sábado, 25 de agosto de 2018





A SAPATARIA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


“Pois não?”
Caixeiro atendente de loja de calçados é a figura mais rápida e prestativa da face da terra, algo assim como um anjo da guarda do consumidor, um simpático cumpridor de ordens, um valete de copas.
A sua postura é sempre imaculada, aberta – mas séria – controlada, respeitosa, sem atrevimentos nem peraltices, trazendo no rosto o sorriso cortês do agente de seguros antes da venda, do gerente do banco antes de receber a aplicação, da mundana antes de acertar o preço, do candidato antes de ser eleito, do médico antes de matar o paciente.
Na calçada passam passantes empacotados.
A coisinha enxuta que analisava o conteúdo da vitrine a princípio não se dá conta da aproximação do vendedor, no ângulo morto que confunde a sua silhueta esbelta com a quina do vitral. Ele se coloca então numa posição mais estratégica, mais estudada, para se fazer notar, a calça cinza flanando levemente ao sopro da brisa da tarde, a camisa branca e pura adornada por uma gravata fininha, o cabelo caído na testa e a nova tentativa.
“Pois não?”
A coisinha enxuta, de saia com os joelhos à mostra, sandália de tiras e uma blusinha arejada finalmente vê a imagem do anjo refletida no vidro e vira o rosto na sua direção, olhar curioso e ouvidos atentos como um cão pequinês, inquirindo embora sem falar.
“Já escolheu?”
“Ah, você trabalha aqui? Não, estou só olhando...”
“Pois não, fique à vontade... nós temos sandálias e sapatos finíssimos...”
“Gostei muito daquela...” e aponta com o beicinho.
Conversa vai, conversa vem, entram na loja e a coisinha enxuta se senta diante de um espelho naquela posição geográfica em que se sentam todas as coisinhas enxutas que vão comprar sandálias e sapatos – este é um dos motivos pelos quais os vendedores não se importam com os baixos salários ou com a aporrinhação, e bem ele, que num certo dia sonhou que era vendedor de lingerie...
A loja lotada nesta época de fim de ano aumentava a confusão de caixas e pacotes, outros vendedores andavam de um lado para outro e outros clientes se colocavam também em posições geográficas, mas nenhuma tão estratégica e nenhuma outra freguesa tão enxuta como a coisinha enxuta ali na frente.
Vem a sandália vermelha – “não é bem essa que eu queria” – vem a azul escuro – “não gostei da fivela” – vem a cor havana – “não gostei da cor, não combina com a minha pele” – (qualquer cor, senhorita enxuta, combina com a sua pele!) – e o vendedor atencioso tira a sandália da caixa, alisa o pé da enxutinha (que dedos, meu Deus!, vale a pena ser uma frieira para habitar num recesso desses!) põe a sandália na caixa, alisa o tornozelo (que perfume, meu Deus!, vale a pena ter nariz para cheirar um pezinho desses!) – “esta está apertando um pouco” – e o vendedor olha para cima, visualizando o rostinho enxuto com a expressão enxuta e depois (que coisa, meu Deus!, vale a pena estar vivo para poder se encantar com a visão de uma vale como esse!) desce lentamente a visão por toda a área geográfica protegida por uma simples saia acima do joelho e se sente nas nuvens (que maciez, meu Deus!, vale a pena ter as pontas dos dedos sensíveis para sentir a eletricidade que provém destes pezinhos!) e pensa no poder das pernas, nas descargas elétricas e, com intenso desprazer, em Benjamin Franklin.   
E dá-lhe sandália, sandália de tira, sandália sem tira, sandália de salto, sandália sem salto, sandália de dedo, sandália de todas as cores e modelos, e a coisinha enxuta dizendo que não com o pezinho sensual no ritual de calça-descalça e as caixas se amontoando como uma pirâmide de papelão, tomando toda a lateral esquerda da loja.
A matrona, sentada também geograficamente no lugar ao lado há cerca de quinze minutos, está esperando a sua vez de ser atendida, pacientemente aguardando por algum caixeiro-atendente.
Definitivamente, a coisinha enxuta não está para brincadeira e depois de dezesseis pés esquerdos provados com dezesseis pés direitos dentro da caixa de papelão com o papel de seda amarfanhado e dezesseis caixas de papelão com as respectivas tampas espalhadas pelo carpete vermelho e duplicando a sua quantidade no espelho inclinado, ela se levanta como a condessa descalça, como a Cinderela que não achou o sapatinho de cristal, deixando o pobre príncipe ajoelhado com cara de paspalho e sai rebolando discretamente, na direção de outra loja de calçados para mais meia hora de tortura e desesperança de outro vendedor.
O olhar penetrante da matrona cai de chofre dobre o apatetado rapaz.
“Pode me atender agora?”
“Sim senhora...” responde meio amedrontado. “O que a senhora deseja?”
Quero experimentar uma dessas sandálias, aquela vermelha, por exemplo”.   
E vem de novo a sandália vermelha – “não é bem essa que eu queria...” – e vem azul escuro – “não gostei da fivela...” – e vem a cor havana...
E o vendedor segue angustiado, tira sandália, bota sandália, e alisa o pé cheio de calosidades – “que coisa, meu Deus!, parece o casco de uma tartaruga!”, e abre caixa, e fecha caixa, e puxa o dedão para ajustar a tira – “que cheiro, meu Deus!, é preciso um tonel de polvilho antisséptico para disfarçar essa eca!” – e a matrona reclamando – “está apertando o meu joanete!” – “que cara, meu Deus!, parece um buldogue com olhos remelentos!” – e vai por aí afora.  
Per omnia saecula.
Caixeiro atendente de loja de calçados é também a figura mais infeliz da face da terra, algo assim como um segurador de alça de caixão, um lacaio cumpridor de ordens, um dois de paus.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018





A VIDA INGLÓRIA DE TALARICO
(excerto)

Saí do prédio e recebi no rosto um chuvisco fino de garoa fria.
A noite piorara consideravelmente e esse mau tempo, combinado com a sauna tomada à tarde, não me iria fazer bem algum.
Entrei de corpo e alma na garoa que neblinava as luzes amarelas dos postes e neblinava a minha já neblinada visão.
Empurrado pelo vento e pela chuva, caminhei mais alguns passos e me deparei com uma pequena multidão como as que rodeiam os mágicos ambulantes, expectadores concentrados e curiosos comentando o fato, alguns chegando outros indo embora, enquanto um guarda apitava e mais longe o que apitava era um trem.
Aproximei-me para participar do aglomerado no momento em que algumas pessoas saíam deixando um lugar vago na primeira fila, como nos grandes teatros, para que eu pudesse assistir à cena final de mais uma tragédia urbana.
Talarico estava estendido na calçada com um braço ao longo do corpo e o outro acima da cabeça, tendo na mão uma taça de conhaque quebrada, os cacos se misturando com o molhado da rua, um filete de sangue escorrendo do nariz e avermelhando o bigode.
A água borrifava sobre o seu rosto como se nevasse nos cabelos arrepiados.
No bolso superior do paletó a nota fiscal da última comemoração.
Não havia nenhum padre a lhe aspergir a água do perdão.
Pelo menos por enquanto.        

segunda-feira, 20 de agosto de 2018





ESSE TAL DE ROCK AND ROLL

O rock é bom e eu gosto

Quando surgiu, o rock and roll ainda não tinha esse nome e era chamado de “race music” (música racial) pelas emissoras de rádio e pelas gravadoras americanas, porque o material tinha um forte apelo da música negra e quase não era consumido pela classe média branca jovem.
O termo “rock and roll” foi cunhado por Alan Freed, um disc-jóquei de Cleveland, numa tentativa de atrair jovens brancos para curtir a música negra através de shows que ele chamava de Rock ‘n’ Roll Jamboree, reunindo num mesmo auditório – assim como no palco – público e artistas brancos e negros.
A origem do rock and roll remonta ao final dos anos 1940 e início dos anos 1950, coincidindo com o declínio da Era do Swing, que era a música popular do momento nos Estados Unidos cujo som era especialmente apreciado pelos mais velhos.
Com o fim da guerra, veio uma vida nova, e os jovens começaram a se libertar das amarras vitorianas na busca de um mundo que dali pra frente seria deles.
O novo estilo possuía os ingredientes que representavam essa libertação e tinha as suas raízes fincadas na música negra – na forma de blues, do rhythm & blues, da música gospel e da folk music – e incorporava também a country music de origem branca nascida no centro oeste.  
O batismo com o nome “rock and roll” e a sua internacionalização vieram a acontecer, porém, somente na segunda metade dos anos 1950.
O rock começou nos Estados Unidos, mas a partir de 1962 o mundo foi palco de uma “invasão inglesa”, que modificou a aparência e a estrutura da música, fazendo com que ela começasse a ser cultivada com mais fervor pela juventude global.  
O rock and roll era genericamente chamado nos Estados Unidos de “rock-a-billy”, menção a uma expressão usada pelos jovens da época – “rock” – que significava “balançar”, entre outras coisas, para diferenciar do “swing” (que também significava também “balançar”, mas era usado pela geração dos seus pais), e “hillbilly” (“caipira”), uma alusão ao componente country da nova música.
Assim, rock, rock and roll, rock ‘n’ roll e rock-a-billy são a princípio denominações da mesma música que, a exemplo do jazz, foi sofrendo mutações ao longo do tempo e assumindo mais de trinta formas diferentes nos seus sessenta anos de existência, entre as quais os estilos “surf music” (Dick Dale, Shadows, Beach Boys), “classic” (Lonnie Donegan, The Beatles, The Who e outros que receberam uma influência do blues mais marcante, como The Rolling Stones, Animals e Yardbirds), “power pop” (Badfinger, Raspberries, Big Star, Emitt Rhodes), “folk” (Woody Guthrie, Bob Dylan, Joan Baez, Mamas & Papas, Joni Mitchell, Simon & Garfunkel), “psychedelic” (The Byrds, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Pink Floyd, Soft Machine, Yes, Marillion, Genesis, Jethro Tull), “glam” (Elton John, Davis Bowie, Alice Cooper), “heavy metal” e “hard rock” (Led Zeppelin, Kiss, Deep Purple, Queen, Judas Priest, Black Sabath, Aerosmith, Scorpions, Van Halen, Metallica, Iron Maiden), “punk” (Sex Pistols, Nausea, The Clash), “new wave” (The Police, The Pretenders, Duran Furan), “post-punk” (Talking Heads, The Cure, Echo & The Bunnymen, The Smiths, Siouxsie & The Banshees), “glam metal” (Def Leppard, Billy Idol, Bruce Springsteen, Brian Adams, Peter Gabriel, Bon Jovi), “alternative rock” (Velvet Underground, R.E.M., Sonic Youth, Pearl Jam, Nirvana) e tantas outras.
Ironicamente, apesar de o rótulo “race music” remeter aos negros, foram músicos e cantores brancos que inauguraram o estilo pra valer.
Entre estes músicos, pode-se citar Carl Perkins – “Blue Suede Shoes” (Carl Perkins), “Boppin’ The Blues” (Carl Perkins e Curley Griffin) e “Your True Love” (Carl Perkins); Elvis Presley – “That’s All Right” (Arthur Crudup), “Don’t Be Cruel” (Otis Blackwell e Elvis Presley) e “Hound Dog” (Jerry Leiber e Mike Stoller); Jerry Lee Lewis – “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On” (Dave ‘Curlee’ Williams e Sunny David), “High School Confidential” (Jerry Lee Lewis e Ron Hargrave) e “Great Balls Of Fire” (Otis Blackwell e Jack Hammer); e Gene Vincent – “Be-Bop-A-Lula” (Gene Vincent e Tex Davis), “Maybelline” (Chuck Berry) e “Bluejean Bop”(Gene Vincent).
Outros pioneiros que participaram do início da pavimentação da Era do Rock (ou do “roquinho”, ou do rock-balada, como queiram) foram Conway Twitty – “Lonely Blue Boy” (Conway Twitty), “Linda On My Mind” (Conway Twitty) e “It’s Only Make Believe” (Jack Nance e Conway Twitty); Ricky Nelson – “Hello Mary Lou” (Gene Pitney), “Travelin’ Man” (Jerry Fuller) e “Believe What You Say” (Dorsey Burnette e Johnny Burnette); Ronnie Hawkins – “Thirty Days(Chuck Berry), “My Gal Is Red Hot” (Ronnie Hawkins) e “Mary Lou” (Ronnie Hawkins); The Everly Brothers – “Wake Up Little Suzie” (Felice Bryant e Boudleaux Bryant), “Bye-Bye Love” (Felice Bryant e Boudleaux Bryant) e “Claudette” (Roy Orbison); Roy Orbison, talvez o mais moderno para a época – “Oh Pretty Woman” (Roy Orbison e Bill Dees), “Crying” (Roy Orbison e Joe Melson) e “Only The Lonely” (Roy Orbison e Joe Melson); Johnny Cash, uma atitude folk dentro do rock – “Sixteen Tons” (Merle Travis), “Let Him Roll” (Guy Clark) e “Going By The Book” (Johnny Cash); Eddie Cochran, morto aos 22 anos num acidente de trânsito na Inglaterra – “C’mon Everybody” (Eddie Cochran e Jerry Capeheart), “Pretty Girl” (Eddie Cochran e Jerry Capeheart) e “Jeannie, Jeannie, Jeannie” (George Motola); e Buddy Holly, também morto precocemente  em um acidente aéreo em Clear Lake, no Iowa – “That’ll Be The Day (Jerry Allison, Norman Petty e Buddy Holly), “It’s So Easy” (Buddy Holly e Norman Petty) e “Peggy Sue” (Jerry Allison, Norman Petty e Buddy Holly).
Um pouco mais tarde, durante os anos 1960,  surgiram The Monkees – “I’m A Believer” (Neil Diamond), “Steppin’ Stone” (Robert Luke Harshman e Tommy Boyce) e “Look Out – Here Comes Tomorrow” (Neil Diamond); The Doors, uma banda cheia de estilo que teria ido mais além se não fosse a morte de Jim Morrison – “Light My Fire” (Jim Morrison, John Densmore, Ray Manzarek e Robby Krieger), “Peace Frog” (Jim Morrison, John Densmore, Ray Manzarek e Robby Krieger) e “L.A.Woman” (Jim Morrison, John Densmore, Ray Manzarek e Robby Krieger); e The Beach Boys, cujo principal sucesso foi a música “Surfin U.S.A.”
(que na verdade era “Sweet Little Sixteen”, de Chuck Berry, com uma letra diferente feita por Brian Wilson). Outros sucessos dos Beach Boys foram “I Get Around” (Mike Love e Brian Wilson) e “Wouldn’t It Be Nice” (Brian Wilson), lançada com um clipe onde os participantes da banda imitavam os trejeitos dos Beatles no cinema.
Os negros que gravavam discos não eram muitos – quase que só Chuck Berry – “Johnny B.Goode” (Chuck Berry), “Sweet Little Sixteen” (Chuck Berry) e “Rock & Roll Music” (Chuck Berry) e Little Richard – “Long Tall Sally” (Richard Penniman, Enotris Johnson e Robert Blackwell), “Good Golly Miss Molly” (Robert Blackwell e John Marascalco) e “Lucille” (Albert Collins), que cantavam o rock and roll com menos influência do western country, mas com muita influência do rhythm & blues e do soul, o que acabava produzindo alguma diferença entre a sonoridade da sua música e a do rock-a-billy dos brancos.
Quando surgiu, o rock and roll era uma música intensa e vinha substituir a dança nos salões onde o swing das grandes orquestras começava a perder espaço, e deixou de ser “música racial” ao cair no gosto da classe média branca americana e se tornar comercialmente palatável para os donos das gravadoras.
No final dos anos 1950 o rock invadiu as Ilhas Britânicas, fazendo aparecer alguns grupos pioneiros, como a primeira banda de John Lennon e Paul McCartney – The Quarrymen – “I’ll Follow The Sun” (John Lennon e Paul McCartney), “One After 909” (John Lennon e Paul McCartney) e “Maggie Mae” (música tradicional de Liverpool) – todas as três foram gravadas muitos anos depois pelos Beatles; Cliff Richard e os Drifters (depois chamados de Shadows) – “Twenty Flight Rock” (Ned Fairchild e Eddie Cochran), “Living Doll” (Lionel Bart) e “Move It” (Cliff Richard).
Com o passar do tempo e o crescimento da música pop, que fugia da pegada do rock, principalmente durante a década de 1970 – com Michael Jackson, Madonna, Billy Joel, Stevie Wonder, Paul Simon, James Brown, Carpenters, The Guess Who, Carole King, Chicago, America, Bruce Springsteen, Prince, Diana Ross – o rock and roll e o blues moderno perderam espaço nos Estados Unidos, e ganharam força nas Ilhas Britânicas, em outros países da Europa e também na Austrália, como bem atestam as mega-carreiras dos Beatles, Rolling Stones, Yardbirds, Animals, The Who, Deep Purple, Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall & Bluebreakers, Led Zeppelin, Pink Floyd, e muitos outros.
Evidentemente o Brasil não iria ficar fora dessa influência e, passado o tempo do “roquinho”, trouxe à tona nos anos 1980 um rock cheio de conteúdo, com um perfil contestador, num movimento denominado “Rock Nacional”.
O movimento eclodiu em Brasília, mas logo teve a cumplicidade de jovens músicos de todo o país, com o aparecimento de Paralamas do Sucesso, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho, Biquini Cavadão, Ultraje a Rigor, Ira!, Capital Inicial, Camisa de Vênus e muitas outras.
Com uma história que já atravessa gerações o rock conquistou o seu lugar na música do século 20 e mostra que veio pra se perpetuar no século 21, quer utilizando a base acústica que marca a sua origem, quer privilegiando instrumentos eletrônicos, a tecnologia ou os sons esotéricos, pois o seu segredo não reside apenas na sonoridade, mas principalmente no espírito da música.      
Por essas e outras é que o rock é bom e eu gosto. Quem vivenciou esta trajetória nunca vai deixar de ser roqueiro.