AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)
“Senhor Ellington, o que o senhor acha do
racismo na América?”
Ellington não
respondeu de imediato. Essa era uma reação própria da sua personalidade; ele
sempre procurava pesar bem as suas palavras, ao invés de emiti-las num impulso impensado,
porque sabia que as suas palavras tinham peso.
Depois de meditar
alguns instantes, olhando para o teto, ele respondeu:
“Bem, caro Dwight, racismo é uma palavra feia,
que fica ainda mais feia na medida em que você tem que lidar com ela. O racismo
cria uma situação na qual você precisa aprender a conviver com ela. A intolerância
racial é cruel e bastante ostensiva.
No entanto, ela normalmente não chega a ser fisicamente agressiva, exceto em
certas ocasiões”.
O maestro fez uma
pausa e respirou longamente. Havia dado suas últimas baforadas no cigarro com
piteira, e os seus dedos não mais deslizavam sobre o teclado, as mãos agora repousavam
sobre os joelhos.
“Uma das maneiras
de se defender é ignorar este tipo de
insulto e provar o nosso valor para nós mesmos e para aqueles que não querem
admitir a igualdade de direitos, seja em forma de música, seja por meio de outras
ações. Mas eu acho que estas mudanças devem vir naturalmente, e não através da
violência ou de atitudes mais drásticas”.
Dwight Spencer não
desistira de captar a alma de Duke, e a sua entrevista agora tinha a intenção
de provocar o maestro.
“Apesar de ser famoso, o senhor se sente
discriminado, por ser negro?”. A pergunta era especialmente delicada porque
Dwight, filho de irlandeses, era um homem branco de pele rosada e cabelos cor
de milho, bem do tipo dos seus antepassados.
Ellington sempre
ouvira este tipo de pergunta com serenidade. Outros músicos negros poderiam
considerá-la uma provocação, mas ele via no repórter apenas uma forma de
abordagem que conduziria a conversa a patamares mais sérios.
“Muitas vezes, em muitos lugares, eu e os
meus músicos fomos tratados como eles tratam os negros, isto é, nos reservando
a porta de serviço, nos confinando em hotéis de terceira classe e nos tratando
como estranhos mesmo quando estávamos no nosso território, como por exemplo o Cotton Club, em pleno Harlem”. Duke
apanhou outro cigarro, acendeu pacientemente, soltou uma baforada para cima e,
sem olhar para o repórter, que permanecia mudo, na expectativa de novas
informações, continuou.
“Houve uma época em que os gângsters tomaram
conta do Cotton Club. Eles dominaram o lugar e chegaram ao cúmulo de reservar
as melhores mesas para a clientela branca que vinha do outro lado da cidade,
deixando para os negros pouco ou nenhum espaço para assistir a banda de negros
que mais fazia sucesso em Nova York – a minha. Não havia reação por causa do
medo – afinal, eles tinham a lei do seu lado, apesar de serem fora-da-lei”.
Dwight Spencer já
ouvira esta história de outros músicos, que diziam se sentir como bichos no
zoológico porque, apesar de serem admirados e aplaudidos pelos visitantes,
muitas vezes não passavam de animais treinados para o entretenimento de um
punhado de pessoas que apenas buscavam se divertir sem se envolver com a
música. Não era isto, porém, que ele esperava ouvir da mente privilegiada do
Duke.
“E o senhor nunca reagiu?” – a pergunta
tinha a intenção de espicaçar o amor-próprio do maestro.
“Eu reagia, sim. Cada vez que eu me sentia
discriminado eu me lembrava da minha mãe e dos seus conselhos. Cada vez que eu
me sentia indignado, eu me sentava ao piano e compunha um blues, ou uma música
cheia de blues. Com isso, já compus mais de duas mil diferentes melodias...”.
As respostas
imprevisíveis de Duke sempre colocavam Dwight numa situação defensiva. “É
melhor deixar de lado as suas impressões pessoais” – pensou o repórter – “e
procurar saber um pouco mais a respeito da sua música”.
“O senhor considera a sua música dissonante?”.
“Minha música não é dissonante” –
respondeu Ellington – “dissonante é o
estilo de vida americano, onde os negros são colocados à margem do sistema,
embora, afinal, façam parte do sistema. Isto é ser dissonante. Minha música é assertiva,
e tem a intenção de derrubar barreiras
para unir as pessoas”.
Dwight remexeu-se
em sua cadeira, dando a entender que estava ansioso para fazer uma pergunta.
Sorriu, e questionou, abruptamente:
“Qual a maior frustração da sua carreira?”.
O repórter era um
irlandês durão, e não temia a fama de “durão” que vinha do outro lado.
Ellington também
sorriu, e pela primeira vez encarou o jornalista. Depois alargou o seu sorriso,
que por pouco não resultou numa gostosa gargalhada.
“Você nem imagina!”. Aguardou alguns
instantes para criar um clima e arrematou – “A minha grande frustração foi Louis Armstrong!”.
“Como assim?” – espantou-se o repórter.
“Armstrong foi o maior músico que eu conheci.
Se é que o jazz possui um Bach, Armstrong é o Bach do jazz. É também o
Shakespeare e o Dante. E o Michelangelo. Ele é tudo o que o jazz tem de
notável. Juntos, poderíamos ter feito muita coisa boa, mas os nossos caminhos
nunca se cruzaram devidamente”.
Ellington se
levantou e começou a caminhar lentamente pelo estúdio. Enquanto caminhava, indo
e vindo da parede para o piano e de volta para a parede, ele exibia um
semblante iluminado por boas lembranças.
“Lá pelos 30, não me lembro exatamente o ano,
Louie realizou um único concerto com a minha orquestra. Isto aconteceu em
Chicago, e o encontro foi arranjado pelo meu empresário e parceiro na época, Irving Mills”.
Dwight Spencer
olhava fascinado. Estava conseguindo tirar o maestro da sua casca, e
seguramente ouvindo uma história jamais contada anteriormente.
“O encontro foi divino. Tudo feito meio de
improviso, você entende, e Armstrong tocou uma parte que havia sido escrita
para Rex Stewart, um dos trompetistas da minha orquestra, e deixou todos literalmente encantados”.
Duke sentou-se ao
piano novamente e tentou repetir o “chorus”,
ainda um pouco inflamado com a lembrança. Depois arrefeceu.
“É uma pena que tenha durado tão pouco...”
– completou ele, falando para si mesmo, de volta ao passado. Então silenciou e
ficou pensativo.
“Talvez eu pudesse ter elevado a carreira de
Louie para alturas inimagináveis, se
é que dá para imaginar que ele pudesse ter ido ainda mais alto...”
De fato, entre
outras coisas, Duke Ellington escreveu excelentes peças especialmente para o
trompete, como “Trumpet In Spades” ou “Boy Meets Horn” – feitas para Rex
Stewart – ou “Concerto For Cootie” (que mais tarde recebeu um novo arranjo e o
nome de “Do Nothing Til’ You Hear From Me”) ou “Echoes Of Harlem” – todas compostas
para Cootie Williams.
“Tenho certeza que se eu escrevesse algumas
músicas para Armstrong, ele teria feito concertos maravilhosos ao lado da minha
orquestra. As nossas apresentações seriam sem dúvida algo para entrar na história.
Mas devido aos contratos que ele mantinha com empresários, editores e
gravadoras, Louie infelizmente estava mais envolvido com o show business e com
a gravação de músicas menos representativas, como “Shoe-Shine Boy”, “The
Skeleton In The Closet” ou “Jeepers Creepers”, do que em entrar para a história”.
Ellington olhou
novamente para o alto, como se o teto branco e sem vida pudesse ajudá-lo a
evocar as suas lembranças.
“Em 1945, a revista Esquire deu a mim e a ele
o prêmio de melhor do ano nas nossas respectivas categorias e, durante a festa
de premiação, a gente teve a oportunidade de tocar num breve encontro com
outros músicos também premiados, numa orquestra formada às pressas que eles têm
o hábito de chamar de “All Stars”.
Infelizmente, parece não haver nenhum registro deste evento”.
Quando
Dwight Spencer saiu do estúdio já era noite alta.
Ele
havia feito a mais estranha entrevista da sua vida, pois as suas perguntas não
raro tinham ficado no ar, e ele não tinha conseguido anotar quase nada das
declarações do maestro, embora mantivesse o espírito da conversa vivo e aceso
dentro da sua cabeça.
Com
certeza, o resultado do “tête-a-tête”
não se transformaria naquela reportagem chavão tipo “pergunta e resposta”,
sonho de consumo das revistas e jornais para extraírem e exibirem as vísceras
das personalidades entrevistadas.
Mas,
com certeza, a impressão deixada por Ellington e seus comentários inesperados
dariam a Dwight a oportunidade de escrever não uma reportagem, mas uma crônica,
ou até um livro, que colocaria a biografia num segundo plano e se importaria em
realçar realmente o âmago do entrevistado.