (mas
que os jovens rebeldes sem causa simplesmente adoravam).
“Possivelmente”, prosseguiu Diddley,
“tenha sido um outro negro, Chuck Berry,
quem realmente iniciou aquele tipo de dança lasciva, mas Berry podia ter tudo –
ritmo, drive, empolgação – mas não conseguia passar para o público nem um pingo
de malicia ou de sensualidade. Chuck era mais feio do que eu”. E riu, pela
primeira vez durante a nossa conversa.
Na sua própria descrição, Bo Didley era negro, feio e não tinha a estatura
necessária para estar dentro dos padrões de beleza universalmente aceitos. No
entanto, a novidade deste tipo de dança na nova música era tão empolgante que os
produtores de shows decidiram que o rebolado devia ser incrementado por algum
outro cantor, desde que fosse branco, bonito, atlético e sensual.
Assim, nos meados dos anos 1950, Bo Diddley foi descartado e caiu no limbo do rock and roll, derivando seu talento
para uma área com menor apelo mercantil, o
blues.
Os produtores saíram então em campo à cata do homem com o biótipo ideal que
tivesse o DNA para vender discos e aguçar o espírito da juventude, e
descobriram um jovem cantor e guitarrista natural do Mississipi que estava
fazendo um relativo sucesso no rádio e na televisão cantando uma espécie de ballad-country e de rock-blues.
Seu nome era Elvis Presley, ex-motorista de caminhão que estourou para o grande
público com o blues “That’s All Right Mama” (Arthur Crudup) e
“Blue Moon Of Kentucky” (originalmente
uma valsa escrita em 1946 por Bill Monroe), músicas que receberam um tratamento
diferente por parte do guitarrista Scotty Moore e do baixista acústico Bill
Black, nascendo daí – junto com o trabalho de outros pioneiros – o estilo “rock-a-billy”, uma fusão da country music com o rhythm & blues.
O rebolado pra valer começou em 1957 com “Jailhouse
Rock” e “King Creole” (ambas de
Jerry Leiber e Mike Stoller), depois de uma série de baladas românticas, que no
futuro iriam se constituir no ponto alto das suas interpretações – como “Love Me Tender” (George R.Poulton, W.W.
Fosdick e Ken Darby), “Lovin’ You” (Jerry Leiber e Mike
Stoller).
De acordo com Diddley, foi nestas circunstâncias que os produtores “roubaram” a sua ideia e que
um eventual título, “The King of Rock‘n’Roll”, lhe teria sido
usurpado.
O depoimento histórico foi encerrado abruptamente com a chegada de alguém da
produção convocando Diddley para uma foto, a pedido de um repórter. Não tenho certeza, mas ficou a impressão de
que sobrou no rosto do velho bluesman
um certo ar de alívio quando ele se despediu de mim, o que provavelmente
acontecia por quase quarenta anos sempre que seu coração se abria para algum
desconhecido.