A IRA
(Excerto)
Tudo andava às mil maravilhas naquela
cidadezinha no sul da França, Saint Jean des Canards. Monsieur Patou caminhando
placidamente pela rua arborizada, as flores florindo na primavera, o sol resplandecente
furando as copas das árvores, os passarinhos gorjeando em francês e alguns
Jacques, Jean-Pierres e Charlottes se cumprimentando e se sorrindo.
O vendedor de sorvetes oferece à criança
um copinho com “crème des pommes” enquanto ao fundo a jovem Geneviève tem um “frisson”
ao cruzar seu olhar com o de Laurent, um vizinho tímido e agradável que falava
com os olhos tudo aquilo que os lábios não ousavam pronunciar, como dizia o
poeta.
Monsieur Patou consulta o seu relógio,
aqueles de bolso, a corrente fazendo um
arco por cima da virilha, é quase hora do almoço, vamos provar os quitutes
preparados por Madeleine, sua mulher há mais de trinta anos, exímia cozinheira,
já antevendo o assado de vitela com batatas coradas, regadas ao bom vinho “du
Rhône”.
Madeleine termina de ajeitar a mesa, o
avental impecavelmente engomado servindo de adorno ao vestido caseiro, trazendo
no rosto a expressão de um artista a contemplar a sua mais recente obra prima,
a mesa posta e uma terrina de sopa ocupando o centro.
Monsieur Patou entra pela porta da sala,
dirige-se à mesa, beija afetuosamente Madeleine na testa e pergunta – “o que
minha patinha fez para o almoço de hoje?” – ao que Madeleine responde – “sopa
de quiabo” – “sopa de quiabo?!” – exclama Patou estupefato – “mas Joujou” (Joujou
é Madeleine, na intimidade), “você sabe que eu odeio sopa de quiabo!” – “mas
sopa de quiabo é tão bom!...” – e segue por aí afora a discussão sobre as
qualidades nutritivas do quiabo, até que Patou se deu por vencido e sentou-se à
mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo com vinho ‘du Rhone’, bah!”
Mas a primavera estava linda, Patou
amava Joujou e ainda mais com essa linguiça cortada aos pedaços, e a batata, e
o tempero de Joujou... sem contar que ele já havia lido num velho almanaque que
quiabo era um poderoso afrodisíaco!...
Os dois sentados à mesa, a toalha xadrez
já um pouco machucada pelo uso, a terrina fumegando, os pratos decorados e o
relógio da sala batendo meio-dia, o sol penetrando pelas frestas da janela e as
nuvens negras do desacordo se desvanecendo no ar.
Patou e Madeleine Joujou formavam um
casal feliz, como feliz se sentia toda a humanidade concentrada na pequena
Saint Jean des Canards naquele dia maravilhoso.
Monsieur Patou dá a primeira colherada,
dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo branco que tem
preso ao pescoço e, de repente, arregala os olhos.
“Uma mosca! Uma mosca na minha sopa!”
O pequeno díptero, já morto e com as pernas
arreganhadas flutuava de costas ao lado de um pedaço de tomate e de uma rodela
de quiabo, preso à sua viscosidade como se esta fosse uma teia de aranha
gelatinosa.
Patou se levanta num solavanco, arranca
o guardanapo do pescoço e ainda gritando – “uma mosca! uma mosca!” – entorna o
prato com sopa, mosca e demais pertences por cima da mesa, borrifando o líquido
quente e pegajoso sobre o avental bem cuidado de Joujou, que exclama “Mon
Dieu!” e, ato contínuo, destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro
“Rhône” safra 1982, uma das melhores dos últimos vinte anos, de acordo com os
enólogos.
Está aberto o diálogo franco, franco em
todos os sentidos.
Os passarinhos já estão se bicando por
conta de um verme encontrado no meio do gramado, uma cumulus-nimbus tolda o
brilho do sol, Jean-Pierre esbarra em Jacques e ambos trocam insultos,
Charlotte ouve algumas palavras mal-intencionadas, pensa que é com ela e acerta
a cabeça do sorveteiro com um portentoso golpe de guarda-chuva. Ao ver a cena, a
criança morde a língua e chora, toda lambuzada de sorvete, e Geneviève planta
um tapa na cara do jovem Laurent que enfim desencabulara e fizera propostas um
tanto arrojadas para a sua condição de donzela. Laurent vira uma fera e agride
a mocinha na maior baixaria.
Todo mundo se ofende e se desrespeita,
pedras são atiradas a esmo, chega a polícia, bombas de gás, chega o reforço do
exército, e por fim explode a bomba atômica.
-0-0-0-
Tirando uma ou outra incorreção semântica,
estas cenas foram extraídas do filme “Les sept péchés capitaux” – episódio “La
colère” – mostrando uma ira à francesa, já bem familiarizada com as devastações
que a guerra pode trazer.
Como nós aqui desde os idos da Guerra do
Paraguai não somos brindados com o inimigo à porta de casa, nossa ira
normalmente explode por questões de somenos importância ou pelo menos sem a
mesma gravidade, e as nossas asas do rancor se estendem apenas até onde alcança
a nossa rotina do dia-a-dia.
Ira em francês é mais “chic”.