A MACHADINHA
(Segundo Excerto)
Antes do alvorecer, ouvem-se passos
descompassados como um coração em sobressalto. Os passos vêm das ruas mal
calçadas do outro lado da cidade e a esta altura alcançam o chão pavimentado
com pedras, onde algum dia as carruagens deixaram a sua marca tão forte que até
hoje sente-se nos ouvidos o poc-potoc das patas dos cavalos.
Alguém deixou a luz do quarto acesa, e a janela embaçada
pela névoa cinzenta parece uma lua irregular e impressionista dependurada no
alto da praça.
Ele cambaleia levemente por causa de
algum passo em falso, se recompõe, passa pelo chafariz sem vida e olha para o
alto onde a janela teimosamente acesa começa a formar um quadro com o escuro do
céu já não tão negro, emprestando devagar as cores do alvorecer. Depois, passa
pelos becos onde latas de lixo se confundem com insetos e ratos que não dormem.
Penosamente o caminhante alcança o
prédio onde mora, abre a porta pesada que geme nas dobradiças e sobe lentamente um lance de escadas cuja
madeira range pelo peso do tempo.
Entra enfim no seu aposento singular,
exausto como um sodado batendo em retirada, trêmulo como um assassino compulsivo,
arfante como quem cumpriu penosamente com o seu dever.
Joga a valise e o boné num canto, tira o
casaco e mostra uma camiseta encardida e manchada se sangue. Há um rasto
escarlate também no seu rosto suado, tisnando a barba mal feita.
Senta-se pesadamente ao pé da cama e
olha para o chão em direção às botinas enlameadas, depois ergue os olhos e se
depara com a bacia da ágate cheia de água onde vai lavar os seus pecados.
Está farto das madrugadas sombrias e do
cheiro da morte.
Estia farto de tanto sangue, do gemido
surdo, da faca afiada, do rasgar de ventres e da machadinha a dilacerar ossos,
está farto da sua sina.
Ainda pela manhã ele vai ao escritório
do frigorífico no qual trabalha para pedir demissão do serviço penoso que faz
há anos como magarefe no matadouro da cidade, todas a noites decepando membros,
sangrando e esfolando bois.
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