sábado, 31 de março de 2018






COMO NASCEM AS CANÇÕES

(Parte 2)

(Artigo escrito para a página da Academia Poética Brasileira – https//www.facebook/com/academiapoetica/. Este site é uma publicação da Academia Poética Brasileira, da qual sou membro)


Igualmente antológica foi a briga musical entre Noel Rosa e Wilson Batista, que se arrastou por cerca de cinco anos desde o início da década de 1930. Tudo começou quando Batista se desentendeu com Noel e compôs um samba que física ou moralmente ameaçava o desafeto.
A música que iniciou a querela se chama “Lenço No Pescoço” (“Meu chapéu de lado, tamanco arrastado / Lenço no pescoço, navalha no bolso / Eu passo gingando, provoco e desafio / Eu tenho orgulho em ser tão vadio ... / ...Eu sou vadio porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança, tirava samba-canção / Comigo não / Quero ver quem tem razão”).
Noel não gostou do recado e, encorajado pelo amigo e também compositor Orestes Barbosa, resolveu responder. A resposta veio com “Rapaz Folgado” (“Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora essa navalha / Que te atrapalha... / ... Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado”).
Alguns meses se passaram até que Wilson Batista desse a sua resposta, com “Mocinho Da Vila” (“Você, que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão, e outros fricotes mais / Se não quiser perder o nome / Cuide do seu microfone / E deixe quem é malandro em paz / Injusto é o seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro não se faz / Eu, de lenço no pescoço, desacato / E também tenho o meu cartaz”).
Noel então compôs “Feitiço Da Vila” (“Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos do arvoredo / E faz a lua nascer mais cedo”). O samba, que ficou conhecido pela sua poesia e pelo seu bom mocismo, não atacava diretamente o seu oponente, pois a princípio ele foi composto para elogiar Vila Isabel, bairro carioca onde ele, Noel, tinha nascido e sempre morou. No entanto, há no final da música uns versos não muito conhecidos nos quais Noel joga um pouco de pimenta no assunto (“Quem nasce pra sambar / Chora pra mamar / em ritmo de samba / Lá não tem cadeado no portão / Porque na Vila não tem ladrão”).
Wilson respondeu com “Conversa Fiada” (“É conversa fiada dizerem / Que o samba da Vila tem feitiço / Eu fui ver pra crer e não vi nada disso / A Vila é tranquila, porém eu vos digo – cuidado! / Antes de irem dormir deem duas voltas no cadeado”), para o qual Noel contra-atacou com “Palpite Infeliz” (“Quem é você, que não sabe o que diz? / Meu Deus do céu, que palpite infeliz / Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira / Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém / Só quer mostrar que faz samba também... / ...Eu já chamei você pra ver / Você não viu porque não quis / Quem é você, que não sabe o que diz?... /... “Quem é você, que não sabe / aonde tem o seu nariz? / “Quem é você, que não sabe o que diz?”).
Wilson Batista perdeu a compostura e compôs “Frankenstein Da Vila” fazendo alusão a uma deformidade que Noel possuía no queixo (“Boa impressão nunca se tem / Quando se encontra com alguém / Que até parece o Frankenstein / Mas como diz o refrão / Por uma cara feia perde-se um bom coração... /... Entre os feios estás na primeira fila / Eu te batizo Fantasma da Vila / Esta indireta é contigo / E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo / Sou teu amigo”).
Noel ficou evidentemente chocado com tamanha descortesia, mas não respondeu.
Certo dia ambos se encontraram em um café no centro da cidade e Wilson Batista apresentou a Noel uma nova composição que voltava a explorar a velha polêmica. A música se chamava “Terra De Cego” (“Perde a mania de bamba / Todos sabem qual é / O teu diploma no samba / És o abafa da Vila, bem sei / Mas na terra de cego / Quem tem um olho é rei / Pra não terminar a discussão / Não deves apelar / Para um barulho na mão / Em versos podes bem desabafar / Pois não fica bonito um bacharel brigar”). Noel de pronto reescreveu a letra e mudou o título para “Deixa De Ser Convencida” (“Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida / És uma perfeita artista, eu bem sei / Também fui do trapézio / Até salto mortal no arame eu já dei / E no picadeiro desta vida / Serei o domador / Serás a fera abatida / Conheço muito bem acrobacia, por isso não faço fé / Em amor, em amor de parceria / Muita medalha eu ganhei”). Depois disso, nunca mais se viram. Noel, que já estava doente, morreu pouco depois, em 1937.
Com a morte de Noel, Wilson Batista se mostrou arrependido pelos seus versos deselegantes, e mais tarde compôs em parceria com Waldemar Gomes um samba no qual exaltava o rival; a música se chama “Quero Um Samba” (“Diga para o dono do baile / Que nós queremos sambar / A noite inteira sem tocar um samba / Nem parece que estamos no Rio / A terra de Sinhô e o berço de Noel”), e depois um outro, chamado “Terra Boa”, feito em parceria com Ataulfo Alves, no qual elogia alguns brasileiros famosos (“Terra de Santos Dumont / Carlos Gomes, Ruy Barbosa / Grande Duque de Caxias / Castro Alves, Noel Rosa”).
-0-
Vale a pena também rever os registros de uma interessante a sequência de músicas de Ataulfo Alves nascidas em virtude do romance que a cantora Carmen Costa (por quem Ataulfo era apaixonado) mantinha com um compositor obscuro chamado Mirabeau Pinheiro.
As deliciosas provocações nunca passaram das noitadas de violão, embora chegassem a ser gravadas, inclusive pelos próprios Ataulfo e Carmem, num mesmo disco.
Entre as músicas, algumas preciosidades de Ataulfo como “Pois É”, onde ele ironiza uma briga de Mirabeau e Carmen (“Pois é, falaram tanto / Que desta vez a morena foi embora / Disseram que ela era a maioral / E eu é que não soube aproveitar / Endeusaram a morena tanto, tanto / Que ela resolveu me abandonar...”), respondida pela própria cantora com “A Morena Sou Eu”, de Mirabeau e Milton de Oliveira (“Aqui você rirá dizendo a todos / Pois é, pois é, pois é / Quem sabe a quentura da panela / É a colher, é a colher / Chega o que ela já sofreu / Quem de vocês já conhece / Que a morena sou eu...”), que foi respondido magistralmente por Ataulfo com “Sai Do Meu Caminho” (“Eu nada lhe perguntei / Não há razão pra você me responder / A carapuça na cabeça não lhe cabe / Meu caso é outro / Eu bem sei que você sabe / Sai do meu caminho / Não estrague os dias meus / Deixe-me em paz pelo amor do Santo Deus / Pois a morena que eu falava na minha canção / É diferente da sua insinuação”).
-0-
As canções também podem nascer a partir de homenagens prestadas a músicos que partiram e fizeram falta, abrindo uma lacuna irreparável sentida por ouvintes, amigos e admiradores.                
Quando Francisco Alves morreu em 1952 num acidente automobilístico na Via Dutra, rodovia que liga Rio a São Paulo, houve uma comoção nacional. O cantor, verdadeiro ídolo da música popular brasileira estava no auge da fama, e acabou sendo objeto de inúmeras homenagens, como a prestada por Nássara e Wilson Batista com o samba “Chico Viola” (“Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira / todo o Brasil emudeceu / chora o mundo inteiro / o Chico Viola morreu...”). Na segunda parte da música, Wilson Batista relembrou seu antigo desafeto Noel Rosa, quando coloca Francisco Alves no mesmo patamar dele (“Na voz do seu plangente violão / ele deixou seu coração / partiu, disse adeus, foi pro céu / foi fazer, foi fazer / companhia pro Noel”).
O mesmo Noel também recebeu um tributo através do samba-canção “Escuta Noel” composto e interpretado por Maysa em 1957 (“Onde estás, Noel, que não escutas / Os plágios das tuas músicas / Que se ouvem por aí / Frequentaste tanto tempo academia de melodia / O samba não se faz por amizade ou simpatia /  O samba agora criou outro estilo / Sambista só sabe sambar pra granfino / E a favela agora é ponto de turista, de soçaite, de artista / A poesia acabou / Vem Noel, vem fazer a serenata / Tua música faz falta e ninguém nunca igualou”).

SEGUE

sexta-feira, 30 de março de 2018





SEPARAÇÃO

(Augusto Pellegrini – samba composto em 1968)

Quanto custa
Haver separação
Pode ter lágrima
Pode ter tristeza
O desencanto
A desilusão

Quanto vale
Desesperança e dor?
Se há a esperança
Da volta vir um dia
Um novo encontro
A nova canção

Quanto custa
Mas tem que ser assim
Neste momento
Ficar é não é possível
É preferível
Sorrir na despedida

Depois, quem sabe
Com a mudança que vier
Voltarão as escolas de samba
Coloridas de flor e mulher
Voltará o sorriso criança
Será o meu mundo
Transformado em céu

quinta-feira, 29 de março de 2018






COMO NASCEM AS CANÇÕES

(Parte 1)

(Artigo escrito para a página da Academia Poética Brasileira – https//www.facebook/com/academiapoetica/. Este site é uma publicação da Academia Poética Brasileira, da qual sou membro)

Em teoria, a música se completa em si mesma apenas com a existência de três elementos: a melodia, a harmonia e o andamento.
A melodia é uma sucessão de sons e pausas que confeccionam e modelam o corpo da música, enquanto que a harmonia é uma sucessão de sonoridades e acordes que vestem o corpo da música. Já o andamento, também conhecido como ritmo – embora musicalmente existam sutis diferenças entre o significado dos termos – é o tempo em que os compassos da peça musical são desenvolvidos para marcar o caminhar da música.
Letra, percussão rítmica e arranjos são complementos que ajudam a compreensão e a integração da música no ambiente, mas apesar de muito importantes no resultado final apresentado podem até ser considerados dispensáveis, pois a música consegue existir, comover e provocar sensações mesmo na ausência deles.
Esta constatação não é lá muito agradável para quem, como o cronista, vive mais em função das palavras do que das notas musicais. Esta dissociação não impede, porém, que exista uma saudável cumplicidade entre o criador da melodia e o escritor da letra da música, que muitas vezes se fundem numa única pessoa.
Letristas e musicistas se completam e juntos transformam letras e notas musicais em verdadeiras obras de arte, criando sensações e efeitos inefáveis quando a força tônica das notas entra em comunhão com a acentuação e a força da poesia. 
Os compositores compõem as letras das suas músicas tendo como exercício de inspiração as mais diversas e improváveis situações.
Todo tipo de emoção humana pode fazer parte do processo para que o compositor consiga expor a sua arte: questões de amor, lembranças e saudades, modismos e ideias que expressam curiosidade, malícia, crítica, ironia, ufanismo, despeito, humor, protesto social, engajamento político, filosofia popular, homenagens – a pessoas e lugares – e até oração e religiosidade. 
Os musicistas e letristas na sua grande maioria compõem as suas obras por pura inspiração, embora alguns o façam por encomenda, desafios ou, em casos extremos, até para serem comercializadas; mesmo neste caso esta mercantilidade não apaga o sentido da poesia, da melodia e da harmonia se a música tiver como resultado final aquilo que se chama de “qualidade” (pela sua amplitude, o conceito de qualidade fica para ser discutido numa outra ocasião).
A história da música popular brasileira – e universal – está repleta de curiosidades no que diz respeito à origem de certas canções, o que mostra a inesgotável força criativa dos compositores.
-0-
Herivelto Martins, por exemplo, compôs muitos sambas-canções tendo como tema a vida conjugal tumultuada que levava com a cantora Dalva de Oliveira. Havia entre eles um amor bandido – ele um boêmio irrecuperável, ela uma mulher ciumenta e cheia de caprichos.
Entre as composições de Herivelto dirigidas à Dalva, temos “Caminhemos” (“Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri / Faça de conta que o tempo passou / E que tudo entre nós terminou / E que a vida não continuou pra nós dois / Caminhemos, talvez nos vejamos depois”), gravada em 1947 por Francisco Alves, e “Cabelos Brancos” (“Não falem dessa mulher perto de mim / Não falem pra não lembrar minha dor / Já fui moço, já gozei a mocidade / Se me lembro dela me dá saudade / Por ela vivo aos trancos e barrancos / Respeitem ao menos meus cabelos brancos... / ... E agora, em homenagem ao meu fim / Não falem dessa mulher perto de mim”), gravada pelos Quatro Ases e um Coringa em 1949.
Foi em 1947 que Herivelto compôs “Segredo”, quando as brigas do casal eram muito intensas e tudo indicava que a separação já se tornara inevitável (“Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois / O peixe é pro fundo da rede / Segredo é pra quatro paredes / Não deixe que males pequeninos / Venham transformar os nossos destinos... / ... Primeiro é preciso julgar pra depois condenar”), gravada pela própria Dalva.
A separação aconteceu em 1950, e depois dela Dalva recorreu a dois amigos compositores – J.Piedade e Osvaldo Martins – para gravar “Tudo Acabado” (“Tudo acabado entre nós, já não há mais nada / Tudo acabado entre nós hoje de madrugada / Você chorou, eu chorei / Você partiu, eu fiquei / Se você volta outra vez eu não sei / Nosso apartamento agora vive à meia-luz / Nosso apartamento agora já não me seduz / Todo o egoísmo veio de nós dois / Destruímos hoje o que podia ser depois”).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, ainda em 1950 ela voltou a desabafar com a gravação de “Errei Sim”, um samba “mea culpa” que Ataulfo Alves havia composto há alguns anos (“Errei sim, manchei o teu nome / Mas foste tu mesmo o culpado / Deixavas-me em casa me trocando pela orgia / Faltando sempre com a tua companhia / Lembro-te agora que não é só casa e comida / Que prende por toda a vida / O coração de uma mulher / As joias que me davas / Não tinham nenhum valor / Se o mais caro me negavas / Que era todo o seu amor / Mas se existe ainda quem queira me condenar / Que venha logo a primeira pedra me atirar”).

SEGUE

quarta-feira, 28 de março de 2018





SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 23/09/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís - MA

 BRANFORD MARSALIS - ROYAL GARDEN BLUES

O nome Marsalis tem muita força e muito peso quando o assunto é música de jazz, e também quando o assunto é a história do jazz. Marsalis é uma marca de qualidade. O patriarca Ellis Marsalis, pianista que se mantém na ativa desde os anos 1940, atualmente com sólidos 81 anos, legou aos filhos Branford, Wynton, Delfeayo e Jason um talento musical que os coloca entre os artistas de topo da música norte-americana. Branford Marsalis, o filho mais velho, toca um robusto sax-tenor e mistura diferentes estilos de jazz, circulando entre o bebop, a balada, o hard bop e o free jazz. Neste álbum ele se cerca de músicos do primeiro time do jazz e dá uma verdadeira aula de interpretação e feeling quando executa a velha Royal Garden Blues, onde ataca de sax-soprano. Esta gravação é uma verdadeira preciosidade e mostra com propriedade a passagem do velho estilo tradicional para uma sonoridade absolutamente contemporânea.  


Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

segunda-feira, 26 de março de 2018




SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 23/12/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís - MA

TOQUINHO & PAULINHO NOGUEIRA

O Sexta Jazz desta noite presta uma homenagem ao músico instrumentista brasileiro, que em muito tem contribuído para o embelezamento da música universal. Assim, o jazz convencional abre passagem para um outro tipo de harmonia, também muito rica, posto que proveniente da mesma raiz que teve a origem na África distante e mostra um raro e emocionante encontro entre um velho mestre e um aluno que deu certo, numa gravação de 1999, quando professor já estava realizado e o discípulo já havia trilhado o caminho do sucesso. Trata-se do encontro denominado "Sempre Amigos" reunindo Paulinho Nogueira e Toquinho num sarau de alto nível misturando o samba, o choro, o erudito e a improvisação típica do jazz. No programa, composições de Tom Jobim, Pixinguinha,  Villa-Lobos, J.S.Bach, Luiz Bonfá e dos próprios executantes.  

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

                                                                                                                                     

domingo, 25 de março de 2018




UM PIANO NO FIM DA TARDE

José Eduardo Coutinho Maia era meu conhecido de infância. Éramos vizinhos, embora não necessariamente amigos, pois não mantínhamos maiores contatos nessa época. Seus pais lhe impunham uma educação excessivamente vitoriana e proibiam a ele e a seu irmão de saírem à rua para brincar e se enturmar com os garotos vizinhos. A própria família, classe média alta, não se entrosava muito com a vizinhança.
A condição financeira da família de Eduardo parecia muito estável, pois eles se davam ao luxo de ter uma governanta exclusiva para as crianças e um Chevrolet “do ano” que era obrigado a estacionar na rua, pois a casa, embora grande, não tinha garage, fato mais ou menos comum a boa parte das casas do bairro na época.
Na verdade, Eduardo e eu começamos a trocar ideias apenas depois da nossa maioridade, quando ele conseguiu afinal a alforria do velho Nazir – seu pai – muitas vezes ao lado de uma boa caneca de chope numa churrascaria chamada Forte Apache ou num bar chamado A Gloriosa, que era o point da moçada de então.
Eduardo gostava de cinema e fotografia, e eu já naquela época me interessava por escrever. Este foi o principal motivo da nossa aproximação, e as nossas conversas geralmente versavam sobre a tal da “ideia na cabeça e uma câmera na mão” decupada por Glauber Rocha, o realismo italiano, e a invasão da nouvelle vague e do cinema novo. Discutíamos de Eisenstein a Griffith e de Chaplin a Orson Welles, e eu cheguei a comprar livros sobre técnicas de direção e edição para melhor entender o assunto.
Daí nasceu a feliz ideia de fazermos um filme – chegamos de fato a fazer vários filmetes, que se perderam no tempo – onde Eduardo cuidaria da parte cinematográfica e eu ficaria com o roteiro e a parte cênica.
Um dos filmes, rodado no velho sistema dezesseis milímetros, foi chamado “A Busca e A Fuga”, baseado num conto-crônica que eu havia escrito alguns anos antes, e era uma alegoria sobre a situação incômoda de um cidadão que não conseguia se ajustar à sociedade em que vivia.
O tema podia ser pretensioso, mas o filme, mesmo modesto, chegou a participar de alguns festivais de cinema amador, onde foi objeto de elogios precipitados dos amigos, de aplausos benfazejos dos entusiastas e de comentários desairosos dos críticos mais acerbados.
Como cenário para uma determinada parte da filmagem, nós escolhemos o pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera, que havia sido inaugurado em São Paulo em 1954 e estava vazio naquela ocasião, recebendo merecidos reparos naquele ano de 1967.
Suas características arquitetônicas com vãos livres enormes sem paredes internas, nascidos da concepção modernista de Oscar Niemayer, e o descortino de um horizonte arborizado naquele fim de tarde dariam a medida exata do que precisávamos em termos de enquadramento para provocar a sensação de solidão e fuga.
Tudo, é claro, em preto e branco, por ser mais barato e mais cult.
Para lá nos dirigimos, eu com os meus projetos, Eduardo com seu equipamento, Sergio Martire – encarregado da fotografia – com seus medidores de intensidade de luz e seus conhecimentos técnicos, Élio Lammardo, uma espécie de assistente geral com seu entusiasmo e incentivo, e o nosso ator Luiz Carlos Gertel, um sujeito com cara de galã que era repórter da Radio Bandeirantes.
Subimos para o vão aberto do segundo andar e começamos a caminhar pelo piso deserto procurando o ponto mais conveniente para que Luiz Carlos começasse a atuar. A vastidão e o silêncio do cenário ajudavam a criar o clima Felliniano que desejávamos.
                                         -0-

No meio de tanta brancura avistamos como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, que crescia dentro do cenário emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trazia uma aura de imponderabilidade, como se todo o ambiente tivesse de repente começado a flutuar.
Caminhei em direção ao piano, com o som do jazz agora ocupando todo o espaço, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele nos confidenciou.
Dick recebeu nossa intromissão com um semblante sorridente e a expressão levemente enigmática, uma extensão dos seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira ou em alguma boate da região central da cidade.
A sua presença solitária naquela hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea e conveniente.
Farney não perguntou o que fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo travamos uma rápida conversa com ele.
Afinal, estávamos frente a frente com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos Estados Unidos e que fazia parte de uma revolução de ideias que culminaram com o advento da bossa nova dez anos antes, usando como recurso apenas a sua voz e seu piano, como se isso fosse pouco.
Além de “How About You” Farney gravara standards famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil Moret), “These Foolish Things” (Jack Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s New?” (Johnny Burke e Bob Haggard) e “You Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) havia sido feita em primeira mão, antes mesmo das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.  
Tudo isto sem prejuízo da discografia nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que serviram de base histórica para o surgimento da bossa nova – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José Vasconcelos), “Você Se Lembra” (Haroldo Eiras e Victor Berbara), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Se O Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois” (Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas), “Ponto Final” (Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu), “Outra Vez” (Antônio Carlos Jobim) e outras tantas maravilhas.
Dick Farney sempre se interessou pelo jazz e pelos clássicos americanos, tanto na voz quanto tocando piano, e seu debut na Radio Cruzeiro do Sul foi cantando a mais improvável das musicas – “Deep Purple” (Peter DeRose e Mitchell Parish), na época em que os cantores amadores se especializavam em Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Assis Valente.
Ele apareceu na música brasileira no local e na hora certa – Rio de Janeiro, num momento em que a juventude carioca frequentava a Lojas Murray em busca do que havia de mais moderno em discos de jazz e standards – e provocou inclusive a criação do primeiro fã-clube de que se tem notícia no Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club), que infelizmente durou apenas um ano.
                                                            -0-
 
A nossa filmagem se deu mais tarde, em um ponto distante de onde estava Dick Farney, pois não pude deixar de me quedar estático durante um bom tempo me inebriando com o som daquele piano no fim da tarde.
E aquele som – “I like New York in June, how about you?... – acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.
Afinal, o filme era mudo, mas felizmente não era surdo...






TRÊS ATOS COM BILLY PAUL

Existem certas coincidências que acontecem na vida da gente que valem a pena ser lembradas, por insólitas que são.
A marchas e contramarchas da vida me levaram a conhecer o pacato e venerando cidadão Paul Williams, hoje com respeitáveis oitenta anos, na época em que ele era cenicamente conhecido como Billy Paul, um divertido e versátil cantor e um artista de grande talento, utilizando com maestria a sua voz e o seu corpo a serviço da black music, com muito soul, funk e swing.
Não fossem, porém, as ditas coincidências puramente circunstanciais, eu talvez nunca tivesse assistido a um show seu nem tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
O fato é que, sem nunca ter procurado pelo seu show e sem jamais ter gasto sequer um tostão com ingressos, acabei, ao longo de vinte anos, assistindo não a um, mas a três shows de Billy Paul. 
A primeira vez em que Billy Paul veio ao Brasil, no início dos anos 1970, eu ainda morava em São Paulo e tinha uma legião de amigos que eram, à sua moda, envolvidos com música – proprietários e atendentes de lojas de discos, divulgadores de gravadoras, cantores de boates e relações públicas de artistas.
Dercy Gonçalves, homônimo da comediante e às vezes tão engraçado quanto ela, era divulgador da gravadora Continental e estava preocupado com a entrevista coletiva que Billy Paul daria à tarde num hotel da cidade. Em virtude de eventos paralelos, o intérprete contratado pela gravadora e pela Rádio Bandeirantes, parceira no evento, não poderia estar presente, então Dercy lembrou-se de mim, um amigo que “arranhava” o inglês e que poderia ajudar na coletiva com as perguntas de praxe e a posterior tradução.
A irresponsabilidade é muitas vezes companheira da criatividade e do sucesso.
Para o bem geral de todos, a coletiva não apenas transcorreu de uma maneira melhor que o esperado como deixou os promotores muito satisfeitos. Billy Paul também se divertiu bastante com a entrevista improvisada, ou pelo menos assim me pareceu.
É bem verdade que ele estava praticamente iniciando a sua carreira internacional e que tudo lhe parecia novo e interessante, e que naqueles tempos românticos estes assuntos técnicos não eram tratados com o rigor de hoje em dia.
Ao término da entrevista, a produção do show agradeceu a minha participação e me deu, provavelmente à guisa de pagamento, ingressos para “o show de logo mais à noite”.
Assim eu, que até então nunca tinha sequer ouvido falar de Billy Paul, fui pela primeira vez a um espetáculo seu, realizado no Teatro Paramount, sendo apresentado aos seus sucessos “Me And Mrs. Jones” (Kenny Gamble e Leon Huff), “Your Song” (Elton John), e “It’s Too Late” (Carole King), com os quais fiquei imediatamente encantado.
O tempo correu e desembocou na década de 1980.
Certo dia estava eu fazendo nada no estúdio da Rádio Mirante-FM em São Luís-Maranhão,  quando o locutor César Roberto, que também provavelmente fazia nada, posto que o seu programa já havia terminado, perguntou se eu “aguentaria uma dose de música pop num show que aconteceria à noite” (era uma pequena provocação, ou então uma cândida tentativa de fazer piada, porque minha atividade na emissora era produzir e apresentar música de jazz).
Quando retruquei que “dependia do show”, ele foi mais explícito – tratava-se de soul music, com um dos grandes nomes internacionais do estilo, Billy Paul. César Roberto havia recebido alguns ingressos da produção do cantor para distribuir entre o pessoal da radio.
Deliciado com a coincidência, pois o show seria um revival daquela noitada alegre do Paramount, é claro que concordei, e à noite fomos nos acomodar nas cadeiras ordenadamente distribuídas na quadra de tênis descoberta do Hotel Quatro Rodas.
Era noite de lua cheia – ou plenilúnio, como diriam os parnasianos – e o céu dos trópicos cintilava de estrelas. A brisa suave que vinha do mar a poucos metros do local não conseguia refrescar o calor emanado pelo show, e o cheiro da maresia era atenuado pelo sabor da cerveja comprada dos estandes ao redor ao pista e pelo leve odor do perfume usado pelo público que estava mais chique do que o evento exigia.
Billy Paul, que naquela noite estava extraordinariamente animado, desceu do palco para cantar e dançar no meio da plateia, que naquela altura arrastou as cadeiras do lugar e transformou a quadra de tênis numa autêntica discoteca ao ar livre.
Aproveitei para conversar com Billy e comentar sobre o evento da Radio Bandeirantes em São Paulo, do que ele evidentemente não se lembrou, mas gentilmente fez de conta que havia me reconhecido.
Mais uma década se passou.
Eu estava novamente em São Paulo, desta vez cuidando da edição do meu livro “Jazz – Das Raízes Ao Pós Bop”, quando meu amigo Eduardo Sérgio Fracalanza convidou-me para jantar, após o que iríamos a um show de jazz na casa mais conceituada da cidade.
Depois de uma excelente anchova na manteiga com amêndoas, regada por uma cerveja geladíssima (e não por um bom vinho, como o maître queria), partimos para o Bourbon Street para afinal descobrir que naquela noite especial não teríamos o tradicional jazz do local, mas uma apresentação de... Billy Paul!
O repertório não havia mudado muito nos últimos vinte anos e não faltaram os seus velhos sucessos – afinal, era o que o público queria ouvir – e Billy continuava bastante jovial.
Com a nossa mesa relativamente longe do palco, poupei a ele a gentileza de mais uma vez “se lembrar” dos nossos encontros anteriores.  
Mas contei a Fracalanza a singularidade da minha relação com o pop-star.







PARADA DE SUCESSOS!

Estranhamente, para um livro que se propõe comentar aventuras musicais, falar sobre futebol parece francamente uma excrescência, embora vozes saudáveis costumem muitas vezes relacionar as duas coisas e eu próprio ter como atividade cultural tanto uma coisa – música – como a outra – futebol – nas minhas digressões literárias.
Assim, num certo dia de 1953, um rapaz de pernas tortas, a quem chamavam de Garrincha – possivelmente pelo seu hábito de, desde criança, caçar passarinhos do mesmo nome – entrou no gramado de treino do campo do Botafogo, lá na Rua General Severiano.
Garrincha foi escalado para jogar na ponta-direita, num espaço de campo defendido por um lateral de nome Nilton Santos, que desde 1948 reinava absoluto no Botafogo e pintava na seleção brasileira, e que viria a ser chamado enfaticamente de “A Enciclopédia”, pois sabia tudo de futebol.
Garrincha não se importou nem um pouco com a fama do seu adversário e começou nesta mesma tarde a sua campanha mundial de desmoralização dos marcadores que a partir de então, até meados dos anos 1960, teriam a infelicidade de enfrentá-lo.
Dizem aqueles que viram o famoso Nilton Santos tomar um grande baile sem música daquele novato desengonçado, que ao término do treino o lateral foi o primeiro a recomendar a sua contratação ao então presidente Ibsen de Rossi.
Considerando que este duelo aconteceu num treino sem maiores pretensões, num dia de semana sem qualquer significado especial e cercado de nenhuma expectativa, a quantidade de gente que garante ter estado presente é assustadora, pois de longe suplantaria a lotação do estádio, que era de vinte mil pessoas.
Este prólogo vem a calhar quando se fala do nascimento da bossa nova.
Aqui não se trata de vinte mil, mas de vinte milhões de brasileiros que de uma maneira ou de outra contam como vivenciaram o evento e como as suas vidas mudaram a partir de então.
Parece que todos passaram por uma experiência semelhante à que eu passei ao serem apresentados à novidade que estremeceria as bases da cultura musical brasileira e modificaria o seu futuro de forma definitiva.
Meu relato é semelhante a milhares de relatos correlatos e a sensação de que algo de muito importante estava acontecendo com a música brasileira é compartilhada com estes milhares de felizardos.
Era 1958, talvez agosto, talvez setembro. Meio-dia.
O sol brilhava, o céu estava colorido de um azul radiante, o Brasil ainda estava eufórico com a conquista da Copa do Mundo na Suécia em junho e tudo parecia cor-de-rosa.
Eu estava no pequeno jardim da minha aconchegante casa no bairro da Aclimação, em São Paulo, que era cercado por um gradil baixo de madeira no estilo Hollywood, com o portãozinho acolhedor para as visitas bem intencionadas; algumas florezinhas bem distribuídas salpicavam o verde de amarelo, rosa e violeta, enquanto lá na cozinha, nas mãos da cozinheira minha mãe, o feijão exalava seu perfume generoso.
O aparelho de rádio – uma portentosa peça do móvel conjugado rádio-e-vitrola dotada de um moderníssimo olho mágico verde-esmeraldino – estava ligado, como sempre acontecia nessa hora, no programa “Parada de Sucessos”, transmitido pela Rádio Nacional de São Paulo, que apresentava as músicas mais tocadas e os discos mais vendidos da semana, na voz vibrante de Hélio de Alencar.
O bordão, anunciado ao som de “Saint Louis Blues” (William C.Handy) tocado pela orquestra de Glenn Miller era – “Paraaada de Sucessosss! – um desfile das músicas que o povo consagraaa! – patrocínio Lojas Assumpção, uma loja em cada bairro para melhor servir você!” – e servia de cenário para 10 caprichados hits da época, entre eles “Balada Triste” (Dalton Vogeler e Esdras Silva) com Agostinho dos Santos, “Escultura” (Adelino Moreira e Nelson Gonçalves) com Nelson Gonçalves,  Interesseira” (Bidu Reis e Murilo Latini) com Anisio Silva, “Meu Mundo Caiu” (Maysa) com Maysa, as internacionais “Cachito” (Consuelo Velásquez) com Nat ‘King’ Cole, “You Are My Destiny” (Paul Anka) com Paul Anka, e as versões “Love Me Forever” (Beverly Guthrie e Gary Lynes) com Lana Bittencourt, “Patrícia” (Pérez Prado) com Emilinha Borba e “Diana” (Paul Anka) com Carlos Gonzaga.
Uma selva bastante diversificada, como se vê, reunindo no mesmo pacote sambas-canções, baladas, boleros e a pop music da época.
Esta diversificação de certa forma incomodava uma certa parcela de jovens que, como eu, se interessavam pelo jazz ou por um tipo de música que contivesse uma mensagem que fosse poética e harmonicamente diferenciada – Sylvia Telles, Os Cariocas, Dick Farney, Lucio Alves, Johnny Alf, Chet Baker, Barney Kessell, April Stevens, Julie London, The Hi-Lo’s – fugindo das estruturas comuns, das paixões desesperadas, dos dós de peito ou das rimas pouco sutis.
A gente sabia, no entanto, que estas músicas não vendiam o suficiente para estar numa parada de sucessos e cada qual se contentava em curti-las no seu ambiente particular.
Eu e a minha turma, por exemplo, ingeríamos altas doses de boa música – e um outro tanto de gim-tônica – no recôndito do nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de uma música gravada pelo grupo de rock “Gene Vincent & seus Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de outros amigos para ouvir as novidades que faziam bem para os ouvidos e para o espírito.
De volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nos próximos dez anos ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que colaborou com a genialidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP seria lançado em 1959 incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli) e “Brigas, Nunca Mais” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.