sábado, 9 de junho de 2018





OS REIS DO IÉ-IÉ-IÉ

É certo que o jazz sempre fez parte da minha vida.
Afinal, quando criança tive uma saudável iniciação ao ser apresentado aos discos de ebonite gravados, os chamados “bolachões” em 78 rpm com as orquestras de Benny Goodman, Harry James, Artie Shaw e Xavier Cugat, e aquele tipo de música me conquistou de uma forma definitiva.
O material foi se modernizando e passou a ser prensado em discos com 33 rpm, ao mesmo tempo em que o gosto se aprimorava com a evolução do jazz, passando do swing das grandes orquestras para as firulas do bebop de Gillespie e Parker e mais tarde desembocar no jazz branco de Dave Brubeck e Chet Baker e no refinamento do cool-blues e da chamada “third-stream music” cultuados pelo Modern Jazz Quartet.
Na década de 1950, houve porém um desvio de rota.
É que o rock dos precursores chegou com a força da country music, foi invadido pela essência do boogie-woogie e do blues, e trouxe uma nova linguagem que também passou a acompanhar o meu gosto musical, representado pela arte de Little Richard, Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e outros mais.
Como acontece com toda novidade, não demorou muito para que surgissem aproveitadores com músicos e músicas de menor qualidade e começassem a ocupar espaço nas gravadoras e emissoras de rádio, prenúncio triste do que iria acontecer 70 anos depois.
A turma que reverenciava o jazz e o rock que era compromissado com a qualidade ignorava essa injunção puramente comercial e continuava trocando figurinhas em lojas de discos e em clubes improvisados, e sempre sobrava espaço para ouvir um lançamento recente na casa de um dos aficionados.
Eis que me vejo convidado para ouvir na casa do amigo Élcio Bottini o LP “Place Vendôme - The Modern Jazz Quartet & The Swingle Singers”, um disco que reunia o MJQ – John Lewis (pianista, arranjador, diretor musical e principal compositor do quarteto), Milt Jackson (vibrafonista), Percy Heath (contrabaixista) e Connie Kay (baterista que tocava com extrema leveza) – e o grupo vocal composto por cantores franceses e regido pelo maestro Ward Swingle, americano, especializado em vocalizar música de cunho barroco.
A mistura deste barroco, recheado de fugas e de uma harmonia tonal bachiana, com a leveza do blues do MJQ, produziu uma das mais refinadas obras de jazz de que se tem notícia.
Ao chegarmos na casa do Élcio, no entanto, aconteceu o impasse: a irmã mais nova do meu amigo estava entretida com o aparelho de som ouvindo uma daquelas novidades a princípio detestáveis, um grupo pop inglês com quatro “bonitinhos” cantando músicas descartáveis para consumo imediato. Ela disse que era um grupo chamado The Beatles, que estava levando à loucura garotas como ela pelos quatro cantos do mundo.
Ora, e eu lá teria paciência para ouvir um grupo de cantores fabricados para levar adolescentes à histeria? É claro que Élcio e eu nos recusamos a perder tempo com aquilo e nos afastamos o máximo que pudemos da sala onde se realizava a audição.
Aguardamos pacientemente no jardim da casa até que chegou a nossa vez de entrar e poder ouvir o desempenho angelical e elegante do MJQ e dos cantores de Ward Swingle, com muito blues em cada acorde vindo de dois dos mais qualificados grupos musicais jamais formados.
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Mudança abrupta do cenário.
Eis-me, alguns meses depois, na então progressista cidade de Ribeirão Preto (como diziam os documentários que antecediam os filmes nas salas de cinema), enfadado, enfarado, entediado e enfastiado, sem nada que fazer na tarde quente das três horas, caminhando pela praça principal da cidade, batizada de Praça Dom Pedro II.
Na falta de algo mais consistente resolvi me aventurar indo ao cinema para assistir – imaginem – ao filme “Os Reis do Ié-Ié-Ié” (“A Hard Day’s Night”, no título original) que apresentava exatamente o tal quarteto de cabeludos que eu me recusara ouvir na casa do amigo Élcio.
Operou-se a transformação: a cada instante meu interesse foi crescendo, pois o filme feito sobre um roteiro maluco de Alun Owen e muito bem dirigido por Richard Lester, desafiava a lógica na magia do branco-e-preto, alternando situações inusitadas num perfeito contraponto entre o irônico e o absurdo com músicas de um delicioso desenho melódico.  
Eu acabara de descobrir The Beatles, que nos próximos dez anos revolucionariam a música, muitos músicos, a própria história do rock e os costumes de toda uma geração, levando esta tendência mais além, mesmo depois de a banda ser desfeita.  
Se tivesse atendido o chamado da irmã do Élcio poderia ter de pronto gostado da música, mas com certeza o impacto não teria sido tão grande.
Ao sair do cinema corri até as Lojas Americanas e comprei o LP, que seria o primeiro de toda a coleção catalogada do grupo, depois acrescido de gravações pirata que não estão em catálogo e de muito material da fase solo de cada um dos Paul, John, George e Ringo que fizeram a banda.
  
  


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