quarta-feira, 1 de março de 2017




O ATOR

Estou novamente desempregado.
Como o leitmotiv da minha vida sempre foi o palco, não sei se atribuo esta infelicidade à força do destino, como dramatizado por Giuseppe Verdi, ou à força das circunstâncias, coisa que pode acontecer a qualquer mortal envolvido nas farsas do dia-a-dia.
No momento, sou mais um personagem da vida real à procura de uma persona no palco, saudoso do camarim que guarda aquele silêncio que antecede o espetáculo e daquele calafrio que antecede a entrada triunfante em cena.
Tenho parte da culpa neste destino por enquanto inglório, mas na verdade me considero mais uma vítima do enredo, que foi tramado à minha revelia.
A história que ora reproduzo poderá algum dia, se escrita pelas mãos hábeis de um roteirista, se transformar numa épica obra shakespeariana, tal é a natureza das personalidades envolvidas, o drama e a ironia contidos na trama, o ranço operístico e a mensagem bufa.
Essa história começa com o lirismo de uma poesia ...

Por tanto tempo este momento eu esperei
Mas gostaria de fugir, e o porquê não sei
O camarim guarda o silêncio que antecede o show
Lá fora, vozes sussurrando sob a luz em meio tom
Olho no espelho, que reflete o que há em mim
Eu gostaria de sentir felicidade, enfim
Escolho a face que usarei para enfrentar
Esta plateia colorida que me assusta e faz chorar

“Na solidão deste monólogo cruel
Sinto na boca o gosto fel
E o coração parece então acelerar
Sigo em silêncio em direção ao meu destino
Caminho ao som de um violino
Que me empurra para o palco
E as cortinas de veludo
Ao descerrarem mostram tudo
Rosas vermelhas no cenário
E aplausos quentes como a luz
A emoção me faz chorar um choro negro
Que faz parte deste enredo
Que fascina e me seduz”

... e termina com a tragédia dos grandes épicos.

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Assim foi desde o princípio, e parece que assim será per omnia saecula, saeculorum, amém: os momentos que antecedem a entrada ao palco são de extrema tensão, de intensa agonia, de uma expectativa doentia, de uma sensação febril.
Agora sei como se sentiam os prisioneiros de Auschwitz-Birkenau quando chegava a hora de adentrar a câmara de gás, uma alternativa indolor – ainda que não inodora – de cumprir com a derradeira tarefa mundana antes de alcançar a vida eterna.
E olhem que muitos deles não tinham consciência do que estavam fazendo, ao contrário de mim. Eu sei a hora de entrar e a hora de sair de cena – eles não sabiam a hora de entrar e só saíam de lá mortos e com os pulmões intoxicados de cianureto, mas pelo menos não tinham que enfrentar o julgamento dos carrascos da plateia.
Como Edwin Booth, eu sinto o coração oprimido quando enfrento o olhar inquisitivo do público que se refestela nas cadeiras a cinco metros de mim, e não duvido que o mesmo tenha ocorrido com Sir Lawrence Olivier com toda a sua arrogância, ou com Sarah Bernhardt com toda a sua aura cativante. Ou com Gassman, algum dia.
Mas Booth, Olivier & Cia. não tinham os problemas que eu tinha – eles eram os astros principais, não um mero coadjuvante, como eu – nem tinham que aturar Timóteo, não o da Bíblia, mas aquele intragável diretor que só tinha palavras idiotas na ponta da língua.
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Timóteo se transformou em diretor porque nunca conseguiu ser ator nem teve a coragem de ser crítico. Por isso sempre tratou com desdém tanto os atores como os críticos, e somente conseguiu encarnar esta nobre função, naquele único teatro – vejam bem – por ser o genro do dono, outro estafermo que se dizia empresário teatral, mas não sabia distinguir entre teatro e circo.
Este, que se autoproclamava “empresário teatral Benito Rubaloca” – dizem que espanhol – costumava divulgar as suas produções com toda força nas páginas de cultura dos diários e semanários locais.
Rubaloca sentia uma rútila alegria quando via o seu nome estampado nas páginas dos periódicos, e costumava dizer que seu sonho era ser eternizado no Diário de Notícias.
Na época que ora relato ele anunciava com grande estardalhaço – “Produções Rubaloca apresenta O Defunto Virgem, um clássico da dramaturgia”, que era ambientado numa fazenda americana do fim do século 19 e exibido no Teatro Aliança, um prédio reformado que mantinha a aparência e a arquitetura do cinema que fora, sessenta anos atrás.
No elenco, sua atriz predileta, Dorotéa Vaughan – nascida Maria dos Anjos Silva – que se considerava uma musa, mas no fundo não passava de uma canastrona.
Bonita não era, embora tivesse um certo porte, pois sua altura tinha o tamanho exato do seu convencimento e, apesar da ainda pouca idade, pois ainda não chegara à casa dos trinta, utilizava uma maquiagem exagerada que a tornava semelhante a uma boneca japonesa de porcelana.
Todos na companhia sabiam que certas coisas proibidas estavam acontecendo entre os dois, meio escondido e meio às escancaras, mas sabiamente de eximiam de qualquer comentário. Essas “coisas” justificavam a preferência do tolo Moisés pela frívola prima-dona, que era elencada como atriz principal apesar de seus poucos dotes dramáticos, em virtude dos favores pouco artísticos dos quais a senhora Rubaloca jamais suspeitara.  
No palco, Dorotéa exagerava nos gestos e na impostação como se um texto de Molière tivesse sido escrito por Sófocles, emitindo agudos vocais tão estridentes e desagradáveis que sua voz soava como um sistema de som com microfonia, apesar de todas as nossas apresentações serem acústicas.
Não sei do timbre da sua voz no silêncio do particular, mas deveria ser do agrado do velho Rubaloca, que não ligava muito para princípios de fonoaudiologia e dava preferência a outros atributos, por ser o sátiro sem princípios que era.
Na peça, Dorotéa desempenhava o papel da mulher de um fazendeiro, a quem trai com um vendedor de escovas do condado, num drama fetichista de difícil compreensão para o público, segundo teorizava o autor, um desconhecido à procura de uma plateia, chamado Eraldo Montalvão.
Felizmente meu papel nesta peça – eu representava Pavel, a voz da consciência do vendedor de escovas – se resumia a um monólogo de três minutos, que apesar de exigir um forte vigor histriônico, pelo menos me reservava ao direto de ser histriônico sozinho, sem a má companhia da Dorotéa.
Minha entrada se dava no fim do primeiro ato, quase um entreato, e sua importância na história era ligar o passado e o presente. Eu não era um personagem, mas um pensamento, quase um fantasma que servia para lembrar aos circunstantes a filosófica existência das causas sobre os efeitos.
Minha atuação se fazia sem a liturgia do drama e sem a emoção dos grandes espetáculos.
Eu nunca fui, na verdade, muito prestigiado dentro do grupo. Na noite de estreia de O Defunto Virgem, quando os artistas se deram as mãos e se desejaram uma sincera “merda!” para augurar boa sorte, no máximo um ou outro me mandou à merda, o que não é a mesma coisa e tem um efeito psicologicamente contrário.
Assim, eu me sentia só, e gostava de ficar só, longe do que eu achava ser a mediocridade geral.
Eu me recordo de certa noite, antes do espetáculo, enquanto o público começava a se acomodar, e eu estava subitamente a sós no camarim, aproveitando para fazer uma revisão da minha vida.
Seguia cheio de dúvidas e de receio: aos quarenta e sete anos ainda não sabia ao certo se desejava realmente ser ator, mas não encontrava uma porta lateral que me apresentasse alguma outra saída. Era como se eu fosse um viciado que a cada dose, a cada peça, a cada ato, se visse mais e mais envolvido com uma coisa que aparentemente lhe dava prazer, mas que talvez no fundo detestasse.
O espelho, enorme e assustador, mostrava meu rosto macilento apesar ou por causa da maquilagem pesada, e as palavras do meu monólogo se misturavam na minha cabeça. Era sem dúvida um verdadeiro milagre que, iniciada a fala inicial, elas se encaixassem perfeitamente e saíssem da minha boca como uma torrente, obedecendo às pausas e às exclamações.
Normalmente eu era aplaudido ao final do monólogo que prefaciava o final do drama, antes que a história retornasse com a participação de Dorotéa & Cia. Eu tinha a impressão – ou pelo menos quero crer – que eles não recebiam o mesmo aplauso caloroso que eu.
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A arte imita a vida, dizem os poetas. Já os sonhadores acham que a vida imita a arte.
Talvez o conceito correto fosse considerar que para certas pessoas vida e arte se confundem num só amálgama, embora para a grande maioria tanto uma como outra inexistam completamente.
Para os néscios, a arte é um bem inalcançável, é um abstrato que jamais será entendido. Para estes idiotas não existe diferença entre ruído ou música, rabiscos aleatórios ou pintura, conversa real ou encenação. Nada os faz ter a percepção de sons harmônicos, nada os faz sentir a emoção das artes plásticas ou entender a diferença entre realidade e engodo. Para eles não existe pausa, para eles não existe ilação. Vivem como se não tivessem alma.
Para estas almas vazias a vida é simplesmente um nascer e vegetar, com a preocupação primária das coisas básicas para a sobrevivência, sem a concepção de momentos melhor vividos.
No entanto, para aqueles que foram tocados pelo condão de Apolo e que se envolveram na beleza das máscaras do teatro grego e da Commedia dell’Arte, o mundo se abriu desde cedo numa profusão de luzes, sons, cores e gestos. Cada passo dado, cada etapa percorrida ou cada ciclo concluído será sempre marcado por uma explosão de arte.
Estes felizardos respiram arte como se respira o ar, numa associação tão profunda que a inexistência de uma das alternativas implica no desaparecimento da outra.
Esta intensa associação só é possível de ser sentida por quem traz a arte nas veias.
Passei a vida inteira representando para o mundo, meu grande público.
Na escola, fazia-me de interessado para agradar os mestres, mesmo discordando deles e por vezes até os desprezando, muitas vezes achando os seus ensinamentos entediantes e pífios. Em casa, personificava o bom filho para fazer minha mãe feliz, embora nunca tivesse passado de um vil estroina.
Meu pai bem que notava a falta de sinceridade no meu comportamento, mas como ele também tinha algo de podre escondido nas suas ações aparentemente pouco sinceras, ambos preferíamos esconder as nossas ignomínias para manter incólume a harmonia do lar.
Uma espécie de armistício.
Para os vizinhos eu era o rapaz discreto e contido que não se aventurava em encrencas. Os pais me confiavam as filhas quando das festas do bairro, sabedores do caráter errático dos outros jovens e crentes no meu procedimento impoluto. Os idiotas não sabiam que eu era um ator – principiante, sem dúvida, mas um ator – e que eles estavam confiando as suas donzelas a um canalha.
O espelho do camarim me fita.
É estranho que este sentimento de inutilidade se apossasse de mim bem no momento em que eu atravessava a minha melhor fase de intérprete.
Casa cheia três vezes por semana, aplausos benfazejos, e o assédio do público e da imprensa deveriam me alimentar como um afrodisíaco, mas o máximo que fazia era manter as minhas defesas em alerta contra algo que eu nunca soube bem o que é. 
Como um inseto na defensiva.   
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Dorotéa, nascida Maria dos Anjos conforme consta nos implacáveis documentos, me odiava, talvez por saber que o público preferia os meus entreatos à sua exibição em tempo integral, e embora se apresentasse como a artista principal da trupe, ela sempre deixava transparecer sua total insegurança, dentro e fora do palco.
Esta insegurança se tornou mais evidente após uma tarde de ensaios, quando madame Rubaloca apareceu sem avisar, flagrando a atriz e o señor Benito numa situação profundamente embaraçosa: embora não fosse o diretor de cena, Benito Rubaloca enlaçava a prima-dona nos braços para mostrar ao ator que interpretava o vendedor de escovas como a cena romântica deveria se desenvolver, e a coisa parecia real demais para ser encenação. Timóteo se limitava a ajustar o posicionamento dos atores no palco, e parecia ligeiramente incomodado com a situação.
Mas Timóteo era o antidiretor por excelência. A sua presença e as suas orientações eram perfeitamente dispensáveis na medida em que ele não conseguia passar para o elenco a emoção desejada pela trama. Felizmente para todos, Montalvão – o autor – esteve pessoalmente dirigindo a peça nas três primeiras semanas antes da primeira exibição, e transmitiu para os artistas todas as filigranas e trejeitos necessários para um bom desempenho no palco.
Faltam a Timóteo a postura e a afetação dos grandes mestres da encenação. Quem o via circulando pelo palco e pelos bastidores tomá-lo-ia por um mero assistente de produção, tal a sua preocupação com os detalhes pouco significativos do espetáculo e a sua falta de preocupação com a dramaturgia que o enredo exigia.
Acho estranho que com todos estes problemas o espetáculo conseguisse lotar o Teatro Aliança nas suas três exibições semanais, o que talvez sirva de crédito para o jovem Montalvão. E mais estranho ainda é que os aplausos fossem quentes como a luz, como diz o lirismo da poesia, hora em que todos os participantes se davam as mãos hipocritamente para fazer vênia a um público tão generoso.
A temporada seguia com relativo sucesso apesar dos desacertos internos, e o bonde parecia rolar direitinho sobre os trilhos até madame Rubaloca aparecer novamente de surpresa numa outra tarde de ensaios e me perguntar o que estaria acontecendo entre o pérfido Benito e a falsa Dorotéa.
A pergunta veio de supetão, e me pegou de surpresa.
Na falta de saber como proceder, comecei a gaguejar, coisa inadmissível para um declamador de escol, como eu. Pela primeira vez na vida – agora penso que talvez propositalmente, traído pelo inconsciente – não fui capaz de desempenhar meu papel de ator à altura da minha capacidade. Pela primeira vez não consegui ser convincente, e meu olhar hesitante traiu a resposta mentirosa que seria adequada para o momento.
Deve ter falado mais alto o meu insuspeito mau caráter e a possibilidade de colocar um fim nas veleidades de Dorotéa e seu orgulho irracional, para de repente me colocar na pele de um Iago e incendiar de dúvidas a cabeça conturbada, não de Otelo, mas de dona Ignes Rubaloca, dizendo coisas sem dizer, como se estivesse querendo proteger o safado do seu marido, mas encontrando as palavras corretas para envenenar a sua alma.
Então, finalmente percebi ter reencontrado o fabuloso ator que mora em mim. Com a minha soberba e dissimulada atuação eu iria provocar um escândalo de adoráveis proporções, funcionando como uma vingança perfeita para as minhas desditas dentro da companhia.
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A exibição d’O Defunto Virgem foi repentinamente interrompida por três tiros de revólver disparados no peito do desditoso Benito Rubaloca por sua mulher Ignes Rubaloca num acesso de ciúme, diante de meia dúzia de testemunhas, conforme consta nas manchetes dos jornais do dia seguinte e no boletim de ocorrência lavrado na delegacia horas depois do crime.
Dorotéa Vaughan trancou-se no banheiro e só foi retirada de lá quatro horas depois pelo servente do teatro, muito lívida e balbuciante, após a polícia ter levado madame Rubaloca – que depois do terceiro tiro não se preocupou em se livrar do flagrante e prostrou-se numa cadeira esperando pelo seu inexorável destino.
Dias depois, passado o susto, Dorotéa aproveitou para tirar vantagem do desditoso episódio, se expondo em um programa da televisão marrom e faturando em uma atuação num filme B o equivalente a dois anos de apresentação no Teatro Aliança. No filme, sua beleza estática e sua falta de talento não chegaram a ser problema.
Timóteo saiu de circulação, e a última vez que foi visto vendia frutas na feira, também sem exibir o menor talento.
Rubaloca, o pivô da questão, teve enfim seu nome eternizado no Diário de Notícias.
Quanto a mim, desde então sou um mais um personagem da vida real à procura de uma persona no palco, saudoso do camarim que guarda aquele silêncio que antecede o espetáculo e daquele calafrio que antecipa a entrada triunfante no palco.
E à espera de um Eraldo Montalvão para escrever as minhas falas, na falta de um Tennessee Williams.
    
2013


            

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