terça-feira, 12 de dezembro de 2017





A IRA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


Tudo andava às mil maravilhas naquela cidadezinha no sul da França, Saint Jean des Canards. Monsieur Patou caminhando placidamente pela rua arborizada, as flores florindo na primavera, o sol resplandecente furando as copas das árvores, os passarinhos gorjeando em francês e alguns Jacques, Jean-Pierres e Charlottes se cumprimentando e se sorrindo.
Close para o vendedor de sorvetes oferecendo risonho e rubicundo um copinho com “crème des pommes” enquanto ao fundo a jovem Geneviève tem um “frisson” ai cruzar seu olhar com o de Laurent, um vizinho tímido e agradável que falava com os olhos tudo aquilo que os lábios não ousavam pronunciar, como dizia o poeta.
O gramado aparado parecia estar verde, não aquele verde amarelado dos “westerns” de Hollywood, mas aquele verde esmeraldino dos filmes de capa e espada, apesar da centena de cavalos e cavaleiros que por ali passavam diariamente, das liças e das caçadas. Mas o filme era branco-e-preto, o adorável branco-e-preto dos clássicos, o branco-e-preto do estilo “noir”, da fotografia bem cuidada, da direção perfeita que usa a indução psicológica, sem efeitos especiais, e da grama puramente cinza naquela calma matinal.
Monsieur Patou consulta o seu relógio, aqueles de bolso, a  corrente fazendo um arco por cima da virilha, é quase hora do almoço, vamos provar os quitutes preparados por Madeleine, sua mulher há mais de trinta anos, exímia cozinheira, talentosa fazedora de “croissants”, “petit fours” e “patés”, já antevendo o assado de vitela com batatas coradas, regadas ao bom vinho “du Rhône”.
Corte para dentro da casa.
Madeleine terminando de ajeitar a mesa, o avental impecavelmente engomado servindo de adorno ao vestido caseiro, trazendo no rosto a expressão de um artista a contemplar a sua mais recente obra prima, a mesa posta e uma terrina de sopa ocupando o centro.
Monsieur Patou entra pela porta da sala, dirige-se à mesa, beija afetuosamente Madeleine na testa e pergunta – “o que minha patinha fez para o almoço de hoje?” – ao que Madeleine responde – “sopa de quiabo” – “sopa de quiabo?!” – exclama Patou estupefato – “mas Joujou” – Joujou é Madeleine, na intimidade – “você sabe que eu odeio sopa de quiabo!” – “mas sopa de quiabo é tão bom!...” – e segue por aí afora a discussão sobre as qualidades nutritivas do quiabo, até que Patou se deu por vencido e sentou-se à mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo com vinho ‘du Rhone’, bah!”
Mas a primavera estava linda, Patou amava Joujou e ainda mais com essa linguiça cortada aos pedaços, e a batata, e o tempero de Joujou... sem contar que ele já havia lido num velho almanaque que quiabo era um poderoso afrodisíaco!...
Os dois sentados à mesa, a toalha xadrez já um pouco machucada pelo uso, a terrina fumegando, os pratos decorados e o relógio da sala batendo meio-dia, o sol penetrando pelas frestas da janela e as nuvens negras do desacordo se desvanecendo no ar.
Patou e Madeleine Joujou, um casal feliz como feliz se sentia toda a humanidade concentrada na pequena Saint Jean des Canards naquele dia maravilhoso. 
Monsieur Patou dá a primeira colherada, dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo branco que tem preso ao pescoço e, de repente, arregala os olhos.
“Uma mosca! Uma mosca na minha sopa!”
O pequeno díptero, já morto e com as patas arreganhadas flutuava de costas ao lado de um pedaço de tomate e de uma rodela de quiabo, preso à sua viscosidade como se estivesse preso a uma teia de aranha gelatinosa.
Agora Patou se levanta num solavanco, arranca o guardanapo do pescoço e ainda gritando – “uma mosca! Uma mosca!” – arremessa o prato com sopa, mosca e demais pertences por cima da mesa, borrifando o líquido quente e pegajoso sobre o avental bem cuidado de Joujou, que exclama “Mon Dieu!” e, ato contínuo, destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro “Rhône” safra 1982, uma das melhores dos últimos vinte anos, de acordo com os enólogos.
Está aberto o diálogo franco, franco em todos os sentidos.
Os passarinhos já estão se bicando por conta de um verme encontrado no meio do gramado, uma cumulus-nimbus tolda o brilho do sol, Jean-Pierre esbarra em Jacques e ambos trocam insultos, Charlotte ouve algumas palavras mal-intencionadas, pensa que é com ela e acerta a cabeça do sorveteiro com um portentoso golpe de guarda-chuva, ao ver a cena a criança morde a língua e chora, toda lambuzada de sorvete, e Geneviève planta um tapa na cara do jovem Laurent que enfim desencabulara e fizera propostas um tanto arrojadas para a sua condição de donzela e para o certificado de censura do filme. Laurent vira uma fera e agride a mocinha na maior baixaria.
Todo mundo se ofende e se desrespeita, pedras são atiradas a esmo, chega a polícia, bombas de gás, chega o reforço do exército, e por fim explode a bomba.
Estas cenas foram, tirando uma ou outra incorreção semântica, extraídas do filme “Les sept péchés capitaux”, episódio “La colère” dirigido por Sylvain Dhomme e Max Douy, mostrando uma ira à francesa, já bem familiarizada com as devastações que a guerra pode trazer.
Como nós aqui desde os idos da Guerra do Paraguai não somos brindados com o inimigo à porte de casa, nossa ira normalmente explode por questões de somenos importância ou pelo menos sem a mesma gravidade, e as nossas asas do rancor se estendem apenas até onde alcança a nossa rotina do dia-a-dia.
Ira em francês é mais “chic”.    


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