O FUTEBOL NA ERA VITORIANA
A
Inglaterra foi o berço do futebol moderno. Foi lá que rolou a primeira bola e foi
lá que foram criadas as primeiras regras que serviram de matriz para um jogo
que acontece há mais de cento e cinquenta anos em todo o mundo.
Em
termos de comportamento, a Europa ditava os costumes da época.
Assim,
boa parte do mundo civilizado obedecia à linha inglesa de procedimentos seguidos
na segunda metade do século 19, tendo como base as práticas impostas pelo
reinado da Rainha Vitória, da Inglaterra e da Irlanda – e Imperatriz da Índia –
que se caracterizavam pelo puritanismo e pela severidade com relação à
intolerância e às questões de ordem moral.
Com
o passar do tempo os conceitos de moral e comportamento foram sofrendo mudanças
e a sociedade passou a ser mais tolerante, permitindo pequenas digressões em
situações e locais especiais.
Ao
contrário da ética, que permanece imutável através do tempo, a moral vai se
adaptando às novas situações a circunstâncias e é normalmente aceita pela
sociedade dentro do que convencionou ser a “regra do bem viver”.
Hoje
em dia a mais recatada filha de família pode perfeitamente usar um traje de
banho ousado se estiver na praia ou na piscina, e ninguém mais enrubesce ao
ouvir palavrões, dependendo do lugar em que se encontra e do contexto do
impropério emitido. O mesmo ocorre com a ocasional obscenidade que toma conta
da malta na época dos carnavais, que atualmente são vários.
Não
está em debate se isto é bom ou ruim, está em debate o risco de uma ditadura de
costumes que venha a ser imposta nos estádios de futebol, onde tradicionalmente
se pratica a irreverência e a descontração.
Os
Ministérios Públicos de diversos estados brasileiros estão pregando nos últimos
anos uma verdadeira cruzada visando catequizar o futebol, condenando a vibração
popular à sisudez das salas de concertos.
Usando
como pretexto a guerra entre torcidas organizadas houve-se por bem destinar os
lugares da plateia de um clássico regional apenas para os torcedores do clube
mandante. Isto evita a guerra declarada nos estádios, mas não inibe a violência
fora deles, que é o local onde mais se agride. A primeira sugestão havia sido
ainda mais draconiana: nos clássicos regionais, estádios vazios!
O
torcedor que consegue a custo entrar no estádio depois de driblar os cambistas
o os guardadores de veículos que agem normalmente sem que os mesmos Ministérios
Públicos ajam de alguma forma e, uma vez dentro do estádio, têm que seguir
regras de etiquetas impostas coercitivamente: não podem cantar hinos
considerados provocativos, nem provocar os adversários com brincadeiras e
chistes. Não podem portar faixas, bandeiras, nem dísticos que façam qualquer
alusão a assuntos políticos da própria política nacional ou da política da
esfera esportiva.
Está
em curso uma medida que irá proibir definitivamente qualquer tipo de bebida
alcoólica dentro dos estádios ou nas suas redondezas, incluindo aí a inocente
cervejinha.
Jogadores
não podem comemorar porque as autoridades convenceram os dirigentes esportivos
que os gestos comemorativos podem ofender os adversários e originar tumulto
mesmo para quem está assistindo o jogo pela televisão no bar próximo à sua
casa. Possivelmente seja proibida também a venda de bebida alcoólica nesses
bares que transmitem as partida ao vivo, nos moldes do que se faz,
estupidamente, diga-se de passagem, nos dias de eleição.
Com
o passar do tempo e o fortalecimento da Era Vitoriana, os torcedores terão que
acompanhar uma partida de futebol como quem acompanha uma partida de xadrez, ou
vibrar com o gol do seu time com a mesma emoção com que vibra na celebração da
Santa Missa. Sem a mesma euforia, porém.
Nos
anos 1970, o árbitro Armando Marques ameaçava de expulsão o jogador que
proferisse palavrões durante o jogo. Sua Senhoria achava que o palavreado chulo
atentava contra a elegância do esporte e era ofensivo mesmo àqueles a quem não
eram dirigidos.
No
que Gérson, o Canhotinha de Ouro, contestou com uma justificativa
irrepreensível que todo boleiro conhece ao fazer um lançamento de quarenta
metros para um companheiro desatento: “E aí, Seu Armando, de que maneira ou vou
me dirigir ao Paraná?”
(artigo
publicado no caderno Super Esportes do jornal O Imparcial de 29/04/2016)
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