O ATOR
Estou
novamente desempregado.
Como
o leitmotiv da minha vida sempre foi
o palco, não sei se atribuo esta infelicidade à força do destino, como dramatizado
por Giuseppe Verdi, ou à força das circunstâncias, coisa que pode acontecer a
qualquer mortal envolvido nas farsas do dia-a-dia.
No
momento, sou mais um personagem da vida real à procura de uma persona no palco, saudoso do camarim que
guarda aquele silêncio que antecede o espetáculo e daquele calafrio que
antecede a entrada triunfante em cena.
Tenho
parte da culpa neste destino por enquanto inglório, mas na verdade me considero
mais uma vítima do enredo, que foi tramado à minha revelia.
A
história que ora reproduzo poderá algum dia, se escrita pelas mãos hábeis de um
roteirista, se transformar numa épica obra shakespeariana, tal é a natureza das
personalidades envolvidas, o drama e a ironia contidos na trama, o ranço
operístico e a mensagem bufa.
Essa
história começa com o lirismo de uma poesia ...
Por tanto tempo este
momento eu esperei
Mas gostaria de fugir, e o
porquê não sei
O camarim guarda o
silêncio que antecede o show
Lá fora, vozes sussurrando
sob a luz em meio tom
Olho no espelho, que
reflete o que há em mim
Eu gostaria de sentir
felicidade, enfim
Escolho a face que usarei
para enfrentar
Esta plateia colorida que
me assusta e faz chorar
“Na solidão deste monólogo
cruel
Sinto na boca o gosto fel
E o coração parece então
acelerar
Sigo em silêncio em
direção ao meu destino
Caminho ao som de um
violino
Que me empurra para o
palco
E as cortinas de veludo
Ao descerrarem mostram
tudo
Rosas vermelhas no cenário
E aplausos quentes como a
luz
A emoção me faz chorar um
choro negro
Que faz parte deste enredo
Que fascina e me seduz”
...
e termina com a tragédia dos grandes épicos.
-0-
Assim
foi desde o princípio, e parece que assim será per omnia saecula, saeculorum,
amém: os momentos que antecedem a entrada ao palco são de extrema tensão, de
intensa agonia, de uma expectativa doentia, de uma sensação febril.
Agora
sei como se sentiam os prisioneiros de Auschwitz-Birkenau quando chegava a hora
de adentrar a câmara de gás, uma alternativa indolor – ainda que não inodora –
de cumprir com a derradeira tarefa mundana antes de alcançar a vida eterna.
E
olhem que muitos deles não tinham consciência do que estavam fazendo, ao
contrário de mim. Eu sei a hora de entrar e a hora de sair de cena – eles não
sabiam a hora de entrar e só saíam de lá mortos e com os pulmões intoxicados de
cianureto, mas pelo menos não tinham que enfrentar o julgamento dos carrascos da
plateia.
Como
Edwin Booth, eu sinto o coração oprimido quando enfrento o olhar inquisitivo do
público que se refestela nas cadeiras a cinco metros de mim, e não duvido que o
mesmo tenha ocorrido com Sir Lawrence Olivier com toda a sua arrogância, ou com
Sarah Bernhardt com toda a sua aura cativante. Ou com Gassman, algum dia.
Mas
Booth, Olivier & Cia. não tinham os problemas que eu tinha – eles eram os
astros principais, não um mero coadjuvante, como eu – nem tinham que aturar
Timóteo, não o da Bíblia, mas aquele intragável diretor que só tinha palavras
idiotas na ponta da língua.
-0-
Timóteo
se transformou em diretor porque nunca conseguiu ser ator nem teve a coragem de
ser crítico. Por isso sempre tratou com desdém tanto os atores como os críticos,
e somente conseguiu encarnar esta nobre função, naquele único teatro – vejam
bem – por ser o genro do dono, outro estafermo que se dizia empresário teatral,
mas não sabia distinguir entre teatro e circo.
Este,
que se autoproclamava “empresário teatral
Benito Rubaloca” – dizem que espanhol – costumava divulgar as suas
produções com toda força nas páginas de cultura dos diários e semanários locais.
Rubaloca
sentia uma rútila alegria quando via o seu nome estampado nas páginas dos
periódicos, e costumava dizer que seu sonho era ser eternizado no Diário de
Notícias.
Na
época que ora relato ele anunciava com grande estardalhaço – “Produções Rubaloca apresenta O Defunto
Virgem, um clássico da dramaturgia”, que era ambientado numa
fazenda americana do fim do século 19 e exibido no Teatro Aliança, um prédio
reformado que mantinha a aparência e a arquitetura do cinema que fora, sessenta
anos atrás.
No
elenco, sua atriz predileta, Dorotéa Vaughan – nascida Maria dos Anjos Silva –
que se considerava uma musa, mas no fundo não passava de uma canastrona.
Bonita
não era, embora tivesse um certo porte, pois sua altura tinha o tamanho exato do
seu convencimento e, apesar da ainda pouca idade, pois ainda não chegara à casa
dos trinta, utilizava uma maquiagem exagerada que a tornava semelhante a uma
boneca japonesa de porcelana.
Todos
na companhia sabiam que certas coisas proibidas estavam acontecendo entre os
dois, meio escondido e meio às escancaras, mas sabiamente de eximiam de qualquer
comentário. Essas “coisas” justificavam a preferência do tolo Moisés pela
frívola prima-dona, que era elencada como atriz principal apesar de seus poucos
dotes dramáticos, em virtude dos favores pouco artísticos dos quais a senhora
Rubaloca jamais suspeitara.
No
palco, Dorotéa exagerava nos gestos e na impostação como se um texto de Molière
tivesse sido escrito por Sófocles, emitindo agudos vocais tão estridentes e
desagradáveis que sua voz soava como um sistema de som com microfonia, apesar
de todas as nossas apresentações serem acústicas.
Não
sei do timbre da sua voz no silêncio do particular, mas deveria ser do agrado
do velho Rubaloca, que não ligava muito para princípios de fonoaudiologia e
dava preferência a outros atributos, por ser o sátiro sem princípios que era.
Na
peça, Dorotéa desempenhava o papel da mulher de um fazendeiro, a quem trai com um
vendedor de escovas do condado, num drama fetichista de difícil compreensão
para o público, segundo teorizava o autor, um desconhecido à procura de uma
plateia, chamado Eraldo Montalvão.
Felizmente
meu papel nesta peça – eu representava Pavel, a voz da consciência do vendedor
de escovas – se resumia a um monólogo de três minutos, que apesar de exigir um
forte vigor histriônico, pelo menos me reservava ao direto de ser histriônico
sozinho, sem a má companhia da Dorotéa.
Minha
entrada se dava no fim do primeiro ato, quase um entreato, e sua importância na
história era ligar o passado e o presente. Eu não era um personagem, mas um
pensamento, quase um fantasma que servia para lembrar aos circunstantes a
filosófica existência das causas sobre os efeitos.
Minha
atuação se fazia sem a liturgia do drama e sem a emoção dos grandes espetáculos.
Eu
nunca fui, na verdade, muito prestigiado dentro do grupo. Na noite de estreia de
O Defunto
Virgem, quando os artistas se deram as mãos e se desejaram uma sincera “merda!” para augurar boa sorte, no
máximo um ou outro me mandou à merda, o que não é a mesma coisa e tem um efeito
psicologicamente contrário.
Assim,
eu me sentia só, e gostava de ficar só, longe do que eu achava ser a
mediocridade geral.
Eu
me recordo de certa noite, antes do espetáculo, enquanto o público começava a
se acomodar, e eu estava subitamente a sós no camarim, aproveitando para fazer
uma revisão da minha vida.
Seguia
cheio de dúvidas e de receio: aos quarenta e sete anos ainda não sabia ao certo
se desejava realmente ser ator, mas não encontrava uma porta lateral que me
apresentasse alguma outra saída. Era como se eu fosse um viciado que a cada
dose, a cada peça, a cada ato, se visse mais e mais envolvido com uma coisa que
aparentemente lhe dava prazer, mas que talvez no fundo detestasse.
O
espelho, enorme e assustador, mostrava meu rosto macilento apesar ou por causa
da maquilagem pesada, e as palavras do meu monólogo se misturavam na minha
cabeça. Era sem dúvida um verdadeiro milagre que, iniciada a fala inicial, elas
se encaixassem perfeitamente e saíssem da minha boca como uma torrente,
obedecendo às pausas e às exclamações.
Normalmente
eu era aplaudido ao final do monólogo que prefaciava o final do drama, antes
que a história retornasse com a participação de Dorotéa & Cia. Eu tinha a
impressão – ou pelo menos quero crer – que eles não recebiam o mesmo aplauso caloroso
que eu.
-0-
A
arte imita a vida, dizem os poetas. Já os sonhadores acham que a vida imita a
arte.
Talvez
o conceito correto fosse considerar que para certas pessoas vida e arte se
confundem num só amálgama, embora para a grande maioria tanto uma como outra
inexistam completamente.
Para
os néscios, a arte é um bem inalcançável, é um abstrato que jamais será
entendido. Para estes idiotas não existe diferença entre ruído ou música,
rabiscos aleatórios ou pintura, conversa real ou encenação. Nada os faz ter a
percepção de sons harmônicos, nada os faz sentir a emoção das artes plásticas ou
entender a diferença entre realidade e engodo. Para eles não existe pausa, para
eles não existe ilação. Vivem como se não tivessem alma.
Para
estas almas vazias a vida é simplesmente um nascer e vegetar, com a preocupação
primária das coisas básicas para a sobrevivência, sem a concepção de momentos
melhor vividos.
No
entanto, para aqueles que foram tocados pelo condão de Apolo e que se
envolveram na beleza das máscaras do teatro grego e da Commedia dell’Arte, o mundo se abriu desde cedo numa profusão de luzes,
sons, cores e gestos. Cada passo dado, cada etapa percorrida ou cada ciclo
concluído será sempre marcado por uma explosão de arte.
Estes
felizardos respiram arte como se respira o ar, numa associação tão profunda que
a inexistência de uma das alternativas implica no desaparecimento da outra.
Esta
intensa associação só é possível de ser sentida por quem traz a arte nas veias.
Passei
a vida inteira representando para o mundo, meu grande público.
Na
escola, fazia-me de interessado para agradar os mestres, mesmo discordando
deles e por vezes até os desprezando, muitas vezes achando os seus ensinamentos
entediantes e pífios. Em casa, personificava o bom filho para fazer minha mãe
feliz, embora nunca tivesse passado de um vil estroina.
Meu
pai bem que notava a falta de sinceridade no meu comportamento, mas como ele também
tinha algo de podre escondido nas suas ações aparentemente pouco sinceras, ambos
preferíamos esconder as nossas ignomínias para manter incólume a harmonia do
lar.
Uma
espécie de armistício.
Para
os vizinhos eu era o rapaz discreto e contido que não se aventurava em
encrencas. Os pais me confiavam as filhas quando das festas do bairro,
sabedores do caráter errático dos outros jovens e crentes no meu procedimento
impoluto. Os idiotas não sabiam que eu era um ator – principiante, sem dúvida, mas
um ator – e que eles estavam confiando as suas donzelas a um canalha.
O
espelho do camarim me fita.
É
estranho que este sentimento de inutilidade se apossasse de mim bem no momento
em que eu atravessava a minha melhor fase de intérprete.
Casa
cheia três vezes por semana, aplausos benfazejos, e o assédio do público e da
imprensa deveriam me alimentar como um afrodisíaco, mas o máximo que fazia era
manter as minhas defesas em alerta contra algo que eu nunca soube bem o que
é.
Como
um inseto na defensiva.
-0-
Dorotéa,
nascida Maria dos Anjos conforme consta nos implacáveis documentos, me odiava,
talvez por saber que o público preferia os meus entreatos à sua exibição em
tempo integral, e embora se apresentasse como a artista principal da trupe, ela
sempre deixava transparecer sua total insegurança, dentro e fora do palco.
Esta
insegurança se tornou mais evidente após uma tarde de ensaios, quando madame
Rubaloca apareceu sem avisar, flagrando a atriz e o señor Benito numa situação profundamente embaraçosa: embora não
fosse o diretor de cena, Benito Rubaloca enlaçava a prima-dona nos braços para
mostrar ao ator que interpretava o vendedor de escovas como a cena romântica
deveria se desenvolver, e a coisa parecia real demais para ser encenação.
Timóteo se limitava a ajustar o posicionamento dos atores no palco, e parecia
ligeiramente incomodado com a situação.
Mas
Timóteo era o antidiretor por excelência. A sua presença e as suas orientações
eram perfeitamente dispensáveis na medida em que ele não conseguia passar para o
elenco a emoção desejada pela trama. Felizmente para todos, Montalvão – o autor
– esteve pessoalmente dirigindo a peça nas três primeiras semanas antes da
primeira exibição, e transmitiu para os artistas todas as filigranas e
trejeitos necessários para um bom desempenho no palco.
Faltam
a Timóteo a postura e a afetação dos grandes mestres da encenação. Quem o via
circulando pelo palco e pelos bastidores tomá-lo-ia por um mero assistente de
produção, tal a sua preocupação com os detalhes pouco significativos do
espetáculo e a sua falta de preocupação com a dramaturgia que o enredo exigia.
Acho
estranho que com todos estes problemas o espetáculo conseguisse lotar o Teatro
Aliança nas suas três exibições semanais, o que talvez sirva de crédito para o
jovem Montalvão. E mais estranho ainda é que os aplausos fossem quentes como a
luz, como diz o lirismo da poesia, hora em que todos os participantes se davam
as mãos hipocritamente para fazer vênia a um público tão generoso.
A
temporada seguia com relativo sucesso apesar dos desacertos internos, e o bonde
parecia rolar direitinho sobre os trilhos até madame Rubaloca aparecer novamente
de surpresa numa outra tarde de ensaios e me perguntar o que estaria
acontecendo entre o pérfido Benito e a falsa Dorotéa.
A
pergunta veio de supetão, e me pegou de surpresa.
Na
falta de saber como proceder, comecei a gaguejar, coisa inadmissível para um
declamador de escol, como eu. Pela primeira vez na vida – agora penso que
talvez propositalmente, traído pelo inconsciente – não fui capaz de desempenhar
meu papel de ator à altura da minha capacidade. Pela primeira vez não consegui
ser convincente, e meu olhar hesitante traiu a resposta mentirosa que seria adequada
para o momento.
Deve
ter falado mais alto o meu insuspeito mau caráter e a possibilidade de colocar
um fim nas veleidades de Dorotéa e seu orgulho irracional, para de repente me
colocar na pele de um Iago e incendiar de dúvidas a cabeça
conturbada, não de Otelo, mas de dona Ignes Rubaloca, dizendo coisas sem dizer,
como se estivesse querendo proteger o safado do seu marido, mas encontrando as
palavras corretas para envenenar a sua alma.
Então,
finalmente percebi ter reencontrado o fabuloso ator que mora em mim. Com a
minha soberba e dissimulada atuação eu iria provocar um escândalo de adoráveis
proporções, funcionando como uma vingança perfeita para as minhas desditas
dentro da companhia.
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A
exibição d’O Defunto Virgem foi repentinamente interrompida por três tiros de
revólver disparados no peito do desditoso Benito Rubaloca por sua mulher Ignes
Rubaloca num acesso de ciúme, diante de meia dúzia de testemunhas, conforme
consta nas manchetes dos jornais do dia seguinte e no boletim de ocorrência
lavrado na delegacia horas depois do crime.
Dorotéa
Vaughan trancou-se no banheiro e só foi retirada de lá quatro horas depois pelo
servente do teatro, muito lívida e balbuciante, após a polícia ter levado madame
Rubaloca – que depois do terceiro tiro não se preocupou em se livrar do
flagrante e prostrou-se numa cadeira esperando pelo seu inexorável destino.
Dias
depois, passado o susto, Dorotéa aproveitou para tirar vantagem do desditoso
episódio, se expondo em um programa da televisão marrom e faturando em uma
atuação num filme B o equivalente a dois anos de apresentação no Teatro Aliança.
No filme, sua beleza estática e sua falta de talento não chegaram a ser problema.
Timóteo
saiu de circulação, e a última vez que foi visto vendia frutas na feira, também
sem exibir o menor talento.
Rubaloca,
o pivô da questão, teve enfim seu nome eternizado no Diário de Notícias.
Quanto
a mim, desde então sou um mais um personagem da vida real à procura de uma persona no palco, saudoso do camarim que
guarda aquele silêncio que antecede o espetáculo e daquele calafrio que antecipa
a entrada triunfante no palco.
E
à espera de um Eraldo Montalvão para escrever as minhas falas, na falta de um Tennessee
Williams.
2013