Crônica para uma Sexta-Feira
13
SOLILÓQUIO
(Excerto II)
E este público falando por sussurros, desordenadamente
reunido próximo ao meu esquife, ajuda a criar um cenário de pompa e glória,
pois afinal este é ou não é um dia marcante, um dia simplesmente inesquecível?
Na verdade, se nada me incomoda do lado
de dentro, imóvel como um objeto e apertado como embutido de presunto,
descansando no revestimento almofadado e roxo com a tampa de madeira roçando o
meu nariz que nem é tão grande assim, é porque também estou aqui do lado de
fora, encantado e divertido com tantas lágrimas debulhadas, tanto sorrisoao léu,
tanto desespero autêntico e tantas maledicências lançadas.
Os advogados agora me achamam de “de
cujus”, os amigos distantes de “o falecido”, os credores de “que desgraça!”, o
coveiro de “mais um” e os herdeiros de “graças
a Deus”, mesmo não havendo um prego torto para herdar ou talvez exatamente por
isso.
A viúva, a quem os advogados chamam de “supérstite”
não compareceu ao féretro para não ter que encenar ao vivo a choração das carpideiras
nem ter que suportar os olhares de misericórdia dos fariseus de farrancho.
Passada a comoção do préstito, todos os
interessados hão de encontrar um intérprete para decifrar meu testamento cheio
de dívidas e sem nenhum dividendo.
Flutuo como um fantasma por entre os
vasos de concreto rústico e suas flores emurchecidas, por detrás das pedras
tumulares recobertas de musgo e limo e por sobre as cabeças dos canalhas que
fingem sobriedade e se acotovelam, esticando o pescoço como galinhas ciscando
para ver o esquife baixar à sepultura amparado por dois pedaços de corda como
se fosse uma caixa de cebolas, ora a cabeça batendo contra o lado de cima, ora
os pés se achatando contra o lado de baixo, amarfanhando o terno azul marinho
grosso demais para o calor que está fazendo, terno que já frequentou tantas
cerimônias fúnebres e que afinal tantas vezes vai à fonte, que um dia fica.
Flutuo como um fantasma porque sou um fantasma.
De nada me serve agora o dinheiro que eu
devia, que eu não devia e que me deviam, o que eu não pude gastar, perdi ou
deixei de ganhar, estivesse eu em Cafarnaum ou no Vale de Caxemira seria a
mesma coisa, assim como em Londres ou Honolulu, e este som abafado do ataúde
chegando ao fundo da cova me faz lembrar a Sinfonia do Novo Mundo como a Noite
do Monte Calvo.
Já me preocupo com a movimentação que
será feita por ocasião do sétimo dia, quando muitos provavelmente virão aqui
novamente, e depois no primeiro mês, e no Dia de Finados, e a partir daí as
coisas começando a se distanciar... a sétima semana, o sétimo mês, o sétimo
ano, a sétima década e assim “ad eternum per omnia saecula, per omnia
tempora...”
Enfim, lá vão eles se retirando, menos
circunspectos do que deviam, pensando no que irão jantar e que vinho irão beber.
O último intruso atravessa o portão em
direção à praça, e eu me recolho dentro do desconhecido.