sexta-feira, 18 de maio de 2018






A SÃO PAULO DE ADONIRAN BARBOSA
Capítulo Final

Foi nesse ambiente ímpar que eu conheci uma figura também ímpar do poeta popular Adoniran Barbosa.
Adoniran era o mais legítimo intérprete das coisas de São Paulo, ao lado do conjunto Os Demônios da Garoa, do sambista Germano Mathias e dos quase desconhecidos Talismã e Geraldo Filme (estes últimos compositores de escolas de samba paulistanas), e se dava ao luxo de atentar contra a língua portuguesa sem o menor pudor, uma homenagem aos seus avós que como tantos outros italianos aportaram na cidade no final do século 19 para tentar uma vida mais digna.
Adoniran foi um batalhador em busca de um lugar ao sol, trabalhando como comediante, locutor e cantor tão logo conseguiu vislumbrar a oportunidade de mostrar o seu talento nas ondas do radio.

Senhoras e senhores ouçam bem,
a Pérola Negra este ano
vai cantar em homenagem para alguém
que é o patriarca do nosso samba urbano
Vila Esperança, Moóca, Bexiga e Barra Funda,
Adoniran,
o Arnesto me convidou prum samba, ele mora no Brás,
Adoniran Barbosa!

Embora sendo um poeta do botequim,
seu samba fez história entre os letrados,
e foi registrado no Museu Cravo Albim,
Barbosa Adoniran marcou a história
e foi cronista em samba, sem cartola
Barbosa Adoniran marcou a história
e foi cronista em samba sem cartola

Mamãe chamando no Jaçanã,
por que o trem das onze foi sair atrasado
e foi chegar no seu destino só de manhã?
Nicola abriu a porta, e Iracema
entrou de braços com Adoniran,
nos olhos, uma lágrima, um poema
ouvindo do poeta “até amanhã”

Deixou Iracema, voltou, e levou seu retrato
dizendo “eu não posso ficar”
Voltou pro Bexiga, pra Rua Major,
que esta é a maior fonte de inspiração,
com ele foram Joca e Mato Grosso,
tocando tamborim que era um colosso,
fazendo de São Paulo um samba-tema
do orvalho, da maloca e de Iracema

Adoniran, Adoniran,
seu samba fez escola entre os letrados
sem ter jamais sonhado em ser o rei da canção
Barbosa Adoniran marcou a história
e foi cronista em samba, sem cartola
Barbosa Adoniran marcou a história
e foi sambista em samba se cartola

Entre outras coisas, Adoniran também era um compositor que não conhecia teoria musical. O espírito urbano das suas composições retratava o ator que morava nele, às vezes histrião, às vezes irônico, às vezes dramático, como de resto o era a sua interpretação como cantor.
De certa forma éramos dois peixes fora d’água que se encontravam no mesmo lugar, sob o mesmo céu estrelado, sem ter muita relação histórica com o que se passava ao redor.
Havíamos aceitado o desafio, eu como compositor, ele como protagonista, e estávamos no mesmo barco até que o mesmo chegasse ao nosso porto seguro.
Numa escola de samba, a pessoa homenageada com o tema assume a condição de padrinho ou madrinha da associação durante o período que vai da escolha do tema pela comissão de carnaval até o dia do desfile.
Nessa condição, ela frequenta a escola durante os ensaios, decide se vai desfilar e de que forma irá desfilar e se torna amigo de todos, desde os membros da diretoria até o sambista de ala mais humilde, embora poucas vezes esta amizade se prolongue depois do carnaval.
Um dos pontos altos da celebração é a escolha do samba-enredo, quando o personagem do tema participa de uma festa com direito a ouvir e apreciar mais de uma dezena de sambas feitos em sua homenagem.
Adoniran não era habituado a comparecer a ensaios, pois os mesmos duravam horas a fio, e o poeta, apesar de apreciar o sereno que lhe dava inspiração, não tinha na alma a retumbância dos surdos e dos alto-falantes. Ele preferia o aconchego de uma cantina ou de uma esquina à luz de um poste, onde ele podia sussurrar poesia com sua pouca voz ao lado de uma taça de vinho ou de um violão solitário e preguiçoso.
Aparentemente, Adoniran não chegou a se comover pelo fato de ser cantado em prosa e verso. Ele, que já cantara tantos personagens, fictícios ou não – Iracema, Ernesto, Nicola, Malvina, Pafúncia, Mato Grosso, Joca, Geralda – sabia conviver perfeitamente com essa inversão de papeis.
No entanto, na noite da escolha do samba-enredo ele lá estava, de bigodinho aparado, chapéu e gravata borboleta – só faltava o cachecol que o acompanhava nas noites garoentas de São Paulo – e se mostrava muito animado.
Seus olhos miúdos brilhavam com a intensidade dos olhos de um gato e seu sorriso com o canto da boca equilibrava o costumeiro cigarro sem filtro que aceleraria a sua morte oito anos depois.
Ele percorreu várias mesas para cumprimentar as pessoas que o aplaudiam, subiu ao palco para receber homenagens enquanto era saudado pelo presidente da escola – o que de certa forma o constrangeu, homem simples que era – e terminou na chamada “mesa da diretoria” onde sentavam alguns diretores e compositores, e onde a cerveja rolava ao som do samba.
Amante de um bom uísque, Adoniran foi presenteado com uma garrafa e um balde de gelo, com o que se regalou.
Um diretor se desculpou pela pobreza da agremiação, que na impossibilidade de lhe oferecer algo mais requintado optou pelo brasileiríssimo Old Eight e algumas peças de frango a passarinho feito por uma das tias da escola.
Adoniran se limitou a responder – “num tem portança” – e em pouco mais de uma hora secou a garrafa.


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