Do
livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)
UMA
NOITE SINISTRA
E então, a tragédia.
Numa das minhas costumeiras caminhadas noturnas, madrugada plena, parei diante da
geladeira, abri a porta dos mil prazeres e ao flertar com um generoso pedaço de
goiabada cascão que piscava para mim, não hesitei. Veio a primeira mordida e a
primeira mastigada quando, sem prévio aviso, o nervo exposto do molar produziu
aquela pontada aguda e fina que me encheu de cores.
Parece que houve uma interrupção repentina na corrente elétrica – ou fui eu que
perdi o senso de luz do mundo – enquanto a mão comprimia a bochecha e o
palavrão era proferido com todas as honras.
O medo atávico do dentista se transformou em amor à primeira vista e me
sobreveio uma intensa saudade do doutor Jacinto, apesar do ruído da broca, do
esguicho direcionado da água gelada e do sopro quente do ar comprimido.
Mas se eu telefonar para você agora para desatar o nó das minhas desesperanças,
caro Jacinto, é bem provável que você me convide para uma consulta rápida e sem
volta, um analgésico, uma extração e depois um tiro na boca para que eu nunca
mais venha incomodá-lo no seu lazer da madrugada, usando uma britadeira à guisa
de broca para arrancar-me a língua, a glote e a epiglote.
Parece ser mais prudente, dente por dente, esperar o dia e as coisas clarearem
e tomarem a forma de normalidade, uma mera norma de formalidade.
Enquanto isso, vou chutar a parede com muita força, quem sabe o dedão se quebra
e a dor pelo menos se transfere de lugar, pois não é possível que o cérebro
tenha tanta capacidade de memória para armazenar mais dores do que as que já
sinto, Jacinto.
(A influência da goiabada cascão na metafísica e no comportamento humano)
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