sábado, 25 de julho de 2020





COISA LINDA
(Samba de Augusto Pellegrini e Nelson Gengo)

Ai, coisa linda de doer
De sentir os seus abraços
Coisa linda de morrer
Coisa linda!
Ai, coisa linda de doer
De sentir os seus abraços
Coisa linda de morrer

Quando passou coisa linda
Na frente da minha calçada
Meu compasso se alterou
Em cada passo que ela dava
O sol da tarde suspirou
E perdeu o seu calor
Trouxe a noite em cada esquina
Pra refrescar o nosso amor

Coisa linda!

1979






AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 6 – A EXPANSÃO MUNDIAL DO SWING

De acordo com declaração feita por um porta-voz cultural do Consulado Geral dos Estados Unidos durante uma palestra ministrada no Rio de Janeiro na década de 1980, “A história da música popular dos Estados Unidos da América é uma tapeçaria musical rica e variada. Blues, jazz, swing, country, soul, folk, bluegrass, rock and roll, rhythm & blues, gospel, jazz-rock, funk, hip-hop e rap – todos estes estilos se espalharam pelo mundo levando alegria e consolo a um sem número de pessoas. A maior parte dessas músicas evoluiu a partir de uma raiz comum do blues – que, por sua vez, tem raízes nos cantos dos escravos negros do sul dos Estados Unidos, assim como na música da África”.
Para que o leitor entenda melhor este enredo, a partir dos antigos field hollers (trabalhadores que entoavam cantos com gritos e alteração no ritmo durante a execução do trabalho), das work songs (canções entoadas em um beat constante por trabalhadores braçais), e do primitive blues (canções de lamento também conhecidas como folk blues), foram surgindo outros tipos de blues, como os antigos country blues (ou rural blues),  archaic blues e cajun blues. Todas essas correntes se originaram na época do trabalho escravo e se desenvolveram depois da Guerra Civil (terminada em 1865) para se consolidar no blues do delta do Mississipi, representado por W.C.Handy, Charley Patton, Willie Brown, Blind Willie Johnson e Robert Johnson, entre outros, e mais tarde no blues de Chicago, com Muddy Waters, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, John Lee Hooker e B.B.King. Mas o blues adquiriu a sua característica urbana no início do século vinte, quando foram experimentadas incursões blueseiras mais modernas, fazendo surgir o classical blues (da forma como ele era interpretado pelas “cantoras de blues” – Gertrude “Ma” Rainey, Mamie Smith, Bessie Smith, Lucille Hegamin, Ethel Waters, Alberta Hunter, Edith Wilson, e outras) e uma variante que conduziu ao boogie-woogie durante os anos 1920-1930 (com os pianistas Jimmy Yancey, Pete Johnson, Meade Lux Lewis, Albert Ammons e outros). A seguir, na década de 1940, surgiu o rhythm & blues, uma espécie de precursor do rock and roll, pontificando Louis Jordan, Big Joe Turner, Jimmy Whiterspoon, Roy Brown, Billy Wright, Wynonie Harris e Paul Williams, entre outros.
Anos depois, a música negra deu um grande salto, abraçada que foi pela gravadora Motown, fundada por Barry Gordy em 1959 com o nome de Tamla Records e fazendo crescer o soul nos anos 1960 com um catálogo congregando artistas dos mais respeitáveis – The Four Tops, Marv Johnson, Marvin Gaye, Aretha Franklin, Stevie Wonder, James Brown, Isaac Hayes, The Isley Brothers, Commodores, Diana Ross & The Supremes, The Temptations, The Jackson Five, Billy Paul, Otis Redding e outros mais – para depois desembocar no funk e nos ritmos dos guetos nos anos 1970 e 1980 e no hip-hop e rap dos anos 1990 e 2000.
As modificações impostas no ragtime pelos pianistas do jazz de Nova Orleans provocaram por sua vez entre 1900 e 1917 o aparecimento do stomp de Nova Orleans, também chamado por alguns estudiosos de primitive jazz ou traditional jazz, que se transformou entre 1917 e 1926 no dixieland e no estilo  chicago, também conhecidos como oldtime jazz. Os músicos deste período – Buddy Bolden, Jelly Roll Morton, Freddie Keppard, Joe King Oliver, Louis Armstrong, Kid Ory e tantos outros – são historicamente os verdadeiros mentores de todo o jazz que viria dali pra frente.
Mais tarde – de 1927 a 1934 – aconteceu o período denominado pre-classical, com o abrandamento do jazz tradicional e o surgimento do swing, ao qual foi atrelado o estilo kansas city.
Graças a figuras como Louis Armstrong, Roy Eldridge e Coleman Hawkins, o jazz tradicional vivenciou uma espécie de renascimento no período de 1935 a 1945 e foi cultivado ao lado do swing, período em que os estudiosos chamam de classical jazz.
Ao mesmo tempo, no início dos anos 1940, chegava o bebop, dando início a um outro período, conhecido como modern jazz. Tudo sem prejuízo do swing que continuaria se desenvolvendo até meados dos anos 1950.
Desta forma, todas as tendências provenientes do blues e do ragtime propiciaram o crescimento desta frondosa árvore musical, que vai do stomp ao swing e do swing ao  bebop e seus derivados – cool jazz, hard bop, west coast, east coast – seguindo com o progressive, o third-stream, o mainstream, o funky e o free jazz, e caminhando logo depois para diversas outras direções, com derivativos para o smooth jazz, o latin jazz, o jazz fusion, o ska jazz, o acid jazz, a world music e todas as experiências surgidas no século vinte.
É estranho que um país com toda esta diversidade musical tivesse que construir a sua história a partir do nada, contando apenas com o que lhe fora passado pelos colonizadores e pelos escravos trazidos do continente africano, posto que a matéria prima local – os nativos do território americano – praticamente em nada contribuiu para a sua consolidação musical.
Partindo de pontos isolados, a música americana começou a se moldar definitivamente a partir da metade do século dezenove, principalmente através da disseminação do blues primitivo, quando ele abandonou as origens dos campos da plantação de algodão e das construções das ferrovias para se fixar nas cidades. A urbanização do blues contribuiu para tirá-lo do anonimato junto com seus cantores e foi um passo decisivo para que houvesse um contato definitivo entre o blues e os músicos que tocavam nos salões e nos cabarés.
O blues, ao trazer a sua estrutura para as principais cidades do sudoeste americano, foi a peça fundamental que faltava para unir uma série de elementos que existiam isoladamente, mas que não conseguiam se consolidar. A música americana tinha os tijolos, as pedras e os ladrilhos. O blues foi a argamassa que apareceu para juntar todos estes elementos, se constituindo na matéria prima de uma arte musical que iria futuramente representar os Estados Unidos em todo o mundo.
A absorção dos elementos do blues pelos músicos urbanos foi rápida e eficiente. Em pouco tempo o blues tomava conta do panorama musical do sul do país, notadamente na Louisiana e estados vizinhos, seguindo rio acima, por toda a região próxima ao Mississipi, chegando até às cidades onde o ragtime era cultivado, como Kansas City e Saint Louis. Assim, blues e ragtime se encontraram e impuseram a cultura musical negra mesmo nas áreas mais brancas fora dos arredores de Nova Orleans, e o jazz, ainda sem ser conhecido por este nome, já começava a ganhar espaço em diversas regiões do território norte-americano.

sexta-feira, 24 de julho de 2020





POR TRÁS DO VIDRO
(Augusto Pellegrini)

Olhando pro vidro eu vejo
A imitação de mim mesmo
Traz o mesmo olhar sem pejo
A mesma pele e o mesmo pelo

Meus gestos são repetidos
Ele faz tudo o que eu faço
Por deboche ou amoralismo
Desfaçatez ou descaso

O boné de cor incerta
E a tatuagem no braço
São modismos de estação
Como a pulseira de aço

Faço careta, ele imita
Tudo bem sincronizado
Faço gestos esquisitos
Tentando ser engraçado

Isto é muita coincidência
Ou está bem ensaiado
Tudo que eu penso ele pensa
Ele faz tudo o que eu faço

Franzo a testa, cerro o cenho
Fecho os olhos, mostro a língua
Faço todos os trejeitos
De quem caçoa ou se vinga

Mas de repente percebo
E finalmente me acho
Que além de bancar o cego
Faço papel de palhaço

Pois o ator que me faz chiste
Sou eu mesmo, feio e velho
E o vidro no qual me fito
Não é mais que um grande espelho

2018

(baseado no conto “Do outro lado do espelho”, escrito em 2013)







AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(epílogo)

Duke Ellington tem cerca de três mil composições, entre suítes, baladas, sinfonias, gospel, música sacra e diversas formas de jazz, desde o dançante até o mais sofisticado, e se nem toda a sua obra pode ser definida como blues, todas elas contêm o blues como o seu mais elevado ingrediente.
Nelas, pode-se sentir o brilhantismo do compositor e das suas intrincadas soluções musicais, repletas de harmonias soberbas, de intervalos insperados e de uma grande inspiração pianística.
Ellington possuía o virtuosismo de Art Tatum, a alegria de Thomas “Fats” Waller, a malandragem de Count Basie, o “stride” de Willie “The Lion” Smith e até a técnica de Oscar Peterson, que surgiria numa geração futura. Ele era um solista rico, quente e fluente, e sua expressão pianística tem algo de impressionista e algo de erudito.
Duke Ellington se considerava um “pianista de orquestra”, aquele que está no grupo para dar suporte aos músicos, quer por meio de um acorde de preparação, quer por meio de riffs para complementar os vazios propositalmente colocados nos arranjos, e todas as suas intervenções valorizavam tremendamente a sua música.
Isto não significa que Ellington não executasse solos. Ele os faz com perfeição, como em “Looking Glass” ou “Swampy River” ou, em boa parte das suas músicas, como parte da execução da própria orquestra.
Numa delas, “Take The A Train”, cuja composição e arranjo têm a responsabilidade de Billy Strayhorn, ele executa uma introdução histórica, que retrata toda a harmonia complicada da música e segue num crescendo, preparando a entrada triunfal dos metais em grande estilo. Não é à toa que esta música foi escolhida como seu prefixo musical e como tema-símbolo da orquestra durante mais de trinta anos, e ainda é utilizada como back-ground de programas radiofônicos de jazz no mundo inteiro e até como tema de abertura de shows de grupos de rock.
Sua produção musical era crescente, não apenas no aspecto quantitativo, como também no sentido da qualidade da obra, e representava um libelo em defesa dos direitos dos negros, sempre de uma forma pacífica, como era do seu feitio.
Ao compor a suíte “Black, Brown And Beige”, um jazz sinfônico apresentado no Carnegie Hall em janeiro de 1943 – que serviu como base para um projeto musical denominado “A Tone Parallel To The American Negro” – Ellington colocou na partitura sonora a saga do negro e a dedicou aos setecentos haitianos que vieram para a América lutar na Guerra de Secessão.
A partir desta obra, um marco na sua carreira, Ellington incrementou o número de composições de peças sinfônicas e obras longas a uma incrível proporção de uma peça por ano, surgindo na seqüência “Perfume Suite”, “Deep South Suite”, “Liberian Suite”, “The Tatooed Bride”, “New World A-Comin’ ” e “Harlem Suite” (também conhecida por “A Tone Parallel To Harlem”). Ele também escreveu peças para serem executadas pelos seus músicos acompanhados pelas Orquestras Sinfônicas de Paris e Estocolmo (“Night Creature”), de Hamburgo (“Non-Violent Integration”), de Milão (“La Scalla / She’s Too Pretty To Be Blue”); pela Orquestra da NBC (“Harlem”); e uma obra encomendada pela Orquestra Sinfônica de Nova York (“The Golden Broom And The Green Apple”).
Esta sua incursão no campo erudito, apesar de lhe ter valido alguns artigos amargos escritos por críticos de jazz mais ortodoxos, nunca tirou o “swing” da sua música, presente em diversas passagens com as intervenções interessantíssimas dos naipes dos instrumentos e dos seus solistas principais – o trompetista e violinista Ray Nance (que substituíra Cootie Williams quando este se bandeou para a orquestra de Benny Goodman), os clarinetistas e saxofonistas Jimmy Hamilton, Russell Procope, Paul Gonsalves e Johnny Hodges, e o saxofonista-barítono Harry Carney.
Ellington sempre manteve presente na sua obra, que ele chamava de “black music”, a pura essência da alma do negro, que caracterizou o seu som e o tornou diferente de qualquer outro tipo de jazz sinfônico produzido depois. Pode-se dizer que Armstrong, Parker, Gillespie, Davis, Coltrane, Monk e diversos outros músicos geniais tocavam jazz. Mas, a exemplo dos Beatles – que não tocavam rock, como as outras bandas de rock, mas tocavam “beatles” – pode-se afirmar diante da musicografia de Duke Ellington, que ele não tocava jazz, e sim um estilo de música que podemos chamar de música ellingtoniana.



quinta-feira, 23 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)

Kalamu ya Salaam é uma pessoa estranha de nome muito estranho e de atividades não muito ortodoxas. No fundo, suas esquisitices servem para emoldurar o misto de escritor, ator, poeta e músico que nele habita carregando consigo toda a bagagem cultural e a alma negra de Nova Orleans, sua cidade natal.
Foi em Nova Orleans que Salaam fundou algumas entidades culturais de preservação à negritude e às origens do jazz – a “NOMMO Literary Society”, a “360º - A Revolution Of Black Poets” e a “Runagate Multimedia”, divulgando com palavras, ações e livros o orgulho da sua raça e a veia poética das raízes africanas. Foi lá também que ele criou um grupo performático que atua na direção do blues, do jazz e de outras formas de poesia e música, chamado “WordBand”.
Kalamu ya Salaam escreveu uma deliciosa anedota que teria acontecido com Duke Ellington após uma das suas apresentações em um teatro de uma pequena cidade do interior do Colorado.
Ellington acabara de encerrar o espetáculo com uma apresentação brilhante de “Perdido”, depois de dois “bis” e muitos “bravos!” extraídos da platéia em êxtase, e se retirava para o seu camarim acompanhado por alguns dos seus músicos.
Harry Carney se declarava especialmente satisfeito pela reação de um público que eles não acreditavam pudesse vibrar tão intensamente com a apresentação da orquestra, e Willie Cook se mostrava surpreso com a receptividade do público para com algumas das músicas apresentadas, pois não acreditava que o sucesso do grupo pudesse ter chegado até estes lugarejos tão escondidos.
No caminho, uma pequena multidão se acercava dos músicos à cata de autógrafos.
Ellington ia driblando o quanto podia, deixando o importante, mas aborrecido encargo para Harry Carney, Sam Woodyard, Paul Gonsalves e Jimmy Blanton, que se esmeravam em atender os aficionados da melhor forma possível. No fundo, o público não saberia mesmo distinguir um músico do outro, e era até possível que aqueles que ocupavam os lugares mais distantes do palco não conseguissem reconhecer de perto o próprio Duke.
A noite estava agradável, e os camarins haviam sido montados do lado de fora do teatro num jardim cerca de oitenta metros da saída lateral do palco, para que todo o entourage de Ellington pudesse se acomodar confortavelmente.
Enquanto caminhava, pisando o gramado macio, o maestro olhava para o alto e fitava as estrelas que pontuavam no céu como jóias incrustadas num veludo negro. Com isso, além de prestar uma homenagem à natureza, ele também conseguia se esquivar dos fãs mais afoitos.
Mas eis que, a vinte passos da salvação, ele foi abordado de uma forma mais incisiva: um homem vestindo um terno cinza ligeiramente amarrotado simplesmente agarrou Duke pelo cotovelo, obrigando-o a parar e deu um passo à sua frente. Desfez-se em vênias e se apresentou como Joe Squire – “e senhora Squire” – acrescentou ele, indicando uma mulher com cara de poucos amigos que estava parada a seu lado, provavelmente desejosa de estar a quilômetros dali.
Ellington olhou para o cavalheiro que tinha a voz, o porte e o maneirismo de um vendedor de seguros, sorriu o seu maior sorriso e se prontificou em atendê-lo.
Joe Squire queria um autógrafo sobre a foto de Ellington estampada no programa que fora distribuído junto com o ingresso, e lhe passou o papel e a caneta, uma Parker 51 de tampa dourada. Enquanto dava o autógrafo, Ellington fitou a senhora Squire, que esperava impacientemente, estampando no rosto uma expressão entre a zanga e o enfado.
Era sem dúvida uma dama sulista, filha de algum fazendeiro falido na época da Depressão e que se vira forçada a casar com um homem deselegante e simplório como Joe e a abdicar de fortuna e classe.
A senhora Squire provavelmente ainda mantinha a arrogância dos tempos de fausto, e provavelmente não entendia como um homem branco financeiramente bem sucedido como o seu marido rastejava atrás de um negro para conseguir uma assinatura rabiscada sobre uma fotografia.
Ellington analisou a situação em poucos segundos e resolveu tomar uma atitude.
Cumprimentou Joe Squire efusivamente, agradeceu a sua presença no evento e, voltando o olhar para a sua mulher, perguntou – “qual é o nome de sua esposa, senhor Squire?”.
Rosemary”, respondeu Joe alegremente. E arrematou – “Rosemary Ann Squire”.
Belo nome” – disse Ellington. “Rose e Mary. O nome da Virgem emoldurado por uma flor”.
Ato contínuo, Ellington dirigiu a palavra à Rosemary, que olhava intrigada, não entendendo onde a conversa a respeito do seu nome iria chegar.
Senhora Squire, quero agradecer a sua gentileza de ter comparecido à minha apresentação. A presença de pessoas como a senhora em muito valoriza os meus shows. Uma orquestra de classe se sente gratificada quando é aplaudida por um público de classe”.
Terminando o pequeno discurso que deixou Rosemary Squire atônita, ele foi além.
Senhora Squire, peço a gentileza que venha comigo ao meu camarim. Tenho uma coisa muito bonita para lhe mostrar” – e apanhando-a delicadamente pelo braço, começou a se dirigir para o aposento improvisado.
Ambos caminharam em silêncio os poucos metros que separavam o local do encontro, onde Joe Squire permanecia estático, com uma expressão de incredulidade estampada no rosto. Ellington mantinha os olhos charmosos encimando um sorriso sedutor, e Rosemary seguia a seu lado como um autômato.
Na verdade, ela estava aterrorizada.
“O que pretende esse homem?”, ela se perguntava enquanto passava pela sua mente as terríveis histórias que seu avô contava a respeito dos negros que se vingavam dos brancos, histórias de sevícia e revanchismo.
Ellington entrou primeiro, depois a fez entrar, e deixou a porta aberta, para que todos vissem os seus movimentos. Além de Joe Squire, algumas pessoas se espremeram diante da porta do camarim, inclusive alguns músicos da orquestra.
Ellington trouxe a senhora Squire para frente de um cortinado verde-turquesa e lhe disse: “Madame, a senhora vai ver agora a imagem de uma mulher belíssima”. E abriu o cortinado.
Atrás do cortinado havia um espelho muito grande, próprio para os artistas se admirarem antes das apresentações a fim de se certificarem de todos os detalhes do vestuário e da maquiagem. Rosemary Squire se viu refletida no espelho, o vestido longo cor de violeta que contrastava com a brancura da pele dos seus braços e rosto.
Ela admirou sua silhueta refletida conforme Ellington havia solicitado, e depois de alguns segundos começou a compreender o significado da cena. E  a sua expressão aos poucos começou a se desanuviar.
O rosto, sério e carrancudo, usando pouca pintura e delineando as fortes marcas dos mais de quarenta anos vividos começou a ganhar vida quando ela percebeu enfim a sutileza contida no galanteio do maestro.
Seu rosto se iluminou.
Naquele galanteio residia toda uma lição de vida. Num segundo, ela percebeu o quanto estava deixando de ser bela e simpática por se comportar daquela maneira austera e irracional.
Quando Rosemary sorriu, ela trouxe à tona toda a beleza e a jovialidade dos seus vinte anos. Rosemary Ann Squire teve que admitir que aquele negro tinha charme, tinha inteligência e era extremamente refinado, e havia feito com que ela afinal se conhecesse.
Do lado de fora, Joe Squire não entendia nada, e se mostrou surpreso e desconfiado quando viu a mulher sorrir. “Ela deve ter recebido algum presente”, pensou, sem imaginar que este pudesse ter sido o melhor presente da sua vida.
Esse era Duke Ellington, um verdadeiro cavalheiro que fazia jus ao apelido de infância.

terça-feira, 21 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)

Senhor Ellington, o que o senhor acha do racismo na América?
Ellington não respondeu de imediato. Essa era uma reação própria da sua personalidade; ele sempre procurava pesar bem as suas palavras, ao invés de emiti-las num impulso impensado, porque sabia que as suas palavras tinham peso.
Depois de meditar alguns instantes, olhando para o teto, ele respondeu:
Bem, caro Dwight, racismo é uma palavra feia, que fica ainda mais feia na medida em que você tem que lidar com ela. O racismo cria uma situação na qual você precisa aprender a conviver com ela. A intolerância racial é cruel e bastante ostensiva. No entanto, ela normalmente não chega a ser fisicamente agressiva, exceto em certas ocasiões”.
O maestro fez uma pausa e respirou longamente. Havia dado suas últimas baforadas no cigarro com piteira, e os seus dedos não mais deslizavam sobre o teclado, as mãos agora repousavam sobre os joelhos.
Uma das maneiras de se defender é ignorar este tipo de insulto e provar o nosso valor para nós mesmos e para aqueles que não querem admitir a igualdade de direitos, seja em forma de música, seja por meio de outras ações. Mas eu acho que estas mudanças devem vir naturalmente, e não através da violência ou de atitudes mais drásticas”.
Dwight Spencer não desistira de captar a alma de Duke, e a sua entrevista agora tinha a intenção de provocar o maestro.
Apesar de ser famoso, o senhor se sente discriminado, por ser negro?”. A pergunta era especialmente delicada porque Dwight, filho de irlandeses, era um homem branco de pele rosada e cabelos cor de milho, bem do tipo dos seus antepassados.
Ellington sempre ouvira este tipo de pergunta com serenidade. Outros músicos negros poderiam considerá-la uma provocação, mas ele via no repórter apenas uma forma de abordagem que conduziria a conversa a patamares mais sérios.
Muitas vezes, em muitos lugares, eu e os meus músicos fomos tratados como eles tratam os negros, isto é, nos reservando a porta de serviço, nos confinando em hotéis de terceira classe e nos tratando como estranhos mesmo quando estávamos no nosso território, como por exemplo o Cotton Club, em pleno Harlem”. Duke apanhou outro cigarro, acendeu pacientemente, soltou uma baforada para cima e, sem olhar para o repórter, que permanecia mudo, na expectativa de novas informações, continuou.
Houve uma época em que os gângsters tomaram conta do Cotton Club. Eles dominaram o lugar e chegaram ao cúmulo de reservar as melhores mesas para a clientela branca que vinha do outro lado da cidade, deixando para os negros pouco ou nenhum espaço para assistir a banda de negros que mais fazia sucesso em Nova York – a minha. Não havia reação por causa do medo – afinal, eles tinham a lei do seu lado, apesar de serem fora-da-lei”.
Dwight Spencer já ouvira esta história de outros músicos, que diziam se sentir como bichos no zoológico porque, apesar de serem admirados e aplaudidos pelos visitantes, muitas vezes não passavam de animais treinados para o entretenimento de um punhado de pessoas que apenas buscavam se divertir sem se envolver com a música. Não era isto, porém, que ele esperava ouvir da mente privilegiada do Duke.
E o senhor nunca reagiu?” – a pergunta tinha a intenção de espicaçar o amor-próprio do maestro.
Eu reagia, sim. Cada vez que eu me sentia discriminado eu me lembrava da minha mãe e dos seus conselhos. Cada vez que eu me sentia indignado, eu me sentava ao piano e compunha um blues, ou uma música cheia de blues. Com isso, já compus mais de duas mil diferentes melodias...”.
As respostas imprevisíveis de Duke sempre colocavam Dwight numa situação defensiva. “É melhor deixar de lado as suas impressões pessoais” – pensou o repórter – “e procurar saber um pouco mais a respeito da sua música”.
O senhor considera a sua música dissonante?”.
Minha música não é dissonante” – respondeu Ellington – “dissonante é o estilo de vida americano, onde os negros são colocados à margem do sistema, embora, afinal, façam parte do sistema. Isto é ser dissonante. Minha música é assertiva, e tem a intenção de derrubar barreiras para unir as pessoas”.
Dwight remexeu-se em sua cadeira, dando a entender que estava ansioso para fazer uma pergunta. Sorriu, e questionou, abruptamente:
Qual a maior frustração da sua carreira?”.
O repórter era um irlandês durão, e não temia a fama de “durão” que vinha do outro lado.
Ellington também sorriu, e pela primeira vez encarou o jornalista. Depois alargou o seu sorriso, que por pouco não resultou numa gostosa gargalhada.
Você nem imagina!”. Aguardou alguns instantes para criar um clima e arrematou – “A minha grande frustração foi Louis Armstrong!”.
Como assim?” – espantou-se o repórter.
Armstrong foi o maior músico que eu conheci. Se é que o jazz possui um Bach, Armstrong é o Bach do jazz. É também o Shakespeare e o Dante. E o Michelangelo. Ele é tudo o que o jazz tem de notável. Juntos, poderíamos ter feito muita coisa boa, mas os nossos caminhos nunca se cruzaram devidamente”.
Ellington se levantou e começou a caminhar lentamente pelo estúdio. Enquanto caminhava, indo e vindo da parede para o piano e de volta para a parede, ele exibia um semblante iluminado por boas lembranças.
Lá pelos 30, não me lembro exatamente o ano, Louie realizou um único concerto com a minha orquestra. Isto aconteceu em Chicago, e o encontro foi arranjado pelo meu empresário e parceiro na época, Irving Mills”.
Dwight Spencer olhava fascinado. Estava conseguindo tirar o maestro da sua casca, e seguramente ouvindo uma história jamais contada anteriormente.
O encontro foi divino. Tudo feito meio de improviso, você entende, e Armstrong tocou uma parte que havia sido escrita para Rex Stewart, um dos trompetistas da minha orquestra, e deixou todos literalmente encantados”.
Duke sentou-se ao piano novamente e tentou repetir o “chorus”, ainda um pouco inflamado com a lembrança. Depois arrefeceu.
É uma pena que tenha durado tão pouco...” – completou ele, falando para si mesmo, de volta ao passado. Então silenciou e ficou pensativo.
Talvez eu pudesse ter elevado a carreira de Louie para alturas inimagináveis, se é que dá para imaginar que ele pudesse ter ido ainda mais alto...”
De fato, entre outras coisas, Duke Ellington escreveu excelentes peças especialmente para o trompete, como “Trumpet In Spades” ou “Boy Meets Horn” – feitas para Rex Stewart – ou “Concerto For Cootie” (que mais tarde recebeu um novo arranjo e o nome de “Do Nothing Til’ You Hear From Me”) ou “Echoes Of Harlem” – todas compostas para Cootie Williams.
Tenho certeza que se eu escrevesse algumas músicas para Armstrong, ele teria feito concertos maravilhosos ao lado da minha orquestra. As nossas apresentações seriam sem dúvida algo para entrar na história. Mas devido aos contratos que ele mantinha com empresários, editores e gravadoras, Louie infelizmente estava mais envolvido com o show business e com a gravação de músicas menos representativas, como “Shoe-Shine Boy”, “The Skeleton In The Closet” ou “Jeepers Creepers”, do que em entrar para a história”.
Ellington olhou novamente para o alto, como se o teto branco e sem vida pudesse ajudá-lo a evocar as suas lembranças.
Em 1945, a revista Esquire deu a mim e a ele o prêmio de melhor do ano nas nossas respectivas categorias e, durante a festa de premiação, a gente teve a oportunidade de tocar num breve encontro com outros músicos também premiados, numa orquestra formada às pressas que eles têm o hábito de chamar de “All Stars”. Infelizmente, parece não haver nenhum registro deste evento”.
Quando Dwight Spencer saiu do estúdio já era noite alta.
Ele havia feito a mais estranha entrevista da sua vida, pois as suas perguntas não raro tinham ficado no ar, e ele não tinha conseguido anotar quase nada das declarações do maestro, embora mantivesse o espírito da conversa vivo e aceso dentro da sua cabeça.
Com certeza, o resultado do “tête-a-tête” não se transformaria naquela reportagem chavão tipo “pergunta e resposta”, sonho de consumo das revistas e jornais para extraírem e exibirem as vísceras das personalidades entrevistadas.
Mas, com certeza, a impressão deixada por Ellington e seus comentários inesperados dariam a Dwight a oportunidade de escrever não uma reportagem, mas uma crônica, ou até um livro, que colocaria a biografia num segundo plano e se importaria em realçar realmente o âmago do entrevistado.


segunda-feira, 20 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)

Washington D.C. era uma cidade importante, posto que capital do país, mas não oferecia os atrativos que Ellington gostaria de ter apreciado na sua adolescência, como aqueles que ouvia falar existirem em Chicago.
A vida da cidade era pacata, e Duke dividia o seu tempo entre os estudos regulares da escola pública que freqüentava, as aulas de piano e o culto da Igreja Batista, aonde ia aos domingos, às vezes com a família, às vezes sozinho.
O fato de tocar piano razoavelmente bem aos quatorze anos fazia com que ele se sentisse um artista à procura de uma platéia. Assim, depois da escola, ele circulava pela cidade levado pelas tentações e pelos amigos, procurando saber das novidades e das possibilidades de demonstrar o seu conhecimento e talento musical.
Um dos pontos de convergência da turminha era o salão de bilhar de Frank Holiday, um antro de desocupados pouco apropriado para menores. Foi lá que ele conheceu Isaac Preston, um garoto um pouco mais velho que dizia frequentar um local próximo à zona central da cidade onde se tocava uma música que seria certamente do seu agrado, possuindo no seu cardápio bebida, piano e coisa e tal.
O local era um cabaré chamado Gayety Burlesque Theater, onde podiam ser apreciados diversos shows de variedades que começavam à tarde, com ventríloquos, sapateadores, bailarinas e cantores se apresentando ao som de um pianista que executava ragtime.
Isaac era realmente fascinado pelo “coisa e tal”, mas Duke se encantou mesmo foi com o piano, a ponto de ficar debruçado o mais próximo que lhe era permitido para ver de perto os dedos do pianista deslizando sobre o teclado as músicas de Scott Joplin, Tom Turpin, Joseph Lamb e James Scott.
As idas ao Gayety foram fundamentais para que Ellington se decidisse de uma vez por todas que ele seria um músico no futuro. A partir daí, dedicou-se cada vez mais ao estudo do piano e a ouvir suas músicas prediletas do jazz de Nova Orleans através do rádio ou dos discos que conseguia obter.
Antes de completar dezoito anos, Ellington já havia organizado em Washington a sua primeira banda, The Duke’s Serenaders, que tocava o ragtime e a música popular da época que a sociedade local gostava de ouvir nas suas matinês e soirées dançantes.
O primeiro encontro real de Ellington com o jazz tradicional de Nova Orleans aconteceu quando ele teve a oportunidade de presenciar a apresentação de um jovem clarinetista chamado Sidney Bechet tocando com sua banda no Howard Theater, ainda em Washington D.C.
Ellington foi sozinho ao teatro, comprou seu ingresso com o dinheiro que Daisy lhe dera e sentou-se na ala do teatro reservada para os negros, que não proporcionava a melhor visão do palco. Mesmo assim, ficou emocionado com o que viu e ouviu.
Era a primeira vez que ele tinha contato “ao vivo” com músicos nascidos no sul, e lhe pareceu que todos eles, especialmente Bechet, tocavam com a alma e o coração, não apenas com os sentidos normais de qualquer músico.
A apresentação de Sidney Bechet marcou profundamente as suas emoções. Duke falou com seus pais sobre o desejo de tentar a carreira de pianista profissional em algum lugar que lhe desse melhores condições de se desenvolver, e eles concordaram com a sua pretensão.
Meses depois, antes de completar vinte anos, Duke partiu para Nova York em companhia de dois amigos de infância, Sonny Greer e Otto Hardwicke, que tocavam bateria e saxofone na Duke’s Serenaders. Os três partiram, e a Duke’s Serenaders encerrava ali as suas atividades.
Com pouco tempo de Nova York, Duke e os amigos já se integravam no ambiente musical da cidade, fazendo parte de uma formação local.
Duke incorporara de vez o ragtime nas suas primeiras apresentações ao piano, que também incluiam o estilo piano stride, uma forma de tocar cheia de dedos que ele teve a oportunidade de conhecer no Harlem, apresentando uma fluência e um ritmo alucinantes para a sua pouca experiência. O stride seria pouco depois imortalizado não por ele, mas pelo mestre-pianista Willie “The Lion” Smith, de quem Duke se tornou amigo.
Ellington também conseguiu incorporar com maestria o sentimento do blues que ele absorvera através da música de Louis Armstrong.
Mas a nova banda era ainda incipiente e, apesar de musicalmente correta, pecou pela inexperiência profissional. Após alguns percalços naturais, que incluíram o calote de agentes e empresários, Ellington teve que rever seus procedimentos e recomeçar seu trabalho, assumindo o comando, trocando alguns músicos e batizando o grupo com o nome de The Washingtonians, estreando em 1923 num porão chamado Hollywood Inn, que ficava perto do Times Square.
Ao lado de Greer e Hardwicke e dos novos companheiros que encontrara em Nova York, Ellington começou um trabalho sério e planejado, contando também com o apoio de um tal Irving Mills, um judeu filho de pais russos que acabou sendo seu parceiro por muitos anos. Mesmo não sendo músico, Mills desde jovem se envolvera com a música, e na qualidade de produtor, letrista, escritor de shows e empresário foi de enorme valia para Duke Ellington. Mills, que às vezes adotava o pseudônimo de Joe Primrose nas suas composições, foi o responsável pelo debut da orquestra de Ellington no famoso Cotton Club, uma verdadeira façanha, considerando a fama do local e o pouco tempo de exposição do grupo. (Comenta-se que, por ter sido um grande parceiro na divulgação e na direção dos trabalhos da orquestra, Irving Mills teria tido o seu nome incluído como parceiro de algumas músicas de Ellington, apesar de não ter efetivamente participado da composição).
Duke Ellington estava se preparando para o mundo e, mais do que isso, estava preparando o mundo para ouvi-lo.
Durante toda a sua carreira ele provaria o seu talento, mas seria por outro lado mal compreendido por algumas pessoas que consideravam sua música por demais sofisticada e complicada para ser jazz, entre elas o produtor John Hammond, um jovem milionário branco que apostava em músicos e orquestras negras.