A IRA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
Tudo andava às mil maravilhas naquela
cidadezinha no sul da França, Saint Jean des Canards. Monsieur Patou caminhando
placidamente pela rua arborizada, as flores florindo na primavera, o sol resplandecente
furando as copas das árvores, os passarinhos gorjeando em francês e alguns
Jacques, Jean-Pierres e Charlottes se cumprimentando e se sorrindo.
Close para o vendedor de sorvetes
oferecendo risonho e rubicundo um copinho com “crème des pommes” enquanto ao
fundo a jovem Geneviève tem um “frisson” ai cruzar seu olhar com o de Laurent,
um vizinho tímido e agradável que falava com os olhos tudo aquilo que os lábios
não ousavam pronunciar, como dizia o poeta.
O gramado aparado parecia estar verde,
não aquele verde amarelado dos “westerns” de Hollywood, mas aquele verde
esmeraldino dos filmes de capa e espada, apesar da centena de cavalos e
cavaleiros que por ali passavam diariamente, das liças e das caçadas. Mas o
filme era branco-e-preto, o adorável branco-e-preto dos clássicos, o
branco-e-preto do estilo “noir”, da fotografia bem cuidada, da direção perfeita
que usa a indução psicológica, sem efeitos especiais, e da grama puramente
cinza naquela calma matinal.
Monsieur Patou consulta o seu relógio,
aqueles de bolso, a corrente fazendo um
arco por cima da virilha, é quase hora do almoço, vamos provar os quitutes
preparados por Madeleine, sua mulher há mais de trinta anos, exímia cozinheira,
talentosa fazedora de “croissants”, “petit fours” e “patés”, já antevendo o
assado de vitela com batatas coradas, regadas ao bom vinho “du Rhône”.
Corte para dentro da casa.
Madeleine terminando de ajeitar a mesa,
o avental impecavelmente engomado servindo de adorno ao vestido caseiro,
trazendo no rosto a expressão de um artista a contemplar a sua mais recente
obra prima, a mesa posta e uma terrina de sopa ocupando o centro.
Monsieur Patou entra pela porta da sala,
dirige-se à mesa, beija afetuosamente Madeleine na testa e pergunta – “o que
minha patinha fez para o almoço de hoje?” – ao que Madeleine responde – “sopa
de quiabo” – “sopa de quiabo?!” – exclama Patou estupefato – “mas Joujou” –
Joujou é Madeleine, na intimidade – “você sabe que eu odeio sopa de quiabo!” –
“mas sopa de quiabo é tão bom!...” – e segue por aí afora a discussão sobre as
qualidades nutritivas do quiabo, até que Patou se deu por vencido e sentou-se à
mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo com vinho ‘du Rhone’, bah!”
Mas a primavera estava linda, Patou
amava Joujou e ainda mais com essa linguiça cortada aos pedaços, e a batata, e
o tempero de Joujou... sem contar que ele já havia lido num velho almanaque que
quiabo era um poderoso afrodisíaco!...
Os dois sentados à mesa, a toalha xadrez
já um pouco machucada pelo uso, a terrina fumegando, os pratos decorados e o
relógio da sala batendo meio-dia, o sol penetrando pelas frestas da janela e as
nuvens negras do desacordo se desvanecendo no ar.
Patou e Madeleine Joujou, um casal feliz
como feliz se sentia toda a humanidade concentrada na pequena Saint Jean des
Canards naquele dia maravilhoso.
Monsieur Patou dá a primeira colherada,
dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo branco que tem
preso ao pescoço e, de repente, arregala os olhos.
“Uma mosca! Uma mosca na minha sopa!”
O pequeno díptero, já morto e com as
patas arreganhadas flutuava de costas ao lado de um pedaço de tomate e de uma
rodela de quiabo, preso à sua viscosidade como se estivesse preso a uma teia de
aranha gelatinosa.
Agora Patou se levanta num solavanco, arranca
o guardanapo do pescoço e ainda gritando – “uma mosca! Uma mosca!” – arremessa
o prato com sopa, mosca e demais pertences por cima da mesa, borrifando o
líquido quente e pegajoso sobre o avental bem cuidado de Joujou, que exclama
“Mon Dieu!” e, ato contínuo, destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro
“Rhône” safra 1982, uma das melhores dos últimos vinte anos, de acordo com os
enólogos.
Está aberto o diálogo franco, franco em
todos os sentidos.
Os passarinhos já estão se bicando por
conta de um verme encontrado no meio do gramado, uma cumulus-nimbus tolda o
brilho do sol, Jean-Pierre esbarra em Jacques e ambos trocam insultos,
Charlotte ouve algumas palavras mal-intencionadas, pensa que é com ela e acerta
a cabeça do sorveteiro com um portentoso golpe de guarda-chuva, ao ver a cena a
criança morde a língua e chora, toda lambuzada de sorvete, e Geneviève planta
um tapa na cara do jovem Laurent que enfim desencabulara e fizera propostas um
tanto arrojadas para a sua condição de donzela e para o certificado de censura
do filme. Laurent vira uma fera e agride a mocinha na maior baixaria.
Todo mundo se ofende e se desrespeita,
pedras são atiradas a esmo, chega a polícia, bombas de gás, chega o reforço do
exército, e por fim explode a bomba.
Estas cenas foram, tirando uma ou outra
incorreção semântica, extraídas do filme “Les sept péchés capitaux”, episódio
“La colère” dirigido por Sylvain Dhomme e Max Douy, mostrando uma ira à francesa,
já bem familiarizada com as devastações que a guerra pode trazer.
Como nós aqui desde os idos da Guerra do
Paraguai não somos brindados com o inimigo à porte de casa, nossa ira
normalmente explode por questões de somenos importância ou pelo menos sem a
mesma gravidade, e as nossas asas do rancor se estendem apenas até onde alcança
a nossa rotina do dia-a-dia.
Ira em francês é mais “chic”.
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