terça-feira, 25 de janeiro de 2011

UMA AVENTURA DE NATAL


Nem bem tinha fechado os olhos quando o relógio o despertou.
Dez da noite.
O sono lhe fora pesado e curto.
Os dias de tensão, as noites de vigília, a semana inteira ordenando as idéias, cigarro após cigarro pensando na noite de Natal, na importância da noite de Natal, no presente de Papai Noel.
O tilintar do relógio despertador lhe pareceu o badalar de sinos dentro da caixa craniana, o sobressalto lhe assaltando, a adrenalina concentrada, os nervos em pandarecos.
Mas tinha que se controlar. Não era hora de ficar nervoso, o Natal está a poucas horas, a vestimenta de Papai Noel lhe está sorrindo, acenando e pedindo calma.
Pensou em ficar ainda mais um pouco deitado, dormitando, bem agora que o corpo havia encontrado a posição ideal, nenhum mosquito pra incomodar, aquela preguiça, aquela lassidão.
Mas não podia, queria mas não podia, o dever gritava nos seus ouvidos – hoje é noite de Papai Noel!
Ergueu-se como uma mola.
Se continuasse deitado iria dormir de novo, iria perder a hora e então, adeus sonho, adeus Papai Noel.
No canto, amarfanhada, a roupa vermelha e a ridícula barba branca.
Pensou se não teria sido mais fácil ter deixado crescer a própria barba, embora negra e hirsuta, e depois pintá-la ou passar água oxigenada nos pelos grossos, mas a idéia lhe foi repugnante.
Dentro da cabeça a expectativa crescendo, tremendo, fremindo, nesta noite de pura emoção. Outro cigarro aceso.
Lá fora, a grande noite, o céu estrelado, o vento brando, alguns foguetes espocando aqui e ali, prenúncio de uma grande noite de Natal.
Aqui, a túnica vermelha com alguns fios esgarçados pelo uso, os apliques brancos, a bota preta precisando de uma demão de graxa. No canto, dependurada num prego na parede, a barba branca continuava sorrindo aquele sorriso sem boca, aquele sorriso de Papai Noel.
Aos trinta e dois anos, mais do que nunca, acreditava em Papai Noel.
E nunca Papai Noel lhe fora tão importante, nunca marcara sua vida com tanta tinta como nesta noite de Natal, como uma pintura impressionista.
Agora não era mais um simples e puro sonho de criança, aquele encanto de ficar acordado até que lhe aparecesse o presente, o pacote cheio de laços, a surpresa envolta em papel de seda e celofane crepitante, aquela bobagem de renas puxando o trenó, de chaminés, a meia dependurada na árvore e o sapato na janela.
Agora era real, era vestir a fantasia, colocar a barba, enfiar o capuz até o meio da testa, calçar as botas um número mais largas, apanhar o saco cheio de coisas e partir para a maior noite da sua vida.
Primeiro vestiu a calça fofa, depois enfiou as botas e os dedos dançaram naquele espaço imenso. Depois a túnica. Havia uma mancha de gordura bem do lado esquerdo, foi aquele Papai Noel da lanchonete da última quarta-feira, aquele menino gordinho que deixou cair maionese daquele maldito cachorro quente – onde já se viu comer cachorro quente com maionese?, isto é coisa de americano.
Foi ao espelho e, com muito cuidado começou a colocar a barba, amarrada de um lado e colada de outro, puxa, não sabia que isto era tão complicado!, o nariz parecendo mais vermelho e finalmente o sorriso branco, confiante e feliz.
Agora o capuz. Tomara que não vá atrapalhar, com aquele pom-pom grotesco balançando na ponta – ele continuava achando absurdo alguém usar este tipo de chapéu, nem o verdadeiro Papai Noel com seus mil e seiscentos anos de idade dirigindo seu trenó e suas renas pelas planícies geladas da Lapônia, nem o próprio Polichinelo.
Olhou as horas.
Analisou o conteúdo do saco. Tudo certo.
Olhou novamente para o relógio.
Onze e trinta e cinco. Lá fora um cachorro late, e surge um som ruidoso de canções de Natal com harpa paraguaia, meio fora de moda, gosto duvidoso.
Está na hora de sair.
Puxa o saco não tão pesado para os ombros, levanta os olhos para o teto como se mirasse a abóboda da Capela Sistina, como se pedisse aos céus que esta noite fosse, de fato, a noite mais feliz da sua existência.
Aproxima-se da porta.
Então, o vendaval.
A porta se abre para dentro com um estrondo, o mundo desabando sobre a sua cabeça, as estrelas da Sistina dançando ao seu redor, homens gritando, armas, mãos para o alto, “quieto, se não quiser morrer!”
Papai Noel com as mãos na parede, somente agora ele notou que tinha esquecido de calçar as luvas, os olhos esbugalhados, o suor escorrendo por dentro da barba, o rim doendo pela pancada da coronha bem manejada, no rosto o ríctus doloroso.
“Ta preso, assaltante safado!”
O plano havia sido descoberto.
No chão, o saco revirado mostra algumas ferramentas, algumas folhas de jornais velhos, uma pistola trinta e oito, dois rolos de esparadrapo, uma bomba caseira de má fabricação e seu amulato da sorte, uma ferradura de verdade com uma fita vermelha amarrada num dos furos.
O cachorro ainda late, mas agora se ouve o Messias de Haendel.
Bate a meia-noite na noite de Natal.
Sinos repicam marcando a hora da Missa do Galo, o movimento é pequeno, mas sente-se no ar um certo burburinho, como se estivéssemos dentro de uma garrafa de champanhe.      
Na esquina, próxima ao Banco imponente, todo revestido de mármore preto, um rapaz está encostado ao poste. Ajeita o boné para frente e enfia a mão no bolso, nervosamente. Olha para os lados atentamente, como um gato.
A uns cem metros, ao lado de uma placa de estacionamento proibido, jun to ao meio-fio pintado de amarelo, dentro de um carro escuro, dois homens se questionam – “não está na hora? – e fumam impacientes, a fumaça toldando o espelho retrovisor.
Em frente ao Banco passa vagarosamente um outro rapaz, disfarçando alguma coisa, olhando para os lados, ansioso. Consulta o relógio sob a lus do poste, os sinos batem, os ponteiros se encontram.
Todos estão esperando por Papai Noel.
Ao longe, os sinos continuam repicando, se confundindo com o som da sirene que se aproxima.




DESCULPAS


Mal começou a temporada e os clubes já começam a se justificar por causa de algumas atuações pouco convincentes. Todo ano é a mesma coisa.
Na verdade é possível fabricar desculpas ou palavras de auto-elogio para cada parte do calendário.
A desculpa do momento é a falta de tempo para entrosar o elenco, a tal da pré-temporada.
É uma boa desculpa, pois nem todo jogador sabe se cuidar quando está de folga, e as festas de fim de ano são uma tentação para quem quer comprometer o estado do seu estado físico.
Sempre ocorrem também mudanças no elenco, e os jogadores levam algum tempo para se conhecerem. Além do mais, nem todos os atletas se comportam da mesma maneira em termos de recuperação pós-férias. Então, o entrosamento vai pro espaço.
Técnicos e fisicultores têm outra desculpa engatilhada na ponta da língua para explicar este fenômeno: Fulano está acima do peso, Beltrano está abaixo do peso, Sicrano está com a cabeça na Europa...
Daqui a três meses a desculpa vai ser outra: a pré-temporada foi prejudicada pelo pouco tempo que os clubes tiveram à disposição. É complicado, pois o calendário prevê setenta e tantos jogos no ano e as férias nunca chegam aos trinta dias regulamentares.
Com isso, o ritmo dos atletas não consegue ser uniforme e a falta tempo não deixa o time engrenar. Eles vão ressaltar, também, que as malditas contusões e os malditos cartões atrapalharam o desenvolvimento da equipe.
Como se isto não fosse natural e corriqueiro.
Está chegando o meio do ano e tem time que ainda não se encontrou. A direção o clube troca de técnico e impõe uma cartilha rigorosa aos atletas, culpando o mau desempenho por conta de uma maior falta de disciplina. Às vezes dá certo, outras vezes não. 
Na metade do Campeonato Brasileiro as equipes que estão lutando pela liderança reclamam do cansaço pelo excesso de jogos, no meio e no final de semana. Afinal, alguns clubes se esfalfaram ou ainda estão se esfalfando na Copa do Brasil, na Copa Libertadores e na Copa Sul-Americana.
Este ano teremos ainda a Copa América, e aumentarão as desculpas de cansaço, contusões e ausências forçadas de jogadores, combinadas com algumas transferências, devido à janela européia.
Enquanto isso, os campeonatos seguem em frente.
As equipes que estão no fim da tabela acham que o cansaço físico e mental está comprometendo a recuperação, e muitas adotam o remédio amargo já utilizado anteriormente, isto é, continuam trocando de técnico e afastando jogadores.
Pra não me alongar, passemos à desculpa final: os jogadores, agora na plenitude da forma física e técnica, adquirida com a continuidade dos jogos alegam que estão precisando de férias.
É uma roda viva que, quero crer, ocorre não só no Brasil, mas em boa parte do mundo onde o futebol assumiu ares de grande empresa, onde os jogadores são meros instrumentos de geração de lucro, sendo que muitos deles são regiamente pagos para poderem dar-se ao luxo de reclamar.
O esporte, que originou tudo isso, também passou a ser uma desculpa.