sábado, 6 de abril de 2019







O VASO ROXO
(excerto)

          Leocádia veio do nada, como uma lufada de ar que entra por uma fresta de janela sem se fazer notar. Surgiu como um fantasma inoportuno e fechou ruidosamente o guarda-chuva gotejante. Era representante comercial de uma fábrica de teodolitos.
          Quando ela chegou, os sinos tilintaram na cabeça de Giovanni – engenheiro e dono do escritório – como num passe de mágica, como se ele estivesse sob efeito de uma poção de feitiçaria. E tilintaram tão alto, que quase dava para a gente ouvir do lado de fora.
          Assim, quer seja por falarem o mesmo idioma tecnográfico, quer seja por prometerem comungar esquisitices em comum ou ainda por compartilharem o mesmo padrão de pouca beleza – se é que assim pode ser dito – acabou pairando no ar um clima romântico que prometia grandes jornadas amorosas, ornamentada por senos obscenos, cossenos e hipotenusas.
          E fotocópias em profusão.
          Giovanni e Leocádia contraíram núpcias dali a um ano, com as devidas bênçãos do padre e a competente autorização do juiz de paz.
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          A aparência de Leocádia piorara sensivelmente desde quando eu a tinha visto pela última vez.
          Estava lívida e envelhecida, com a expressão sombria, e o seu semblante mostrava algo além da sua proverbial antipatia, revelando um profundo pesar e cansaço e talvez uma dispepsia crônica. Parecia uma mulher atormentada.
          Provavelmente a chama que iluminava aquele ambiente se fora embora com Giovanni e talvez, desde a sua morte, as cortinas não mais se abriram mesmo que fosse para deixar entrar o ar poluído da cidade.
          Leocádia caminhou em direção ao quarto e logo depois reapareceu com um pacote embalado em um papel de presente bastante amarelado pelo tempo. Recebi o pacote, um presente que me fora comprado pelo finado Giovanni, agradeci pela atenção e me despedi.
          Chegando em casa, abri o pacote. Tratava-se de um imponente vaso de cristal lapidado, de um roxo intenso que chegava a brilhar quando refletia a luz. O vaso foi colocado na mesinha de centro da sala, ao lado de um cinzeiro de cristal de Murano e de um pequeno enfeite de mesa em forma de elefante, também de cristal, que teve a tromba quebrada e agora se assemelhava a um porco.
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          O vaso roxo era uma peça muito estranha. Eu tinha a impressão que à noite, mesmo quando a sala estava às escuras, ele ainda brilhava como se armazenasse luz no seu interior ou como se o cristal tivesse minúsculas partículas fosforescentes na sua estrutura.
          Eu achava estranho e espantoso, mas gostava do interessante fenômeno. Minha mulher, no entanto, começou a sentir-se incomodada e cismou que o bendito vaso tinha alguma coisa de sobrenatural e quis se livrar dele.
          Assim, o vaso roxo foi dado de presente para um amigo, que carregou com ele, desta vez dentro de uma sacola de uma loja de grife.
          Depois disso, nunca mais voltei a ouvir qualquer comentário sobre o luminescente objeto.
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          Certo dia, anos depois, fui ao funeral de um parente distante.
          Terminada a cerimônia, saio serpenteando pelos canteiros do cemitério, e entre o curioso e o distraído vou lendo os nomes dos inquilinos dos jazigos, gravados em baixo relevo ou pintados de dourado junto com as datas de nascimento e morte, ao lado de flores murchas, velas apagadas e retratos de outros tempos. Aremildo Boaventura Gatto, Concita da Purificação Valadares, Zaqueu Tremolim – parece que os mortos sempre têm nomes estranhos e fora de moda – neste aqui um jarro de porcelana, naquele outro a estátua de um anjo, tudo como convém a um bom cemitério.    
          Eis que me deparo com uma surpresa de tirar o fôlego, pois logo depois de um Antenor Belderagas Cruz, surge um túmulo cujo titular tinha muito a ver com o meu passado: lá estava, gravado em granito escuro, mas perfeitamente legível mesmo à luz do fim da tarde que tornava o crepúsculo acinzentado, o nome Giovanni Amedeo Minotti.
          Na foto amarronzada sobre porcelana, estava impressa a sua careca luzidia e a sua expressão de pândego. Ao seu lado havia uma outra foto, de aparência mais antiga, mas que eu obviamente sabia ser bem mais recente, retratando uma mulher que portava na face uma expressão vampiresca. E um nome, escrito com letras menores: Leocádia Efigênia Bustamante Minotti.
          Sobre o túmulo, iridescente sob o fulgor da última claridade do dia, estava o meu antigo vaso roxo.

2013

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