quarta-feira, 22 de abril de 2020






ÁLBUM DE FORMATURA
(Excerto)

No princípio, Ícaro não havia percebido que existia alguma coisa de errado com aquela fotografia. Mas não demorou muito para ele ter uma estranha sensação de que existia um inexplicável vazio, uma suspeitosa ausência, a falta de um certo algo.
Sentiu um ligeiro desconforto ao mirar aquelas faces de trinta anos atrás quando jovens promissores e sorridentes posavam com o diploma nas mãos. Pacientemente, perscrutou todos os detalhes e resolveu contar todos os formandos – um, dois, três, quatro... quinze, dezesseis, dezessete... vinte e oito, vinte e nove, trinta.
Trinta formandos, isto está errado, acho que eram trinta e dois. Contou e recontou: trinta.
Resolveu ligar para o Gastão, que fazia parte do grupo e com quem ainda mantinha a antiga amizade, para confirmar – e Gastão confirmou: foram trinta e dois formandos.
Voltou a olhar para a foto, viu a sua própria imagem rejuvenescida e também a do Gastão, que já mostrava uma calva incipiente, demonstrando um futuro de poucos cabelos.
Ligou novamente, pediu para Gastão apanhar o seu álbum e foram conferindo um a um. Gastão ia falando e Ícaro verificando – Jacinto, Arlete, Tomé, Pereira, Ícaro, Gastão, Boanerges, Lindolfo, Ruth... Rubinho, Arthur, Telma, Martinho, Cícero, Josué, Berenice...
Ícaro deu um salto na poltrona. Martinho e Josué não estavam na foto, o que provocava aquela sensação de ausência que ele havia sentido.  
Quando questionou os nomes, teve de Gastão a notícia que Josué havia falecido há cerca de três anos e Martinho há menos de um mês.
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Agastado com o inexplicável, Ícaro jogou o álbum no fundo de uma gaveta e resolveu esquecer do assunto.
Passaram-se alguns meses quando ele recebeu um telefonema de Gastão, para informar que o colega Lindolfo havia morrido num acidente numa estrada secundária do Rio de Janeiro. Alguém na contra-mão, parece.
A notícia lhe trouxe o álbum à memória.
Mesmo sem vontade, foi impelido a buscá-lo no recesso da gaveta. Foi direto para a foto e constatou aquilo que temia: Lindolfo não estava mais entre Boanerges e Ruth, deixando um vazio que agora lhe parecia bastante claro.  
O álbum lhe queimava as mãos.
Pensou em ligar para Gastão mas desistiu nos primeiros números. Aquilo era aterrorizante e não fazia sentido, tinha que pensar melhor no que fazer. Aparentemente, dado o caso do Martinho e Josué, a foto em poder do Gastão não deveria ter sofrido nenhuma alteração.
Como Gastão estava morando a mil quilômetros de distância, era impossível lhe mostrar o álbum como prova do estranho fenômeno. Dito pelo telefone, Gastão iria pensar que ele havia enlouquecido ou estava bêbado.
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Certa noite, Ícaro acordou se sentindo muito mal. Dor no peito, falta de ar, tontura. Tomou um gole de água, foi até a sala, sentou-se na poltrona e tentou descansar. Não era a primeira vez que sentia aquele problema, mas estava adiando a visita ao médico como se temesse pelo pior. No mínimo seria aconselhado a deixar de fumar.
Acendeu um cigarro para espantar os demônios, quando se deparou com o álbum, que fora imprudentemente deixado na mesinha de centro. Meio relutante, esticou o braço e abriu na página da infausta foto. Sua cara sorridente não passava agora de uma sombra borrada entre Pereira e Gastão.
Sua imagem estava desaparecendo lentamente...




segunda-feira, 20 de abril de 2020





HISTÓRIAS DE PLÁGIOS
Augusto Pellegrini
Corria o ano de 1929. Era uma noite de fevereiro, e o compositor Noel Rosa estava muito zangado no seu quarto, pois sua mãe havia escondido toda a sua roupa para evitar que ele saísse para a boemia.
Para desabafar, o poeta compôs um samba, ao qual deu o título de “Com que roupa?” (“... com que roupa que eu vou / pro samba que você me convidou?”), que viria a se transformar no maior sucesso daquele ano no Rio de Janeiro.
Dias depois, devidamente vestido, ele levou o samba para a apreciação do maestro Homero Dorneles, seu amigo.
Quando Noel começou a cantar – “Agora vou mudar minha conduta...” – o maestro, sentado ao piano, o interrompeu e falou:
“Noel, este samba não pode ser levado a público. Você acabou de compor o Hino Nacional Brasileiro!...”
De fato, a melodia e os acordes do samba eram exatamente aqueles que haviam sido feitos um século antes por Francisco Manuel da Silva.
Homero deu uma retocada na melodia e a música seguiu sua trajetória ilustre sem Noel correr o risco de ir parar nas masmorras de Getúlio Vargas.
Esta é uma das muitas histórias de plágio de música que se ouvem por aí.
Muitas vezes o plágio é inconsciente, pois o autor tem arquivado na memória alguma codificação musical que aflora à sua mente sem que ele se aperceba de que se trata de algo já existente. Ele pode até ter a impressão de que alguma coisa lhe soa familiar, mas tem a firme convicção de que se trata de uma criação sua. Deve ter acontecido com Noel.
Outras vezes o plágio é consciente.
Tom Jobim admite que os compassos iniciais do “Samba de Uma Nota só” (“Eis aqui este sambinha / feito de uma nota só / outras notas vão entrar / mas a base é uma só”) foram compostos tendo como base a introdução pouco conhecida de “Night and Day”, de Cole Porter (“Like the beat beat beat of the tom-tom / when the jungle shadows fall / like the tick tick tock of the stately clock / as it stands against the wall”).
Na verdade, Tom era um pesquisador musical, e buscava nas raízes da música, principalmente a brasileira, inspiração para seus temas ecológicos e campestres e nunca fugiu ao debate: ele afirmava que suas colocações incidentais não eram plágio, mas sim a prestação de uma homenagem.
Talvez seja esta a explicação pelo tema e para a divisão sincopada da música “Águas de Março” (“É pau, é pedra / é o fim do caminho / é um resto de toco / é um pouco sozinho”) que parece ter vindo  de “Água do Céu”, (“ É chuva de Deus / é chuva abençoada / é água divina / é alma lavada”, de J.B. de Carvalho, gravada em 1956 pela cantora Leny Eversong), que por sua vez fora adaptada de um ponto de macumba de 1933 – “É pau, é pedra / é seixo miúdo / roda baiana / por cima de tudo”.
O plágio, consciente ou não, acaba sendo alvo de processos judiciais que não raro terminam com o perdão do compositor que se diz lesado mediante o pagamento de polpuda multa e fica tudo por isso mesmo.
Não foi apenas Jobim que passou por essa saia justa, embora nunca tenha sido processado. A história relata diversos casos de plágios (comprovados ou não) que acabaram gerando grandes pendengas jurídicas.  
Um dos casos mais famosos envolve dois roqueiros do primeiro mundo.
John Lennon teve que fazer um acordo extrajudicial com Chuck Berry (o teor do acordo permanece em segredo até hoje) por causa da melodia de “Come Together” (“Here come old flat top, he come / groovin’ up slowly he got /  joo-joo eyeballs he want / holly roller he got / hair down to his knee/ got to be a joker, he just do what he please”) muito semelhante à “You Can’t Catch Me”, de Berry (“I bought a brand-new air-mobile / it was custom made / it was a Flight DeVille / with a powerful motor / and some hideaway wings / push it on the button and you will hear her sing”).
Outro ex-beatle, George Harrison, também se viu denunciado ao compor “My Sweet Lord” (“My sweet Lord / hm my Lord / my sweet Lord / hm my Lord / I really want to see you / really want to be with you / really want to see you Lord / but it takes so long, my Lord”) , lançada em 1970, acusado de ter plagiado a música “He’s So Fine” (“He’s so fine / wish he were mine / that handsome boy over there / the one with the wavy hair / I don’t know how I’m gonna do it / but I’m gonna make him mine / the envy of all the girls / it’s just a matter of time”), gravada em 1962 por um grupo feminino chamado The Chiffons.
Harrison jamais admitiu o plágio, mas mesmo assim teve que pagar para a ABKO Music, detentora dos direitos de “He’s So Fine”, composta por Ronald Mack, cerca de 580 mil dólares para que o processo fosse arquivado.
A música “Surfin’ USA”, sucesso dos Beach Boys,  era praticamente uma cópia de “Sweet Little Sixteen”, de Chuck Berry. Acusados de plágio, Carl Wilson e Mike Love – compositores de “Surfin’ USA” – resolveram o problema simplesmente adicionando o nome de Chuck Berry nos créditos da composição.  
O saxofonista Charlie Parker não tinha esses escrúpulos. Ele apanhava músicas consagradas do cancioneiro americano e as transformava fazendo releituras sofisticadas no estilo bebop, e assumia a paternidade simplesmente mudando o seu título. Mas fazia isto às claras, e nunca teve problemas com reclamantes na justiça.
Assim, “How High the Moon” (de Morgan Lewis) serviu como base para a sua “Ornithology”, “Indiana” (de James F.Hanley) inspirou “Donna Lee”, “Honeysuckle Rose “ (de Fats Domino) gerou “Scrapple from the Apple”, “Cherokee” (de Ray Noble) serviu de mote para “Ko-Ko” e “I Got Rhythm” (de George Gershwin) deu origem a “Confirmation”, entre outras   
O máximo da homenagem, porém, parece ter sido aquela prestada pelos americanos George Forrest e Robert Wright com a canção “Stranger in Paradise” composta em 1953 para o filme “Kismet” (“Take my hand / I’m a stranger in Paradise / all lost in a wonderland / a stranger in Paradise / if I stand starry-eyed / that’s a danger in Paradise / for mortals who stand beside an angel like you ”), cuja melodia retratando esta primeira parte foi inteiramente copiada das “Polovtsian Dances” (“Gliding Dance of the Maidens”), da ópera “Prince Igor” composta pelo russo Alexander Borodin.
Muitos músicos estão envolvidos neste imbróglio, porque Borodin morreu em 1887 deixando a música inacabada, cabendo a Nikolai Rimsky-Korsakov e a Alexander Glazunov a sua finalização em 1890.
Como se vê, plágio também é cultura.