O FANTASMA DA FM (1992)
(Augusto Pellegrini)
CLICHÊS – A SAPATARIA
“Pois não?”
Vendedor-atendente de loja de calçados é a figura mais rápida e prestativa da
face da terra, algo assim como um anjo da guarda do consumidor, um simpático atendente
de ordens, um valete de copas.
A coisinha enxuta, saia com os joelhos à mostra, calçando sandália de tiras e usando
uma blusinha arejada, se senta diante do espelho naquela posição geográfica na
qual se sentam todas as coisinhas enxutas que vão comprar calçados – talvez por
isso os vendedores não reclamam dos baixos salários nem da aporrinhação do chefe.
Vem a sandália vermelha – “não é bem esse tipo que eu queria” – e vem a cor havana
– não gostei da cor, não combina com a minha pele” (qualquer cor, senhorita,
combina com a sua pele) – e o vendedor alisa o pé da enxutinha (que dedos, meu
Deus!), devolve a sandália para a Caixa e vai buscar outra analisando o
tornozelo (que perfume, meu Deus!), vislumbra os seus joelhos e por aí vai.
E dá-lhe sandália – sandália de tira, sandália sem tira, sandália de todas as
cores e feitios, enquanto as caixas vão se amontoando. A Cinderela enfim não
encontra o sapatinho de cristal, se desculpa e vai embora, deixando no atendente
um olhar de saudade.
Então vem a matrona que estava aguardando a vez, com o olhar austero e
penetrante caindo de chofre no apatetado rapaz, interrompendo seus devaneios.
“Quer me atender, agora?”
“Pois não, madame, o que a senhora deseja?, com a disposição de quem vai para a
guerra.
“Quero uma sandália que combine comigo!”
Então vem a vermelha – “não gostei” – vem a azul-escuro – “horrível, essa fivela!”
– vem a prateada – “detestei esse modelo! – e vem a de tira preta…
O vendedor angustiado calça e descalça sandálias (que coisa, meu Deus, esse pé
cheio de calos!), abre caixa e fecha caixa (que cheiro, meu Deus, liguem o
ventilador!), olha para a cliente enquanto ajeita a tira para desviar do
joanete (que cara, meu Deus, parece um buldogue remelento!), e vai por aí
afora.
Vendedor-atendente de loja de calçados é também a figura mais infeliz da face
da terra, algo assim como um segurador de alça de caixão, um lacaio de ordens,
um dois de paus.
(Aventuras e
desventuras de um atendente de loja de calçados)
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