sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017



A VOZ DO DONO E DO DONO DA VOZ

Pode parecer estranho que o título deste artigo seja o mesmo de uma música de Chico Buarque gravada em 1981, dando a impressão ao leitor que vou me embrenhar pela engenhosa filosofia poético-musical do compositor. Na prática, será quase a mesma coisa, embora Chico tratasse das tortuosas relações entre artistas, produtores e gravadoras e eu vou comentando os desacordos entre clubes, federações e direitos de transmissão.
Retrata-se aqui a antiga disputa entre os artistas e os donos dos espetáculos.
A voz do dono na realidade não pertence aos clubes, mas sim aos torcedores. Os clubes existem, despontam, crescem e se tornam vitoriosos por causa da torcida que os apoia, não o contrário.
A voz do dono, ou a voz do povo, vem das arquibancadas, ou através dos jornais, dos aparelhos de televisão e até dos anônimos radinhos de pilha ainda em uso. Ela não interfere diretamente na administração de um clube, mas sua pressão acaba sendo sentida se as coisas não caminharem de uma forma satisfatória. Jogadores são vendidos, treinadores são demitidos, dirigentes são trocados e até o presidente, eleito conforme estatuto, faz suas concessões em nome das reclamações porventura existentes.
A demanda pode vir por meio da presença do torcedor no estádio ou no campo de treinamento, pelas redes sociais ou até por condenáveis atitudes amedrontadoras, mas sempre deixando claro para o clube que é sempre saudável ouvir a voz do dono.
Já o dono da voz age nos gabinetes, nas reuniões e nas decisões administrativas, e dessas reuniões nascem os acordos firmados entre patrocinadores, redes de emissoras que transmitem as partidas, federações e dirigentes de clubes. As discussões são pautadas em cifrões, em projeções financeiras e em muito, muito lucro.
A rede de televisão que transmite a partida tem o dinheiro e, portanto, o poder de fazer valer o epíteto de “dono da voz”. Com base em complicados mapas de audiência, a emissora estabelece uma cota anual para cada clube para as competições de cada período, considerando quais torneios cada clube vai disputar, participando da escolha de datas e da elaboração das tabelas, além de outros detalhes relevantes, resultando daí uma divisão nada equitativa: clubes como Flamengo e Corinthians recebem uma quota absurdamente muito maior do que os outros grandes da Série A, e clubes como Coritiba e Atlético Paranaense, por exemplo, podem ter uma oferta para a transmissão do Campeonato Paranaense abaixo do que o Madureira recebe no Estadual do Rio de Janeiro. 
Por causa disso no domingo passado aconteceu uma ruptura nas relações entre clubes, federação e a televisão que adquiriu o direito de transmissão.
Coritiba e Atlético Paranaense consideraram irrisório o valor que lhes era destinado e não autorizaram a transmissão da partida por nenhuma emissora da Rede Globo. Foram adiante e fizeram um acordo histórico, para que a partida fosse transmitida via internet pela TV Coxa e pela TV CAP para os assinantes dos seus respectivos canais na web.
A Federação não concordou e solicitou que as equipes de transmissão deixassem o estádio para autorizar o início da partida sem a transmissão ao vivo. Os clubes não concordaram e se recusaram a jogar, abrindo-se aí um cisma que poderá ser o início de uma nova ordem no futebol brasileiro.
A CBF está cada vez mais enfraquecida devido às denúncias de corrupção que atingiram três ex-presidentes e o presidente atual. Isso acaba refletindo nas federações a quem alguns clubes começam a cobrar legitimidade, tomando corpo nos bastidores a formação de uma liga formada pelos próprios clubes a fim de administrar o futuro do futebol brasileiro.
A Primeira Liga, que nasceu errada e cheia de problemas é apenas um esboço do que uma Liga Brasileira de Futebol pode vir a ser, nos mesmos padrões da Premier League (liga inglesa), da La Liga (liga espanhola), da Ligue 1 (liga francesa), da Bundesliga (liga alemã) e outras tantas espalhadas pelo mundo, que organizam seus campeonatos e torneios, suas premiações e seus acordos com a mídia televisiva, deixando para a Federação apenas os assuntos referentes às diversas seleções nacionais.
O Brasil está clamando por mudanças dos seus diversos setores. Por que não aproveitar a ocasião para dar uma chacoalhada também no futebol, que é o assunto mais importante entre os menos importantes a serem solucionados?
Aí talvez a gente ouça com maior nitidez a voz do dono, hoje tão pouco ressonante se comparada com o troar do dono da voz.         

 (Artigo publicado no caderno de Esportes do jornal O Imparcial de 24/02/2017)



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