quinta-feira, 30 de abril de 2020







SÚCIA DE CANALHAS

(Esta crônica não é de minha autoria. Uma das melhores que já li, foi escrita em junho de 1997 pelo jornalista Alberto Helena Junior, a quem eu peço permissão eletrônica para publicar nos meus domínios, posto que reflete muito a indignação exarada nos dias de hoje)

Augusto Pellegrini

Era uma vez, há muitos e muitos anos, um jornalista, panfletário emérito, desses que não conseguem se controlar diante do cinismo dos poderosos. Todo santo dia molhava sua pena – naquele tempo usava-se ainda a pena – num pote de fel, e derramava suas diatribes – naquele tempo, eram diatribes – sobre a folha branca com a fúria dos justos.
Claro que o destempero sem provas, posto que estas nunca bastam aos olhos cegos da lei, acabaram por levá-lo duas ou três noites às masmorras – eram tempos de masmorras, então – semana sim, semana não, por ordem de zeloso juiz.
Enquanto isso, cresciam os desmandos dos poderosos.
Velho, cansado da luta inglória, já sem forças para resistir às noites cada vez mais longas no cárcere – sem contar a reprimenda da mulher, o desprezo das filhas e o abandono dos amigos -, mas ainda assim com a alma em fogo, nosso herói resolveu dar a tacada final: foi aos tipos – naquele tempo havia tipos nas oficinas gráficas – e montou a gloriosa primeira página do seu pasquim. Manchete, em letras garrafais – naquele tempo eram garrafais as manchetes: CANALHAS! E logo abaixo do pingo da exclamação escandia o rol de insultos: “Súcia de canalhas, pelintras, ladravazes, velhacos, safardanas, poltrões...” (traduzindo: canalhas, pilantras, ladrões, traidores, safados, covardes...) e mais uma centena de adjetivos desqualificativos. E ponto final.
À noite, quando ainda sorvia as últimas gotas da vingança do dia, o velho panfletário explicava à intrigada mulher a valia de ter publicado este vitupério – chamava-se vitupério, nessa época –, sem dar nome aos bois.
“Eu, eles e o leitor sabemos quem são. Até o juiz sabe quem são, mas esta noite não pode mandar me prender. Esta noite, minha velha, enquanto eles remoem as ofensas, durmo o sono dos justos”.
Virou-se de lado e, antes mesmo de completar seu gesto, seus roncos já ecoavam como os trovões de Zeus.         


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