ÁLBUM DE FORMATURA
(Excerto)
No princípio, Ícaro não havia percebido
que existia alguma coisa de errado com aquela fotografia. Mas não demorou muito
para ele ter uma estranha sensação de que existia um inexplicável vazio, uma
suspeitosa ausência, a falta de um certo algo.
Sentiu um ligeiro desconforto ao mirar
aquelas faces de trinta anos atrás quando jovens promissores e sorridentes
posavam com o diploma nas mãos. Pacientemente, perscrutou todos os detalhes e
resolveu contar todos os formandos – um, dois, três, quatro... quinze, dezesseis,
dezessete... vinte e oito, vinte e nove, trinta.
Trinta formandos, isto está errado, acho
que eram trinta e dois. Contou e recontou: trinta.
Resolveu ligar para o Gastão, que fazia
parte do grupo e com quem ainda mantinha a antiga amizade, para confirmar – e Gastão
confirmou: foram trinta e dois formandos.
Voltou a olhar para a foto, viu a sua própria
imagem rejuvenescida e também a do Gastão, que já mostrava uma calva incipiente,
demonstrando um futuro de poucos cabelos.
Ligou novamente, pediu para Gastão apanhar
o seu álbum e foram conferindo um a um. Gastão ia falando e Ícaro verificando –
Jacinto, Arlete, Tomé, Pereira, Ícaro, Gastão, Boanerges, Lindolfo, Ruth...
Rubinho, Arthur, Telma, Martinho, Cícero, Josué, Berenice...
Ícaro deu um salto na poltrona. Martinho
e Josué não estavam na foto, o que provocava aquela sensação de ausência que
ele havia sentido.
Quando questionou os nomes, teve de
Gastão a notícia que Josué havia falecido há cerca de três anos e Martinho há
menos de um mês.
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Agastado com o inexplicável, Ícaro jogou
o álbum no fundo de uma gaveta e resolveu esquecer do assunto.
Passaram-se alguns meses quando ele
recebeu um telefonema de Gastão, para informar que o colega Lindolfo havia
morrido num acidente numa estrada secundária do Rio de Janeiro. Alguém na
contra-mão, parece.
A notícia lhe trouxe o álbum à memória.
Mesmo sem vontade, foi impelido a buscá-lo
no recesso da gaveta. Foi direto para a foto e constatou aquilo que temia:
Lindolfo não estava mais entre Boanerges e Ruth, deixando um vazio que agora lhe
parecia bastante claro.
O álbum lhe queimava as mãos.
Pensou em ligar para Gastão mas desistiu
nos primeiros números. Aquilo era aterrorizante e não fazia sentido, tinha que
pensar melhor no que fazer. Aparentemente, dado o caso do Martinho e Josué, a
foto em poder do Gastão não deveria ter sofrido nenhuma alteração.
Como Gastão estava morando a mil
quilômetros de distância, era impossível lhe mostrar o álbum como prova do
estranho fenômeno. Dito pelo telefone, Gastão iria pensar que ele havia enlouquecido
ou estava bêbado.
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Certa noite, Ícaro acordou se sentindo
muito mal. Dor no peito, falta de ar, tontura. Tomou um gole de água, foi até a
sala, sentou-se na poltrona e tentou descansar. Não era a primeira vez que
sentia aquele problema, mas estava adiando a visita ao médico como se temesse
pelo pior. No mínimo seria aconselhado a deixar de fumar.
Acendeu um cigarro para espantar os demônios,
quando se deparou com o álbum, que fora imprudentemente deixado na mesinha de
centro. Meio relutante, esticou o braço e abriu na página da infausta foto. Sua
cara sorridente não passava agora de uma sombra borrada entre Pereira e Gastão.
Sua imagem estava desaparecendo lentamente...