sábado, 24 de outubro de 2015


 
 
 

EU E A MÚSICA
DIAGONAL
(a transversal que liga a bossa ao jazz)

A tranquila cidade de São Paulo oferecia durante os anos 1960 um fantástico circuito de barzinhos que fizeram parte da renovação da música brasileira logo após o surgimento da bossa nova.
O mapa do bom gosto era praticamente confinado ao bairro da Consolação – Praça Roosevelt e arredores – onde a noite fervilhava de boa música com Djalma Ferreira, Dick Farney, Ana Lúcia, Ed Lincoln, Sambalanço Trio, Leny Andrade, Araken Peixoto, Geraldo Cunha, Luiz Carlos Paraná e tantos outros.
Vários tipos de pessoas se misturavam na noite sem fim, às vezes curtindo um espetáculo vanguardista no Teatro de Arena ou uma sessão de cinema também vanguardista no Cine Bijou para depois encerrar a noitada no Bar Redondo, reduto de toda a fauna boêmia que se possa imaginar, até que chegasse o alvorecer a pleno sol.
A música corria leve e solta no Farney’s (que depois virou Djalma’s), no Bon Soir, no Stardust ou no Cave – ou no Lancaster, na Rua Augusta.
Mais adiante, na Vila Buarque, incrustada no quadrilátero dos chamados inferninhos, também havia o Baiúca (a primeira casa e introduzir este tipo de show), o Ela Cravo e Canela, o João Sebastião Bar e dois quarteirões acima o Bar Sem Nome, na região das Faculdades Mackenzie e USP-Filosofia, local geográfico que foi palco de muita pancadaria entre partidários a favor e contra a revolução de 1964.
O Bar Sem Nome era o reduto do jovem Chico Buarque – “Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem” – de Zé Keti, quando ele se encontrava na Paulicéia  – “se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será...” (“Que será de mim”, de Ismael Silva) – e do também jovem e talentoso Chico Maranhão, dono da “Mulata Abençoada” e da “Gabriela”, que bem podiam ser a mesma pessoa.   
Em contraponto com a noite da Praça Roosevelt, não muito longe dali, em outra praça, a das Bandeiras, que ficava no início da Avenida Nove de Julho, havia o Claridge (depois Cambridge) Hotel, cujo American bar apresentava o mesmo tipo de música, mas voltado para aqueles que não exercitavam hábitos noctívagos, pois abria as portas já no início da noite, para um discreto “happy hour” de shows semiacústicos com a presença de astros como Zimbo Trio, Manfredo Fest Trio, Bossa Jazz Trio, Alaíde Costa, Claudette Soares, Pedrinho Mattar Trio, Cesar Camargo Mariano e Johnny Alf.
O bar do Claridge era o que havia de chique naquele meado de século, uma mistura da modernidade que começava a dominar o país com a influência da escola arquitetônica de Brasília e da decoração dos filmes da Atlântida com traços dos anos 1920 – cadeiras estofadas, mesas e painéis decorados à art-nouveau, arandelas com luz indireta e vidro fosco desenhado – e um discreto foco de luz sobre o praticável onde os músicos se apresentavam para o público.
Eu tinha o hábito de frequentar o Claridge na medida em que meus bolsos permitiam, e passava algumas horas de encantamento sorvendo algumas cubas-libres (se bem me lembro, com alguns amendoins bem torrados) e me inebriando com aquela música especial que preenchia o espaço refinado do local.
Mesmo quando não havia algum espetáculo programado ou nos intervalos das apresentações, o show continuava, pois a casa tocava um west-coast discreto que variava de Chet Baker a Shorty Rogers, ou alguma coisa estilo third stream que tanto podia ser o Modern Jazz Quartet como Dave Brubeck e seu quarteto, tudo para tornar o ambiente realmente acolhedor.
Ao contrário da maioria dos bares e boates, as conversas aconteciam em voz baixa e não se ouviam as irritantes gargalhadas de algum piadista desprovido da capacidade de ouvir e entender música de qualidade. O som da casa era perfeito e realçava os atributos dos músicos e do cantor.
Num daqueles inícios de noite, lá estava eu acompanhado pelo meu amigo José Roberto “Pulga” Marques, que recebera este apelido porque era miúdo como um jóquei, mas um pianista competente e um gigante de gosto apurado. Nossa missão era conferir nos detalhes uma apresentação de Johnny Alf, figura carismática do movimento pré-bossa nova e do seu derivado, o bossa-jazz.
Como cantor e compositor pré-bossa, Johnny não se alinhava exatamente na nova postura dogmática da linha Lyra-Menescal-Gilberto, pois sua bossa-jazz tinha traços definitivos do antigo samba-canção de Dolores Duran e Custódio Mesquita, um pouco da fase inicial de Tom Jobim e um piano cujo drive denunciava toda uma escola jazzística a que ele fora submetido.
Seu forte não era a nova batida do violão trazida por João Gilberto e compartilhada por Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e outros mais. Seu forte era um piano impregnado de jazz, produzindo um som dissonante que variava entre Lennie Tristano e George Shearing. E um vocal que remetia a Mel Thormé, entoando melodias repletas de dissonâncias e modulações complicadas.   
Pulga tinha a seu crédito o fato de ter-me apresentado ao primeiro LP de Johnny Alf, chamado “Rapaz de Bem”, que eu frequentemente ouvia em casa com a atenção e a fascinação que lhe eram merecidas.
Evidentemente, a aquisição de outros discos do cantor seria apenas uma consequência natural, e a presença de Johnny no Claridge naquela noite foi motivo de festa.

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Enquanto rolava a apresentação, com a malícia e a sutileza de Johnny Alf – eu e o amigo Pulga, sorvíamos os goles da cuba-libre no copo longo e suado e ouvíamos em silêncio, absolutamente concentrados, as músicas que iam se sucedendo – “Ilusão À Toa”, “Fim De Semana Em Eldorado”, “Tudo Distante De Mim”, “Escuta”, “Vem”, “O Que É Amar”, “Céu E Mar”, “Seu Chopin, Desculpe” e outras preciosidades, todas composições de Johnny Alf, e as deliciosas “Penso Em Você” (Fernando Lobo e Paulo Soledade), “Feitiçaria” (Custódio Mesquita e Evaldo Ruy) e “Despedida De Mangueira” (Benedito Lacerda e Aldo Cabral).
A nossa mesa ficava próxima ao palco.
Enquanto Johnny sorria agradecendo os aplausos depois de mais uma interpretação de tirar o chapéu, eu me enchi de coragem e, sob o olhar curioso do amigo Pulga, pedi, no impulso da empolgação – “Johnny, canta Diagonal!”.
Diagonal” (Maurício Einhorn e Durval Ferreira) é uma música que faz parte do seu segundo LP, gravado em 1965.
Em “Diagonal” Johnny não canta a letra da música, mas faz um notável “scat-singing”, a exemplo do que havia feito em “Tema Sem Palavras” (dos mesmos Mauricio Einhorn e Durval Ferreira) e “Que Vou Dizer Eu?” (Victor Freire e Klécius Caldas) no primeiro LP em 1961.
No caso de “Diagonal”, porém, ele faz um duplo “scat-singing”, pois executa um contracanto com ele próprio.
Não dá pra cantar essa música” – disse Johnny gentilmente – “pois falta uma segunda voz para fazer o contracanto”, ao que eu, que conhecia a música de cor, tanto o canto quanto o contracanto, atrevidamente repliquei - “eu posso fazer a segunda voz...”.
Johnny meditou por alguns segundos, colocou o microfone que ele tinha junto ao piano mais para o lado, a fim de possibilitar o seu uso para duas pessoas, e simplesmente me convidou para subir ao palco!
Uma vez atrevido, atrevido e meio.
O baixista e o baterista (não me recordo quem eram) me olharam meio desconfiados, mas a um sinal de Johnny eles começaram a introdução.
Sem titubear, comecei a cantar com o meu ídolo, respondendo a sua primeira frase -  Tara (taturá) parutaratutára (pararaturará)...” - sem me intimidar nem ficar vermelho.
Não me lembro com detalhes como ficou o dueto, mas ao final o público aplaudiu e o amigo Pulga congratulou-se comigo. Os músicos sorriram, e Johnny continuou o show como se tudo tivesse sido ensaiado.
Mesmo tendo privado posteriormente de uma certa amizade com Johnny Alf antes de ele voltar a residir no Rio de Janeiro, graças a alguns amigos que tínhamos em comum, o “happy hour” do Claridge se tornou inesquecível, e o breve contato que mantivemos naquela noite apenas comprovou a grandeza de alma de um artista que compensava a complexidade da sua criação musical com a simplicidade da sua condição de ser humano.

 

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2015


 
 
 
COPA DO BRASIL 

Chegamos às semifinais do torneio mais importante do país, a Copa do Brasil (o Campeonato Nacional, com toda a sua importância, não é um torneio, mas um campeonato, como o próprio nome indica).
Nesta semana já foram travadas as primeiras partidas pelos mata-matas decisivos, levando os vencedores de Fluminense x Palmeiras e Santos x São Paulo a decidirem o título na sequência.
Independentemente do que venha acontecer, com quatro grandes clubes na semifinal, igual ao que aconteceu em 2014, ainda não há como apostar numa final.
Fluminense e Santos saíram na frente e levam vantagem, mas como ainda faltam 90 minutos, a euforia está sendo prudentemente deixada de lado.
Trata-se da vigésima-sétima edição do vitorioso torneio, iniciado em 1989 com o fito de proporcionar uma abertura e um intercâmbio maior no futebol em todo o Brasil, por abranger equipes de todas as regiões e divisões, num tipo de certame altamente democrático, pois permite a grandes e pequenos, ricos e pobres, famosos e não-midiáticos travarem verdadeiras batalhas entre si, num sistema de salve-se quem puder.
A prova de que este torneio pode se constituir numa feira de oportunidades é que por quatro vezes clubes considerados do segundo escalão do futebol brasileiro – há quem os coloque no terceiro – conquistaram o título.
Pela ordem, deu Criciúma-SC em 1991 sobre o Grêmio, Juventude-RS em 1999 sobre o Botafogo, Santo André-SP em 2004 sobre o Flamengo, e Paulista-SP em 2005 sobre o Fluminense. E com a zebra sempre ganhando o título na casa do time grande, pra aumentar a emoção.
O formato do torneio abre as perspectivas para desfechos desse tipo, pois força a realização de partidas eliminatórias entre dois times que vão se cruzando mais ou menos aleatoriamente, o que altera a lógica que acontece num campeonato por pontos corridos, no qual os grandes vão somando mais pontos do que perdendo e no final da competição geralmente já conseguiram uma folga suficiente para evitar surpresas.
Nos primeiros seis anos a Copa do Brasil contou com apenas 32 participantes, alterando o número para entre 36 e 69 durante outros seis para se fixar em 64 a partir de 2001 até 2012. Hoje tem 87, número que vem mantendo há três anos.
Os grandes vencedores até esta edição são Grêmio e Cruzeiro, cada qual com quatro títulos. Flamengo e Corinthians tem três, e o Palmeiras tem dois.
Dos chamados doze grandes do futebol brasileiro (quatro paulistas, quatro cariocas, dois gaúchos e dois mineiros) apenas São Paulo e Botafogo nunca conquistaram o troféu.
Considerando apenas os semifinalistas deste ano, o Palmeiras já tem dois títulos, um terceiro e dois quartos lugares, o Fluminense já tem um título e dois vice-campeonatos, o Santos tem um título, dois terceiros e um quarto lugar e o São Paulo tem no máximo um vice, um terceiro e um quarto lugar. Esta explicação pode parecer pretensiosamente didática, mas serve para o leitor avaliar qual a importância desta empreitada para os clubes envolvidos.
A Copa do Brasil se baseia num formato iniciado na Inglaterra no século 19, chegando por aqui com um atraso de mais de cem anos, sendo atualmente praticado pela maioria das federações do mundo, inclusive a dos Estados Unidos, através do seu US Open Cup.
Em 1871 a Federação Inglesa instituiu a Copa da Inglaterra (lá denominada FA Cup), a mais antiga competição de futebol do mundo, que já foi realizada 133 vezes. A temporada 2008/2009 foi a que contou com o maior número de equipes, precisamente 761.
Nos moldes da FA Cup, a Espanha lançou em 1902 a atual Copa del Rey, que já mudou de nome três vezes, mas no total já contabilizou 110 torneios. A Coup de France e a Coppa Italia, organizadas em 1917 e 1922 respectivamente, já totalizaram 93 e 66 edições, contando com as paralisações obrigatórias em virtude da Segunda Guerra Mundial. A Copa de Portugal foi iniciada em 1921 e conta até agora com 95 torneios, e a Copa da Alemanha, atualmente chamada de DFB Pokal, nasceu em 1934, somando até este ano 68 edições.

 
 

(Artigo publicado no caderno SuperEsportes do jornal O Imparcial de 23/10/2015)

 

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015






EU E A MÚSICA
A SÃO PAULO DE ADONIRAN BARBOSA
(...de Joca, Mato Grosso e Iracema)

Meu São Paulo
foi da garoa, tempo frio que já mudou.
Cantada pelo filho do italiano
está mais quente a cada ano,
é o samba urbano que chegou.
Bexiga, Barra Funda, Lapa e Mooca,
e a maloca que, saudosa,
hoje não existe mais,
porém a caravana colorida
evolui na avenida
evocando os bons tempos do Brás

Com empolgação,
meu São Paulo é um poema
de Malvina, Adoniran,
Mato Grosso e Iracema.

Trem das onze,
as mariposas vão sambando na estação,
lembrando da moçada o sacrifício,
a derrubada do edifício,
o antigo Albion.
Acende o candeeiro de mansinho,
traz de volta o cavaquinho
pra encantar meu bem querer.
Cidade de trabalho e de progresso,
seu poeta e seu sucesso
nós vamos cantar outra vez
...”

(“A São Paulo De Adoniran Barbosade Augusto Pellegrini)

Esta é a letra de um samba que eu fiz em homenagem a Adoniran Barbosa no ano de 1975 para concorrer à escolha do samba-enredo para o carnaval de 1976 pela G.R.E.S. Escola de Samba Pérola Negra, Vila Madalena, São Paulo, cujo tema era exatamente “A São Paulo de Adoniran Barbosa”. A música concorreu, não ganhou, mas eu me senti premiado por ter convivido com o poeta, ainda que por breves instantes, pois isso enriqueceu a minha alma.
Gostaria de ter absorvido mais um pouco da sensibilidade de Adoniran, mas o nosso tempo foi muito curto. Enfim, como ele mesmo dizia – “mas isso num faz mal, num tem ‘portança’...”

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Desde muito jovem a música sempre me encantou.
Talvez por isso eu gostasse de exercitar o meu lado compositor, na maioria das vezes fazendo sozinho a letra e a melodia da música, mesmo não conhecendo coisa alguma sobre teoria musical nem tendo a prática de executar qualquer instrumento.
A música era produzida dentro da minha cabeça, e eu tinha que a cantarolar dezenas de vezes para não esquecer a linha melódica. Enquanto isso, o arranjo e a orquestração – violão, violinos, metais, piano, percussão – iam tomando sua forma definitiva, mas sempre dentro da minha cabeça.
Os compositores leigos, como eu, sabem do que eu estou falando.
Isto causava sérios problemas quando eu queria cantar as minhas composições acompanhado por algum instrumentista, pois evidentemente a harmonia que ele extraía do instrumento era bem diferente daquela que eu havia concebido.
Quando comecei as minhas tentativas, fui influenciado pela música brasileira da época – coisas de Antônio Maria, Dolores Duran, Alberto Ribeiro, Tito Madi, Fernando Cesar, Klécius Caldas, Armando Cavalcante, Henrique Lobo e Luiz Bittencourt, todos autores de sambas-canções que eram interpretados com alma pela mesma Dolores, pelo próprio Tito Madi, por Nora Ney, Agostinho dos Santos, Dóris Monteiro, Lucio Alves, Cauby Peixoto, Dick Farney e alguns outros tantos.
Mesmo assim, a minha música não possuía as características específicas do samba-canção e não obedecia à configuração tradicional dos seus versos, uma sequência de primeira estrofe-segunda estrofe, pois o samba-canção convencional não utiliza refrãos com frequência.
Além do mais, eu “quebrava” a melodia às vezes de forma inusitada, coisa típica – de acordo com a opinião de músicos e especialistas – de quem não é engessado pela teoria e sente mais liberdade para simplesmente expor seus sentimentos.

Sozinho pela madrugada
não procuro amigos,
só procuro paz.
Partiu, não me disse nada,
não deixou resposta, não,
isso não se faz...

Eu tenho um pressentimento que me fala
mais alto que o desalento que em mim cala.
Nunca mais encontrarei quem me consola,
e dos sonhos que sonhei eu vivo agora
...

Sozinho pela madrugada,
não procuro amigos,
só procuro paz.
É muito fácil compreender,
mas é difícil resistir.
Sozinho pela madrugada,
vou ficando triste,
vou ficando só
...”

(“Sozinho Pela Madrugadade Augusto Pellegrini)
 
Mas logo chegou a bossa nova, e eu incorporei o estilo às minhas composições, sem abandonar o jeito da canção e do samba-canção. E continuei distante daquilo que João Gilberto chamava de “samba autêntico” – tipo Ary Barroso, Assis Valente, Ataulfo Alves, Dênis Brean – como também do samba-canção tipo deprê, também chamado “dor-de-cotovelo” – Lupicínio Rodrigues, Fernando Lobo, Herivelto Martins, Jair Amorim – que abordava o romantismo de forma dramática, como o tango, e dos quais eu até gostava, mas não me identificava a ponto de compor coisas do gênero.
A bossa nova me mostrou que a gente podia fazer poesia com as coisas mais simples do dia-a-dia e da natureza, sem necessidade de utilizar parnasianismos ou erudição nas palavras.

Descanso,
é gostoso de ver
as nuvens brincando,
e figuras formando
bem alto, no alto do céu,
não penso,
quero fugir da vida
como o dia perdido
no qual eu fugi de ti.

Morreu o sol,
escurece depressa
igual ao momento
em que escureceu
o dia sem luz que eu vivi.
Desperto,
meu descanso não era,
era sonho, quimera,
eu não fujo, eu não posso fugir
...”

(“Descansode Augusto Pellegrini)

Por trabalhar dentro dessa linha de composição, foi com muita surpresa que recebi em 1974 um convite para ingressar na ala de compositores da paulistana Pérola Negra, que na época era recém-egressa do Grupo B.
O convite partiu de um dos integrantes da ala, um engenheiro chamado Francisco Siqueira, sambista bissexto que eu conheci por força do meu ofício, o nada romântico trabalho de inspecionar equipamentos, o que eventualmente acontecia na indústria onde ele era o gerente industrial.
A princípio relutei em aceitar, pois aquilo ia contra todas as convicções musicais que eu havia cultivado até então – jazz, samba-canção, bossa nova – mas dada à insistência do Chico acabei aceitando o desafio.
Fiquei na escola durante seis anos, fiz parceria com o Chico Siqueira e com outros compositores, participei das festividades regulares, dos eventos de samba de quadra, dos ensaios na rua, das escolhas dos sambas-enredos, e logrei ser o vencedor em 1979 com o samba “Carnaval, Intrigas e Opiniões” – cujo tema era as discussões sobre a origem do samba – em parceria com meu depois compadre Nelson Gengo (música gravada em LP 230023 pela CBS e elogiada em um artigo de 15 de fevereiro de 1979 no Jornal do Brasil pelo crítico musical José Ramos Tinhorão, um luxo!).

Até parece que o samba
procura imitar a vida
as divergências da história
permanecem na memória.
Nascido no Cariri,
ou então em Salvador,
se veio da ginga dos bambas
ou do jongo do interior,
importante é conseguir
unir todas as correntes,
fazendo com alegria
o canto da nossa gente

Samba, sambé, sembahó
ou sambaquixaba,
passado que todos discutem,
futuro que nunca se acaba.

Eram castanholas e pandeiros,
depois flauta e cavaquinho.
Intrigas e opiniões
jamais dividirão
os nossos corações.
No céu um repinique de estrelas
mostrando o carnaval de amanhã,
na terra virá a Pérola Negra
sambando ao som de Aldebarã

(“Carnaval, Intrigas e OpiniõesAugusto Pellegrini e Nelson “Zurumba” Gengo)

Por ocasião dos desfiles os compositores eram também responsáveis pela harmonia da escola, o que nos permitia participar deles como um todo, percorrendo o trajeto em toda a sua extensão, indo e voltando, e tentando manter as diversas alas cantando em uníssono e com entusiasmo, evitando também o aparecimento de espaços em branco entre os sambistas, o que a nomenclatura do samba chama de “buraco”.
Era empolgante a gente se sentir iluminado pelos holofotes, sustentados por uma bateria vibrante e por uma alegria contagiante que descia das arquibancadas para a avenida, que naquele tempo ainda não era chamada de “passarela do samba”.
Durante o ano a escola se dividia em múltiplas atividades, todas voltadas para a execução de um desfile perfeito. A bateria ensaiava paradinhas e filigranas sob a batuta do seu mestre; o cantor principal, chamado de “puxador” cantava o samba-enredo por horas a fio para afinar as cordas vocais e depois fazer com que todos os elementos da escola memorizassem o samba; as costureiras, em geral familiares dos participantes, produziam as fantasias elaboradas pelo diretor de carnaval, que acumulava as funções de figurinista; os artistas plásticos se confinavam em galpões escondidos dos olhos do mundo e preparavam as alegorias e os carros alegóricos.

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Foi nesse ambiente ímpar que eu conheci uma figura também ímpar do poeta popular Adoniran Barbosa.
Adoniran era, ao lado do conjunto Os Demônios da Garoa e do sambista Germano Mathias, o mais legítimo interprete das coisas de São Paulo, e se dava ao luxo de atentar contra a língua portuguesa sem o menor pudor, uma homenagem aos seus avós que como tantos outros italianos aportaram na cidade no final do século 19 para tentar uma vida mais digna.
Foi um batalhador em busca de um lugar ao sol, trabalhando como comediante, locutor e cantor tão logo conseguiu vislumbrar a oportunidade de mostrar o seu talento nas ondas do radio. 
Entre outras coisas, Adoniran também era um compositor que não conhecia teoria musical. O espírito urbano das suas composições retratava o ator que morava nele, às vezes histrião, às vezes irônico, às vezes dramático, como de resto o era a sua interpretação como cantor.
De certa forma éramos dois peixes fora d’água que se encontravam no mesmo lugar, sob o mesmo céu estrelado, sem ter muita relação histórica com o que se passava ao redor.
Havíamos aceitado o desafio, eu como compositor, ele como protagonista, e estávamos no mesmo barco até que o mesmo chegasse ao nosso porto seguro.
Numa escola de samba, as pessoas que são homenageadas com o tema assumem a condição de padrinhos e madrinhas da associação durante o período que vai da escolha do tema pela comissão de carnaval até o dia do desfile.
Nessa condição, elas frequentam a escola durante os ensaios, decidem se vão desfilar e de que forma irão desfilar e se tornam amigos de todos, desde os membros da diretoria até o sambista de ala mais humilde, embora poucas vezes esta amizade se prolongue depois do carnaval.
Um dos pontos altos da celebração é a escolha do samba-enredo, quando o personagem do tema participa de uma festa com direito a ouvir e apreciar mais de uma dezena de sambas feitos em sua homenagem.
Adoniran não era habituado a comparecer a ensaios, pois os mesmos duravam horas a fio, e o poeta, apesar de apreciar o sereno que lhe dava inspiração, não tinha na alma a retumbância de surdos e alto-falantes, mas o aconchego de uma cantina ou de uma esquina à luz de um poste, onde ele podia sussurrar poesia com sua pouca voz ao lado de uma taça de vinho ou de um violão solitário e preguiçoso.
Aparentemente também, Adoniran não chegou a se comover pelo fato de ser cantado em prosa e verso. Ele, que já cantara tantos personagens, fictícios ou não – Iracema, Ernesto, Nicola, Malvina, Pafúncia, Mato Grosso, Joca, Geralda – sabia conviver perfeitamente com essa inversão de papeis.
Mas na noite da escolha do samba-enredo ele lá estava, de bigodinho aparado, chapéu e gravata borboleta, só faltava o cachecol que o acompanhava nas noites garoentas de São Paulo, e se mostrava muito animado.
Seus olhos miúdos brilhavam com a intensidade dos olhos de um gato e seu sorriso com o canto da boca equilibrava o costumeiro cigarro sem filtro que aceleraria a sua morte oito anos depois.
Ele percorreu várias mesas para cumprimentar as pessoas que o aplaudiam, subiu ao palco para receber homenagens enquanto era saudado pelo presidente da escola – o que de certa forma o constrangeu, homem simples que era – e terminou na chamada “mesa da diretoria” onde sentavam alguns diretores e compositores, e onde a cerveja rolava ao som do samba.
Amante de um bom uísque, Adoniran foi presenteado com uma garrafa e um balde de gelo, com o que se regalou.
Um diretor se desculpou pela pobreza da agremiação, que na impossibilidade de lhe oferecer algo mais requintado optou pelo brasileiríssimo Old Eight e algumas peças de frango a passarinho feito por uma das tias da escola.
Adoniran se limitou a responder – “num tem portança” – e em pouco mais de uma hora secou a garrafa.