A MACHADINHA
(Conto publicado no livro “À noite,
todos os gatos” em 1998)
(Parte 2)
Antes do alvorecer ouvem-se novamente os
passos descompassados como um coração em sobressalto e um tilintar de metais
agora que a mão balança frouxa fora do bolso do casaco – a outra segura a
maleta de apetrechos como se fosse uma garra. Os passos vêm do fim da cidade,
das ruas não calçadas, e já alcançaram o calçamento de pedras e a praça onde a
carruagem deixou sua marca tão forte que até agora sente-se nos ouvidos o
poc-potoc das patas dos cavalos.
Alguém deixou a luz acesa desde então, e
a janela, embaçada pela névoa cinzenta, parece uma lua irregular e
impressionista dependurada no alto da praça.
Os passos que pliqueplaqueiam vêm se
aproximando mais compassados, e eis que ele surge na esquina com a mão livre tentando
fechar e gola do casaco de encontro ao queixo enquanto os talismãs, agora
totalmente soltos dentro do bolso, trincolejam alegres como uma canção de
Natal.
Ele cambaleia levemente por causa de
algum passo em falso, se recompõe, passa pelo chafariz sem vida e olha para o
alto, onde a janela teimosamente acesa começa agora a formar um quadro com o
escuro do prédio e do céu já não tão negro, tomando as cores do azulado do
alvorecer.
Passa depois pelos becos onde as latas
de lixo se confundem com insetos que não dormem, a sombra ainda caminhando
animada pela luz dos postes.
A árvore imóvel deixa cair uma das sujas
poucas folhas bem próximo da sua cabeça como se fosse um morcego em voo cego
tentando arrancar-lhe os olhos.
Penosamente ele enfim alcança a frente
do seu prédio, abre a porta pesada que geme nas dobradiças e sobe lentamente o
lance de escada que range nas juntas dos degraus e do balaústre.
Entra no seu aposento singular, exausto
como um soldado em retirada, desanimado como um portador de más notícias,
trêmulo como um doente de malária, sombrio como um assassino compulsivo,
arfante como quem cumpriu penosamente com o seu dever.
Tira o boné, atira a valise para o canto
da cama, tira o casaco, retira do bolso o crucifixo e o coloca dentro de um
porta-lápis de plástico, depois despe a camisa xadrez.
A camiseta encardida apresenta respingos
de sangue e as mãos também estão meladas de sangue, entranhado sob as unhas mal
aparadas. Há sangue também no seu olhar vazio.
Um rastro escarlate tinge o seu rosto e
tinge a barba mal feita e o cheiro peculiar de sangue se espalha pelo seu corpo
e pela sua alma, e pela sua boca e pela sua mente.
Ele se senta pesadamente ao pé da cama e
olha fixamente para o chão em direção às botinas enlameadas e à barra da calça
molhada e puída, depois ergue os olhos miúdos e se depara com a bacia de ferro
esmaltado cheia de água cristalina, onde ele vai lavar os seus pecados.
Depois olha para o teto escuro e para a
luz que ilumina parcamente o aposento e toma novamente a mesma resolução que
vem tomando há muito tempo sem concretizar.
Ele está farto das madrugadas escondidas
e do cheiro da morte.
Está farto de tanto sangue, de tantas
vítimas, de tanta dor, do gemido curto, da faca afiada a rasgar ventres, da
machadinha a dilacerar ossos, da mão assassina e rubra.
Está farto da sua sina. Está farto de
sangue... sangue... sangue...
Logo que clarear o sol ele vai dar um
basta nesta situação de uma vez por todas. Vai ao escritório do Frigorífico
Machado & Cruz pedir as contas do serviço sujo que faz há anos como
magarefe no matadouro da cidade todas as noites, sangrando, decepando membros e
esfolando bois.
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