A MÁSCARA
(Excerto)
Deu-me um amigo uma máscara de presente.
Contou-me este amigo, um velho holandês
muito alto, de cabelos brancos e pacíficos olhos azuis, de nome Willen Van
Cljistens, que a teria trazido de uma das viagens que empreendera pela imensidão
do Pacífico há mais de trinta anos, e que ela era um talismã da sorte.
Van Cljistens devia estar beirando os
oitenta, mas mantinha a aparente virilidade dos cinquenta, tal a facilidade em
relatar seus casos amorosos, tal o voraz apetite para consumir queijos e
quejandos, tal a disposição para misturar cerveja com bebidas mais
espirituosas, e tal a queima exagerada de cigarros dos quais ele extraía o
filtro.
Era um misto de homem culto e rústico,
pois coçava as partes e soltava imprecações com a mesma facilidade em que
discorria sobre uma peça de Weber, um poema de Mellarmé ou um escrito de Eliot
e, se inventava ou mentia, o fazia com tamanho poder de persuasão que os
eventuais exageros das suas narrativas inebriavam suavemente os ouvintes tal
qual um vinho aromático da Alsácia, não lhes dando qualquer chance para duvidar
ou zombetear.
-0-0-0-
Tive a desagradável impressão de que a
máscara estava atenta à nossa conversa.
Após consumir muitas garrafas de
cerveja, alguns cálices de grapa e algumas doses de aguardente de cereja o
bravo batavo se retirou, ereto embora trôpego, e eu resolvi pendurar a máscara
– uma obra de apurado mau gosto – na parede posterior da sala onde ficava o
móvel que servia para colocar qualquer coisa em cima, de onde ela poderia vigiar
a porta e espantar, quem sabe, aos maus olhados.
A operação pendura-máscara tomou-me
quase dez minutos entre o arrasta cadeiras, o trepa e o destrepa e o
confere-a-posição mas finalmente a carantonha foi gloriosamente afixada.
Após descer cuidadosamente da cadeira
para não arriscar a levar um tombo e começar a descrer das propriedades
benfazejas do singular objeto, andei de costas até a parede oposta para melhor
observar o efeito do meu mais novo adorno e parei, boquiaberto: a máscara me
piscava com o buraco do olho esquerdo!
-0-0-0-
Meu amigo holandês, pirata de pacíficos
olhos azuis morreu esta manhã, vítima de um acidente.
Chocado pela notícia, deixei o telefone
falando sozinho e vou para a sala como se quisesse me aconselhar com a máscara mágica. Olho para
todas as paredes, para a mesa, para o móvel que servia para colocar qualquer
coisa em cima e não consigo ver a amaldiçoada carranca.
A mesa ainda guarda os copos vazios de
cerveja já com cheiro de azedo e os cálices com o resto da aguardente de cereja
e grapa. O cinzeiro fede com diversas bitucas de cigarro com as pontas do
filtro arrancadas.
Meu coração bate apressadamente e nos meus
tímpanos ressoam batidas de tambores.
Van Cljistens desafiara o imponderável e
pagara com a vida, e a máscara aparentemente, já tendo cumprido com os seus
designios talvez tivesse partido para onde achava ser o seu lugar de direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário